A ameaça de uma imensa crise financeira

Imagem: Thelma Lessa da Fonseca
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JACQUES ATTALI*

Alguns raros especialistas estão agora murmurando que uma grande crise financeira será desencadeada. Como evitá-la?

Uma imensa crise financeira está à espreita. Se não agirmos rapidamente, ela nos atingirá, provavelmente na metade de 2023. E se, por uma procrastinação generalizada, ela for postergada, apenas nos atingirá com mais força depois. Ainda temos tudo que precisamos para realmente dominá-la, desde que compreendamos que todo o nosso modelo de desenvolvimento está em jogo.

A situação mundial hoje é mantida apenas pela força do dólar, legitimada pela potência econômica, militar e política dos Estados Unidos, que continuam sendo o principal refúgio dos capitais globais. No entanto, este país atualmente se encontra sob a ameaça de uma grave crise fiscal, financeira, climática e política:

A dívida pública americana atingiu 120% do PIB, sem considerarmos as garantias fornecidas pela administração federal aos sistemas previdenciários dos agentes federais nem o financiamento necessário das futuras catástrofes climáticas. Desde meados de janeiro de 2023, o Tesouro americano já atinge o seu limite de obtenção de empréstimos (31,4 trilhões de dólares); os salários dos funcionários e do exército são apenas pagos por meio de recursos paliativos (o que a Secretária do Tesouro diz não poder prolongar para além do começo de julho de 2023).

Os Republicanos, que controlam a Câmara dos Deputados, estão se preparando para propor o que a Casa Branca já acusa de serem “cortes devastadores que enfraquecerão a segurança nacional afetando as famílias da classe trabalhadora e da classe média”. E o projeto dos Democratas, que visa uma redução do déficit em 10 anos através de uma alta massiva de impostos sobre os mais ricos, não tem muito mais chances de ser aprovado pelo Congresso. Os americanos podem, mais uma vez, sair dessa valendo-se de um novo aumento no teto da dívida, o que ninguém quer. E que não resolveria nada.

A dívida privada não se encontra em uma situação melhor: ela atingiu cerca de 16,9 trilhões de dólares, o que significa 2,75 trilhões a mais do que antes da crise provocada pela Covid-19; cerca de 58 mil dólares por adulto americano, ou 89% da renda disponível das famílias americanas. Uma boa parte dela serve apenas para financiar as despesas de consumo e a compra de moradias; a dívida imobiliária, em particular, atinge cerca de 44% da renda disponível das famílias americanas, o nível mais alto da história, ultrapassando aquele de 2007, quando este tipo de dívida foi o gatilho da crise precedente.

E os americanos mais pobres continuam tomando empréstimos, com a garantia da Federal Housing Admistration, para comprar moradias com um adiantamento mínimo limitado a 5% mais as mensalidades, que podem chegar a cerca de 50% de suas rendas! Um sistema insustentável. 13% destes empréstimos já estão inadimplentes e essa porcentagem aumenta todos os dias. Soma-se a isso o endividamento das construtoras, que atinge, também, níveis inauditos. 1,5 trilhões de dólares de empréstimos em propriedades comerciais devem ser reembolsados ou refinanciados antes do fim de 2025, com taxas muito superiores às atuais. Tudo isso enquanto os bancos se encontram altamente fragilizados pelo que aconteceu recentemente e não podendo participar destes refinanciamentos.

Além de tudo isso, há um clima revolucionário, no qual ninguém exclui a possibilidade de uma crise constitucional que poderia inclusive levar, de acordo com a opinião de alguns, à secessão de alguns estados.

O resto do mundo sofreria terrivelmente com uma crise como esta. A Europa, ela mesmo terrivelmente endividada, afundaria numa recessão, perdendo mercados de exportação que não poderiam ser compensados pela demanda interior. O mesmo vale para a China. Apenas a Rússia, que não tem mais nada a perder, poderia ganhar algo com isso; e ela certamente irá contribuir com a desordem, por meio de cyberataques, como ela indubitavelmente fez um mês atrás, quando os bancos californianos foram atacados.

Não podemos mais pensar que o crescimento atual será o suficiente para sanar esta dívida, como foi o caso em 1950. O relatório da Assembleia anual do FMI é bastante lúcido acerca deste ponto, por mais que seja incrivelmente discreto acerca dos riscos financeiros sistêmicos que estão corroendo a economia de seu principal acionista, os americanos.

Alguns raros especialistas estão agora murmurando que uma grande crise financeira será desencadeada, assim como muitas outas antes dela, na segunda quinzena de um mês de agosto: como em 1857, 1971, 1982 e 1993. Mas de qual ano? Possivelmente em agosto de 2023. Como evitá-la?

Existem quatro soluções: economias radicais, mantendo mesmo o padrão de desenvolvimento (o que apenas criaria miséria e violência); estímulos monetários (o que apenas atrasaria sua data final); a guerra (que levara ao pior cenário possível, antes de, possivelmente, criar oportunidades muito raras aos sobreviventes). E, por fim, uma reorientação radical da economia mundial em direção a um novo modelo de desenvolvimento, com uma relação totalmente diferente com a propriedade dos bens de consumo e moradia, reduzindo ao mesmo tempo o endividamento e a pegada climática.

Naturalmente, nada está pronto para que se possa implementá-la; e se algum dia a adotaremos, isso provavelmente não acontecerá em lugar da catástrofe, ainda perfeitamente evitável, mas depois dela ter acontecido.

*Jacques Attali é economista e escritor. Autor, entre outros livros, de Karl Marx ou o espírito do mundo (Record).

Tradução: Daniel Pavan.

Publicado originalmente no blog de Jacques Attali.


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Denilson Cordeiro Mariarosaria Fabris João Sette Whitaker Ferreira Luiz Marques Vladimir Safatle Bernardo Ricupero Thomas Piketty José Dirceu Luiz Carlos Bresser-Pereira Rubens Pinto Lyra Eliziário Andrade Ricardo Abramovay Ronald León Núñez Celso Frederico Antonino Infranca Leonardo Sacramento Alexandre de Freitas Barbosa José Geraldo Couto João Carlos Salles Gabriel Cohn Remy José Fontana Jean Pierre Chauvin Luiz Bernardo Pericás Salem Nasser Lucas Fiaschetti Estevez Otaviano Helene Eugênio Trivinho Michael Roberts José Costa Júnior Luciano Nascimento Igor Felippe Santos Paulo Fernandes Silveira Andrés del Río Manuel Domingos Neto Marcus Ianoni Paulo Martins Lorenzo Vitral Luiz Roberto Alves Marcelo Módolo Renato Dagnino Kátia Gerab Baggio Luis Felipe Miguel João Feres Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Julian Rodrigues Leonardo Boff Mário Maestri Tadeu Valadares Luís Fernando Vitagliano Ladislau Dowbor Ricardo Fabbrini Antonio Martins Carla Teixeira Bento Prado Jr. Valerio Arcary José Luís Fiori Gerson Almeida Luiz Renato Martins Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Eduardo Soares Dênis de Moraes Eleutério F. S. Prado João Adolfo Hansen João Lanari Bo Maria Rita Kehl Alexandre Juliete Rosa Flávio Aguiar Claudio Katz Michael Löwy Paulo Nogueira Batista Jr Milton Pinheiro Marilia Pacheco Fiorillo João Paulo Ayub Fonseca Benicio Viero Schmidt Fernando Nogueira da Costa Tarso Genro Anselm Jappe Alysson Leandro Mascaro Osvaldo Coggiola André Singer Samuel Kilsztajn Ricardo Musse Matheus Silveira de Souza José Machado Moita Neto Ronald Rocha Antônio Sales Rios Neto Armando Boito Daniel Brazil Chico Alencar Eleonora Albano Fábio Konder Comparato Jean Marc Von Der Weid Francisco Pereira de Farias Chico Whitaker Marcos Silva Priscila Figueiredo Luiz Werneck Vianna Gilberto Lopes Francisco Fernandes Ladeira Vinício Carrilho Martinez Annateresa Fabris Slavoj Žižek Leonardo Avritzer Marjorie C. Marona Manchetômetro Marcos Aurélio da Silva Jorge Luiz Souto Maior Daniel Afonso da Silva Sergio Amadeu da Silveira Henry Burnett Francisco de Oliveira Barros Júnior Andrew Korybko Michel Goulart da Silva Carlos Tautz Jorge Branco André Márcio Neves Soares Marcelo Guimarães Lima Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Antunes Sandra Bitencourt Tales Ab'Sáber Vanderlei Tenório Flávio R. Kothe Caio Bugiato Alexandre de Lima Castro Tranjan João Carlos Loebens Airton Paschoa Marilena Chauí Yuri Martins-Fontes Rodrigo de Faria Leda Maria Paulani Celso Favaretto Gilberto Maringoni Eugênio Bucci Ari Marcelo Solon Walnice Nogueira Galvão Paulo Capel Narvai Bruno Machado Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Berenice Bento Daniel Costa Paulo Sérgio Pinheiro Elias Jabbour Fernão Pessoa Ramos José Micaelson Lacerda Morais Heraldo Campos Eduardo Borges Juarez Guimarães Atilio A. Boron Everaldo de Oliveira Andrade Dennis Oliveira Liszt Vieira José Raimundo Trindade Alexandre Aragão de Albuquerque Lincoln Secco Rafael R. Ioris Érico Andrade Henri Acselrad Afrânio Catani Boaventura de Sousa Santos

NOVAS PUBLICAÇÕES