Por TARSO GENRO*
A consciência de classe não terá mais as sínteses grandiosas das grandes narrativas da socialdemocracia e do socialismo revolucionário
A debilidade histórica das forças políticas democráticas e dos partidos de esquerda, em geral, para defender o país, os direito dos trabalhadores – praticamente ausentes dos momentos de resistência para preservar os seus direitos devastados pelo bolsonarismo, a débil resistência da academia – intimidada pelo avanço do fascismo – e o silêncio quase sepulcral da ampla maioria da burocracia estatal de todos os níveis, na resistência à dilapidação do Estado Nacional, contribuiu muito para a criação do espírito aventureiro que tentou armar um golpe de Estado em nosso país. A base social mobilizada neste período foi sempre majoritariamente bolsonarista e de corte popular e ela dizia, explicitamente, que queria transformar a sua política necrófila numa nova ordem estatal dirigida por um néscio delirante.
Em síntese, o golpe não saiu porque Lula ganhou a eleição de forma limpa e conquistou o apoio de uma parte significativa do centro e da direita dita civilizada, porque as Forças Armadas majoritariamente não aderiram e o Supremo Tribunal Federal, pela maioria dos seus ministros, resolveu fazer valer a Constituição. Não ocorreu nenhuma pressão popular significativa para desgastar o golpismo e opor um movimento de massas, politizado e democático, aos seus objetivos destrutivos. Não se trata de “traição”, mas da ausência de um grupo dirigente orgânico pela esquerda, capaz de ter voz pública autorizada para salvar o país da marginália fascista que rondava os quartéis, ameaçava as instituições e prometia uma ditadura que, perto do regime de 1964, deixaria este como uma mera experiência da direita civilizada.
Processo civilizatório em crise significa, mais além das mudanças nas formas de produzir, uma mudança no comportamento dos sujeitos políticos e mudanças de padrão no comportamento das bases sociais que hoje fazem o sentido da ordem democrática. A empresa industrial foi o lastro sobre o qual se ergueram as concepções apologéticas, conservadoras, reformistas ou revolucionárias da ordem.
Para as forças conservadoras a problemática é clara: como manter a ordem dentro de um fluxo de ideias, movimentos, desordens, regulamentos produtivos, onde as novas ambições da acumulação privada possam, ao mesmo tempo, conflitar-se, concorrer e estabilizar-se – minimamente – sem impugnar as formas de combinação predominantes da paz social, que são, ao mesmo tempo conflitivas e estabilizadoras. Para as forças da mudança a questão é outra: como reciclar-se, como organização política, para manter a democracia como um incessante “devir”, para um mundo mais humano e iluminado?
A pergunta não é perdulária, mas a resposta não é fácil. Se é verdade que o fascismo bloqueou as luzes, onde as sociedades concretas foram iluminadas pelas revoluções, os custos das mudanças pela igualdade deixaram rastros brutais, que ofereceram capacidade de restauração para as trevas ou reergueram, a partir dos seus escombros, as possibilidades deslegitimar a construção de uma nova ordem social que reconciliasse a humanidade com a natureza, os sujeitos sociais com a democracia sem fim e a reconstrução da ideia de comunidade planetária, calcada na premissa que os homens e as mulheres “nascem iguais em direitos”, ideia suprimida pela concretude “da primazia crescente da economia monetária (…) uma das manifestações mais notáveis da virtualização em curso (…) onde o maior mercado do mundo é o da própria moeda.” Extensão da empresa real ela é a antítese virtual (existente como outra realidade) da comunidade industrial moderna.
“A organização clássica (daquela empresa) reúne seus empregados no mesmo prédio ou num conjunto de departamentos”(…), mas, nas novas empresas, cujo ponto de maturidade plena ainda não foi encontrado, “o centro de gravidade da organização, não é mais um conjunto de departamentos, de posto de trabalho e de livros de ponto, mas um processo de coordenação que redistribui sempre diferentemente as coordenadas espaço-temporais da coletividade de trabalho e de cada um dos seus membros, em função de diversas exigências.” A realidade virtual não é menos realidade do que a realidade presente, mas um dos principais vetores de criação das (novas) realidades”. A comunidade política nacional dos trabalhadores, organizada politicamente nos partidos onde predominavam as empresas do capitalismo industrial clássico, não fala com o futuro já desterritorializado pela realidade virtual, que é outro concreto e outro tipo formalmente organizado.
A empresa virtual – por exemplo – não pode ser mais “situada” de forma “precisa”, (pois) seus elementos são nômades, dispersos, e a pertinência – por exemplo – “da sua posição geográfica decresceu muito”. Destas coordenadas de Pierre Levy, se certeiras, pode-se deduzir que – quando a produção desta nova realidade virtual estiver totalmente amadurecida – teremos, seguramente, um novo tipo de sociedade capitalista ou, se possível, de uma sociedade socialista ainda não imaginada.
As formas de organização política das comunidades, classes, estamentos, movimentos, que sofrerão este turbilhão, que se realizará ainda dentro da atual ordem industrial por um certo tempo, não serão mais as mesmas e a política será totalmente reorganizada: tanto na sua produção subjetiva, como nos seus resultados.
A forma-partido moderna da sociedade industrial no regime liberal-democrático – logo, de todos os partidos – constituiu-se num mundo mais estável, juridicamente, e com formas minimamente estáveis de produção na indústria, que modelaram os partidos políticos para serem “aptos” a responderem para os seus públicos as questões colocadas naquela situação histórica florescente da democracia liberal: uma relação partido-classe sempre explícita nos programas de cada organização partidária, mais idealizadas ou mais pragmáticas, mais utópicas (no sentido tanto de Lênin como de Bloch) de utopias “mais concretas” ou “menos concretas”. Propriedade privada, mercado e formas de Estado, foram os pontos mais claros que dividiam os partidos, tanto os que viam no capitalismo o modo de eterno de reprodução social, como os que desenhavam novos modos de vida, outras formas de Estado e de solidariedade social.
Sustento que é mais fácil a adaptação, a estes novos tempos, dos partidos que defendem a eternidade da ordem do capital – sem utopias – porque podem se organizar em bandos que disputam o poder pela violência, pelo controle da opinião nas redes sociais ou – simplesmente – através de organizações neofascistas. Contrariamente aos partidos e grupos políticos que defendem uma futura sociedade socialista, baseada no compartilhamento das oportunidades e na efetividade do direitos fundamentais, que passarão por uma situação mais difícil, porque não é mais a “consciência de classe” orgânica que pleiteia as mudanças, mas a soma das individualidades conscientes de uma comunidade de desejos e necessidades complexas, materiais e espirituais, que baterão contra o muro dos privilégios das classes, estas sim!, que controlam organicamente os movimento do dinheiro.
A identidade formada pelas classes que pautaram a política moderna permanece, hoje, mais pelo seu contrário alienado do que pela sua afirmação de uma vida comum, que está disponível tanto para ser sequestrada pelo fascismo como para ser valorizada pelas ideias de uma comunidade democrática. Bauman, em Identidade, mostrava a falência das identidades da era industrial em franca decadência, já em 2004, quando viu cartazes nos muros de Berlim, que ridicularizavam as “lealdades” da sociedade industrial já transtornada pelo real-virtual: “Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro!”.
Enquanto esta universalidade concreta não tinha se tornado dominante, o caráter classista “puro” da luta política ainda mantinha seu estatuto de validade, hoje vencido quando passam a ter força as identidades marcadas pela diferença, que na primeira eleição de Lula ainda não tinham se tornado, ainda, tão evidentes na vida comum.
A partir dali as classes ainda permanecem no centro do entendimento da história presente, mas não mais para desvendar qualquer possibilidade de futuro. O individualismo da modernidade projetado no cenário do liberalismo político, proporcionou que a soma dos indivíduos – ensejada pela sociedade capitalista de classes estáveis – estabelecessem as suas relações de interesse coletivo a partir da soma dos desejos e das pulsões de indivíduos livres na esfera política, a partir de uma vida comum tanto conservadora como revolucionária.
A fábrica moderna foi, então, a base operacional da dissolução da individualidade proletária, observou o velho Marx, tanto para assaltar o céu coletivamente como para hoje, fora da previsão marxiana – no fracasso da revolução proletária – ver no empreendedorismo de si mesmo uma saída mais possível do que a revolução, para pavimentar melhor sua vida monótona e hipossuficiente. É um engano, mas é um engano cheio de atrativos imediatos e com certa perspectiva histórica.
O nosso problema – o problema dos partidos da esquerda democrática e verdadeiramente libertária – não é, portanto, simplesmente “voltar às bases”, porque lá não existe mais a subjetividade coletiva que nos formou e poderia, tanto tender para a revolução como para as lutas reformistas democráticas de profundidade. A consciência de classe não terá mais as sínteses grandiosas das grandes narrativas da socialdemocracia e do socialismo revolucionário, pois ela – refeita – deverá compor no horizonte uma constelação de possibilidades das várias consciências das individualidades livres, de vários grupos, de classes e subclasses somadas, para a salvação da miséria e da opressão, bem como da própria Humanidade, hoje dispersa pelo medo da guerra final e pela destruição planetária.
A luta de classes não se extinguiu, mas ela mudou de sujeitos, de formas e de endereços. As políticas contra a fome e a deserção social típicas do neofascismo nacional, a política externa como motor da economia interna e o arcabouço fiscal possível, podem ensejar uma nova reflexão para a esquerda, num tempo pouco épico em que nos espreita mais a morte do que a vida, mais a guerra do que a paz e sobretudo um enorme vazio de definições sobre o futuro.
*Tarso Genro Foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
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