Onde está o dinheiro?

Imagem: Alexander Grombach
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Considerações sobre o personalismo e a impessoalidade do dinheiro

Através de uma amostra representativa de dez obras clássicas da historiografia brasileira, resolvi pesquisar sobre a presença, ou pior, a ausência de um personagem-chave nas narrativas a respeito da história do Brasil: dinheiro.

Examinei quantas (e quais) citações dele podem ser encontradas na Carta do Pero Vaz de Caminha (1500), História do Brasil: 1500-1627 por Frei Vicente do Salvador (1627), Os Judeus Construtores do Brasil (2015), O Brasil Holandês (1630-1654) por Evaldo Cabral de Mello (2010), Cultura e Opulência do Brasil por André João Antonil (1711), Capítulos de História Colonial (1500-1800) por Capistrano de Abreu (1907), Casa Grande & Senzala por Gilberto Freyre (1933), Raízes do Brasil por Sérgio Buarque de Holanda (1936), Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia por Caio Prado Júnior (1942), Formação Econômica do Brasil por Celso Furtado (1959).

Pouco encontrei. Porém, o encontrado se refere a episódios muito relevantes “para entender o Brasil”. É possível isso sem a narrativa histórica sobre (a falta de) dinheiro?

Daí o relevante é o entendimento da razão dessa ausência ou presença tímida como não fosse tema relevante ou fosse algo “sujo” a ser jogado na lata de lixo da história. José Ricardo Martins destaca a busca por uma identidade brasileira e a vontade de nos entendermos como povo serem as motivações dos diversos “intérpretes do Brasil”.

Segundo esse artigo-resenha, a constituição da identidade brasileira incorpora conceitos como a subalternidade, a subcidadania, o mando e a submissão, relações de dependência, desigualdade, passividade, fatalismo, familismo, cordialidade, entre outras qualificações forjadas por meio do colonialismo subalterno, do patrimonialismo, da dominação estamental, coronelismo, autoritarismo e autocracia, democracia restrita, capitalismo dependente, violência física e simbólica, exclusão, relações servis e de privilégios. Estes seriam os temas presentes na realidade (e historiografia) brasileira.

Para o follow the money (traduzido para português como “siga o dinheiro”), um bordão em língua inglesa popularizado para iniciar investigações, talvez a maior pista encontrada para explicar a razão dele não estar com papel explícito nas narrativas históricas brasileiras tenha sido dada, indiretamente, no livro de Sérgio Buarque de Holanda. Com respeito à família patriarcal, conceito central em Gilberto Freyre, Holanda identifica a autoridade do patriarca ultrapassar a esfera doméstica e estender-se ao domínio público.

Essa “invasão do público pelo privado” não respeita a hierarquia formal das instituições. O tradicional comportamento patriarcal e personalista dificulta o estabelecimento não só do Estado democrático, como reflete Sérgio Buarque de Holanda, mas também, como eu penso, a impessoalidade exigida no trato das relações públicas com o pagamento monetário devido, independentemente de com quem for o (con)trato.

A parcialidade familiar seria incompatível com a atitude imparcial diante dos cidadãos, exigida na esfera republicana. Deve-se execrar os privilegiamentos pessoais.

O conceito mais conhecido na obra de Sérgio Buarque de Holanda é o de “homem cordial”. Esse “brasileiro” seria regido pelos sentimentos de amor ou ódio: ou a favor de mim ou contra mim. Obedeceria aos casuísmos do afeto e não às normas impessoais.

Submisso à pregação do catolicismo crítico da usura, “o brasileiro” recebeu, em lugar da impessoalidade do dinheiro, o peso das “relações de simpatia”. Isso dificultou a incorporação de outros agrupamentos subalternos com base no trabalho assalariado em relação contratual impessoal de troca de atividade prestada por dinheiro.

Pior, perdura a tendência de não achar agradáveis as relações impessoais, exigidas no Estado republicano e na economia de mercado. A “cultura do por favor” procura reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo como todos fossem “amigos” na hora do pagamento. O “homem cordial” acaba sem distinguir, claramente, entre os domínios do privado e do público. Por isso, quando alcança o poder governamental, é patrimonialista, preferindo o favoritismo e o “jeitinho”, tendo aversão à impessoalidade.

Há sérias consequências negativas quando se refere ao trato da coisa pública. As relações pessoa a pessoa, como fossem um favor e não uma obrigação diante de um direito da cidadania, dificultam se ter uma ordem social mais impessoal e racional no país.

O mito fundador da Nação dos brasileiros oculta sua violência atávica, desde o genocídio dos nativos, passando pela tortura dos escravos, até a exploração dos despossuídos de terra e obrigados a mendigar por um salário mínimo nas cidades. É ilusório o desejo do Darcy Ribeiro de nos reconhecermos como “a Nova Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue índio, tropical. A Nação Mestiça se revelaria ao mundo como uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a solidariedade”.

Nepotismo é um termo utilizado para designar o favorecimento de parentes ou amigos próximos em detrimento de pessoas mais qualificadas e merecedoras na nomeação ou elevação de cargos públicos e políticos. Atualmente, este termo indica a concessão de privilégios ou cargos a parentes no funcionalismo público. É diferente de favoritismo ou amicismo, pois este não implica nem mesmo relações familiares com o favorecido, basta ser apenas amigo de parente de um conhecido.

Etimologicamente, este termo se originou a partir do latim nepos, com significado literal de “neto” ou “descendente”. A palavra era antes usada exclusivamente no âmbito das relações do papa com seus parentes. Por esse motivo, um nepote seria como fosse “sobrinho do sumo pontífice” ou “conselheiro papal”.

O malfeito pela intolerância inquisitorial é facilmente encontrado com a leitura da historiografia brasileira. A Inquisição foi estabelecida pelo papado, durante a Idade Média (século XIII), com o objetivo de combater a heresia, ou seja, qualquer linha de pensamento contrária a da Igreja Católica. Sua marca foi a intolerância religiosa.

A Inquisição espanhola, também conhecida como Tribunal do Santo Ofício, foi instaurada na Espanha em 1478. Seu objetivo principal era a expulsão de judeus e muçulmanos do seu território. Só foi abolida durante o reinado de Napoleão Bonaparte, entre 1808 e 1812, e extinta de forma definitiva em 1834.

Já os judeus refugiados em Portugal logo, em 1497, tiveram de se converter do judaísmo ao catolicismo. Os “cristãos-novos”, para fugir dos métodos de tortura da Inquisição portuguesa com a finalidade obter confissões justificadoras da morte, migraram para a Holanda ou a inóspita colônia portuguesa nas Américas.

Em 1624, ela tinha aproximadamente cinquenta mil habitantes brancos. Estima-se até um terço dos colonos ser “marranos” (cristãos-novos). Durante o domínio holandês no nordeste do Brasil (1630-1654), lá foi permitida a prática do judaísmo. Afinal, a Holanda não fazia parte dos países intolerantes sob as leis da Inquisição.

No entanto, novos administradores, designados pela Companhia das Índias Ocidentais como substitutos de Maurício de Nassau, aumentaram os impostos, passaram a cobrar dívidas antigas dos senhores de engenho e cortaram a verba para novos financiamentos. Essa cobrança fez os devedores começarem a organizar a oposição aos holandeses. Os portugueses, com o apoio informal do rei português, começaram a buscar adeptos para o movimento, prometendo-lhes perdão das dívidas contraídas com holandeses e judeus.

Esse “calote cristão” é um longo legado desde os guetos nas cidades italianas no Renascimento. Os católicos recorriam aos judeus na hora da necessidade de tomar empréstimos e à Inquisição na hora de os amortizar. Não cumpriam os contratos assinados na servidão voluntária ao crédito. Até hoje abominam essa impessoalidade…

A maior parte dos judeus retornou para a Holanda ou emigrou para as Antilhas. Lá, por oferecer um produto de melhor qualidade e mais barato, passou a fazer concorrência ao açúcar brasileiro. Um pequeno grupo acabou aportando em uma colônia holandesa na América do Norte, chamada Nova Amsterdã, futura Nova York, na época somente um entreposto comercial da Companhia das Índias Ocidentais, organizada em Amsterdã por ações. Vinte e três judeus-brasileiros foram os pioneiros na construção da primeira comunidade judaica da América do Norte.

Manhattan foi gradativamente se urbanizando. Os judeus adquiriram o direito de participar dos negócios da região. Participaram da Guerra de Independência dos Estados Unidos. Em 1792, vinte e quatro mercadores e corretores criaram a Bolsa de Valores de Nova York. Entre eles, encontravam-se três judeus, entre os quais, um de origem “brasileira”. O resto é a história da maior economia de mercado de capitais no mundo…

Essas poucas referências a dinheiro, na historiografia clássica brasileira, dizem muito a respeito da necessidade de nos livrar dos falsos “mitos fundadores”, incapazes de levar à coesão nacional menos desigual, senão igualitária. A história estuda as mudanças e as permanências ocorridas na sociedade. Percebe a relação entre o tempo passado e o presente, por exemplo, os pobres brasileiros continuarem sem dinheiro.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).


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