Por AFRÂNIO CATANI*
Comentário do livro “Prosas seguidas de Odes mínimas”.
1.
Postei no site A Terra É Redonda, em maio de 2021, resenha originalmente publicada no extinto Jornal da Tarde do livro Um por todos – poesia reunida (1986), de José Paulo Paes (1926-1998). A obra, com o título ladino, agregava 152 poemas do autor contidos em oito de seus livros, editados entre 1947 e 1983, a saber: O aluno (1947), Cúmplices (1951), Novas cartas chilenas (1954), Epigramas (1958), Anatomias (1967), Meia palavra (1973), Resíduo (1980) e Calendário perplexo (1983) – poesias estas antecedidas por seu O livro do alquimista.
José Paulo Paes estudou química, trabalhou em laboratório farmacêutico e, durante anos, em uma editora. Acabou se aposentando e dedicou-se, então, inteiramente à literatura, tornando-se exímio pesquisador, tradutor, ensaísta e poeta, colaborando regularmente na imprensa literária. Além dos livros já citados, escreveu A aventura literária (1990), Socráticas (2001), e os infantis Uma letra puxa a outra (1992), Um número depois do outro (1993), Ri melhor quem ri primeiro (1998) e A revolta das palavras (1999). Em 2008 a Companhia das Letras editou Poesia completa e, ainda no início dos anos 1990, esse Prosas seguidas de Odes mínimas (1992).
2.
Na contracapa de Prosas…, reunindo 33 composições do poeta, lê-se que o autor “percorre os principais temas que compõem toda sua produção, marcada pela lucidez, ironia, concisão verbal, crítica política e aversão ao sentimentalismo. Entre outros motes, os poemas tratam de amor, de memórias e da proximidade da morte – com alguma descrença, mas também com intenso lirismo e uma boa dose de experimentalismo formal”.
Para o escritor e crítico Marcelo Coelho, José Paulo Paes faz “uma poesia que, sem ser confessional, é íntima, cheia de lembranças e experiências biográficas. Fala de seus pais, de amigos mortos, da perna que teve de amputar, mas não cede nunca às tentações da autopiedade e do desespero”.
O pequeno volume é dedicado à Dora, sua amada companheira, que deve ter adorado a dedicatória: “Para a Dora, em vez do rubi de praxe”. Já as Prosas vão em memória de Fernando Góes, “que um dia chamou de Poesias um livro seu de crônicas”.
“Noturno” ocupa-se dos sonhos de adolescente, enquanto em “Canção de exílio” a marotice impera. “Um retrato” recupera o relacionamento distante com o pai: “Eu mal o conheci/quando era vivo./Mas o que sabe/um homem de outro homem?/(…)Só quando adoeceu e o fui buscar/em casa alheia/e o trouxe para a minha casa (que infinitos os cuidados de Dora com ele!)/ estivemos juntos por mais tempo./ (…) Ergo os olhos para ele na parede./Sei agora, pai,/o quanto é estar vivo.” Em “outro retrato” imagina-se outra vida, sem maridos que chegam tarde “com um gosto amargo na boca”, onde não se pagam contas, inexistem dentes postiços, cabelos brancos e rugas…
O avô é rememorado em “J.V.”, ele que era “oriundo de Guimarães, “a sua cidade do Minho”, de onde viera mocinho. Tinha uma livraria/papelaria/tipografia, que “disputava com a farmácia do seu Juca o prestígio de ponto de encontro das notabilidades locais – o vigário, o juiz e o delegado, a par de figuras menos notáveis.” Era monarquista e acabou morrendo antes do fim da Segunda Grande Guerra.
O poeta nasceu em Taquaritinga, São Paulo, onde havia três loucos bastante conhecidos: o Elétrico, o João Bobo e o Félix, todos “loucos úteis” (“Loucos”).
Destacam-se ainda “Iniciação”, “Nana para Glaura” e “Balancete” – neste último lidando com a esperança, a incerteza, o amor e a morte. Rememora a amizade com Osman Lins, o amigo que já morreu e os encontros no extinto Café Belas-Artes: “Não que as leis do real/se abolissem de todo/mas ali dentro Curitiba/era quase Paris./ (…) Não se desfazia nunca/a roda de amigos;/o tempo congelara-se/no seu melhor minuto./Um dia foi fechado/o Café Belas-Artes/e os amigos não acharam/outro lugar de encontro./Talvez porque já não tivessem/(adeus Paris adeus)/mais razões de encontrar-se/mais nada a se dizer.”
3.
As 13 Odes mínimas abrem-se com o trágico, mas bem humorado, “A minha perna esquerda”, que o poeta foi obrigado a amputar: “esquerda direita/esquerda direita/direita/direita/Nenhuma perna/é eterna.” Em “À televisão” o tema é o controle absoluto que o veículo exerce sobre as pessoas: “Teu boletim meteorológico/me diz aqui e agora/se chove ou se faz sol./Para que ir lá fora?/ (…)Guerra, sexo, esporte/-me dás tudo, tudo./Vou pregar minha porta:/já não preciso do mundo”.
A crítica ao consumo está em “Ao shopping center”: “Cada loja é um novo/prego em nossa cruz./Por mais que compremos/estamos sempre nus/nós que por teus círculos/vagamos sem perdão/à espera (até quando)/da Grande Liquidação.”
A ode “À impropriedade” explora vários temores do escritor: “De cearense sedentário/baiano lacônico,/mineiro perdulário/Deus nos guarde./De carioca cerimonioso/gaúcho modesto/paulista preguiçoso/Deus nos livre e guarde.” Já em “Ao espelho”, o bom humor mais uma vez dá o tom: “O que mais me aproveita/em nosso tão frequente/comércio é a tua/pedagogia de avessos”.
4.
Terminei de ler Rosas seguidas de Odes mínimas com um leve sorriso de satisfação, indo e vindo entre seus versos refinados e sensíveis. Quem iniciar a leitura dos poemas de José Paulo Paes por este livro, dificilmente deixará de procurar outras de suas obras ou mesmo sua Poesia completa, editada postumamente. É um grande alento constatar que, quase 25 anos após o falecimento de José Paulo Paes, sua produção continua a nos envolver, nos faz rir de nós mesmos, ajuda a estabelecer algumas conexões com outros poetas contemporâneos, além de continuar a propiciar doses significativas de experimentação formal.
*Afrânio Catani é professor titular aposentado da faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ (campus de Duque de Caxias).
Referências
José Paulo Paes. Um por todos – poesia reunida. São Paulo: Brasiliense, 1986.
José Paulo Paes. Prosas seguidas de Odes mínimas. São Paulo: Companhia das Letras, 2023 (https://amzn.to/458NIL1).
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