Pórcia

Paulo Pasta, Sem título, 2022 Óleo sobre tela 160 x 120 cm
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Por JOSUÉ PEREIRA DA SILVA*

Comentário sobre Pórcia Carolina da Silva Castro, tia do poeta Castro Alves

Afrânio e Jorge, meus agradecimentos!

Devia ser por volta das dez da manhã quando estacionamos o carro e entramos no casarão do museu. Logo na entrada fomos atendidos por duas pessoas: um porteiro e uma moça morena, tipo indígena, muito simpática, bonita e sorridente. Queríamos conhecer o acervo, dissemos. Vocês sabem alguma coisa sobre Castro Alves?, ela nos perguntou. Meu irmão, sempre metido a engraçadinho, quis saber se a pergunta dela era sobre a cidade ou sobre o poeta que lhe dava o nome. Ela percebeu a gracinha dele e rindo respondeu: “o poeta, claro, e a história dele”. Sim; sabia alguma coisa, ele lhe disse.

A simpática moça, que se disse historiadora, prontificou-se a nos guiar na visita ao acervo. Subimos a escadaria e começamos a ver o acervo. Logo na primeira sala ela nos chamou a atenção para as matérias de jornal enquadradas a respeito do famoso baiano, uma estátua e alguns retratos do poeta, pinturas ou fotografias antigas, com seu inconfundível bigode. Na sala contígua mais retratos de sua família, da mãe, do avô.

– E de Pórcia, não tem nenhuma foto?”, meu irmão perguntou.

– Só aquela ali, respondeu a moça.

Ele se aproximou da foto, na verdade um desenho, esmaecido, de uma mulher muito bonita, de olhar forte e sóbrio; mas triste, de uma tristeza profunda, quase transcendente. Olhar de mártir que parecia exalar muita mágoa. Nunca tinha ouvido falar nela e, por isso, não entendi o entusiasmo de meu irmão diante daquela figura. Aquele desenho esmaecido parecia ser a única coisa de interesse para ele naquele museu. A moça quis nos mostrar as outras salas do museu; ele concordou, mas pediu para ela esperar mais um pouco. Queria tirar umas fotos.

A guia lhe disse que não podia usar flash; ele, então, me pediu para tirar para ele uma foto com meu celular, artefato que ele, aliás, se recusava a usar. Fiz o melhor que pude para lhe conseguir uma boa imagem daquele esmaecido desenho e, em seguida, descemos uma escada para a parte baixa do casarão, onde, segundo nos informou a guia, ficava a cozinha com os apetrechos de época e a senzala. Ali embaixo também havia alguns cubículos usados para aprisionar e castigar escravos fujões recapturados.

Meu irmão, fissurado pela moça do retrato esmaecido, quis saber da guia onde ficavam os quartos das mulheres. Porque, segundo ele dissera, na parte de cima os cômodos pareciam ser de salas de visita e de trabalho. Na hora eu até achei sua pergunta meio besta, mas a moça disse que os quartos de dormir ficavam no casarão contíguo, que tinha sido em parte demolido e não pertencia ao museu. Ele ainda assim quis saber se podia ir lá; ela respondeu que não porque era propriedade particular. Perguntei a ele porque toda aquela ansiedade pela moça do retrato esmaecido e ele me disse que ela era uma tia de Castro Alves que teve uma vida trágica.

Ao ouvi-lo dizer aquilo, a guia ficou interessada na história e quis saber mais. Ele perguntou se ela não tinha lido ABC de Castro Alves, de Jorge Amado, ou Sinhazinha, de Afrânio Peixoto. Ela respondeu que não; ele lhe disse que os dois livros falavam da história da moça e que ela devia ler. Ela ia procurar os livros e ler, afirmou. Fiquei meio constrangido com a atitude de meu irmão no museu, parecendo querer saber mais do que a moça que trabalhava lá. Mas logo acabamos de ver as outras salas, nos despedimos dela e saímos.

Passava das onze horas e ainda tínhamos muito pela frente naquele dia. Ele tinha dirigido até ali e eu me ofereci para pegar o volante. Dei partida no carro e fomos em direção a Santa Terezinha, próxima cidade em nosso roteiro. Logo que saímos, eu não me contive e falei de sua atitude no museu. Ele riu e me disse que a moça era simpática, mas, como historiadora do museu, devia se informar melhor.

– E a moça do retrato? Porque ela te interessa tanto?, perguntei.

– Quer que eu te conte?, respondeu.

– Claro! Conta.

– Então aperta o cinto e presta atenção na direção que eu quero chegar a Jequié vivo e inteiro.

– Pode ficar tranquilo que de direção eu entendo…

 

***

O caso se deu na primeira metade do século dezenove; mil e oitocentos quarenta e pouco. Não sei a data exata, mas isso não faz muita diferença. Pórcia Carolina tinha só dezesseis anos de idade. Era então uma linda flor que desabrochava quando ela e Leolino se conheceram. Mas naquela época as moças casavam muito novas, geralmente com maridos escolhidos por seus pais. Leolino era casado e viajava com sua tropa quando arranchou na fazenda do pai de Pórcia; homem rico e poderoso, o avô materno de Castro Alves. Ele é conhecido inclusive por ter liderado aqui na Bahia um batalhão de voluntários e escravos para lutar contra os portugueses na guerra pela independência, que os baianos comemoram no dois de julho.

Voltamos ao que interessa. Na ocasião que Leolino se hospedou na fazenda do pai dela havia lá outras moças, algumas da idade dela; era época de folguedos, de diversão, com fogueira no terreiro da casa grande, danças, brincadeiras. Por isso tantas moças – suas primas e amigas – estavam na casa naqueles dias.

Entre todas as moças, Pórcia chamou sua atenção não apenas pela beleza. Não era apenas bela. Era também insinuante, atirada; saliente, como se dizia então. E exalava sensualidade. No início ele achou engraçado o espírito de liderança da moça que nisso se destacava bem das outras, mais tímidas, menos atiradas do que ela. Mas não era só isso; ela tinha algo de provocador, de desafiador, sobretudo, porque ela lidava com os homens de igual para igual, coisa não usual naquela época. A diabinha, com seu olhar profundo e o sorriso irônico de esfinge, não se intimidava diante dos marmanjos. Leolino ficou tomado por ela. Sabia dos riscos; era um homem casado. Ela também sabia, mas gostou dele e não pensou nas consequências.

Quase não se falaram, mas a química entre os dois foi fatal. Findos os folguedos daquela noite, todos se recolheram para dormir. Leolino tentou dormir, mas não conseguiu pregar os olhos. Saiu da cama e resolveu andar um pouco lá fora para colocar as ideias em ordem, dispersar os pensamentos perigosos. Não sei se conseguiria. Mas seus devaneios foram interrompidos por aquele vulto de ninfa seminua, apenas de camisolão, ali, à sua frente; não acreditava no que via. Mas era ela; adivinhara seus pensamentos e seus desejos que eram os mesmos dela. Amaram-se ali mesmo, intensamente, louca e apaixonadamente. Feito o que a natureza mandava, eles sabiam que daquele passo arriscado não havia retorno possível. Nem eles queriam.

Ele abandonaria sua família e levaria a moça com ele, no que ela estava de pleno acordo. Procurariam um lugar só para eles; um lugar longe dali e tranquilo, onde pudessem viver o idílio plena e sossegadamente. Fugiram.

Mas o coronel Silva Castro, pai da moça, não os deixaria em paz. Ao tomar conhecimento do acontecido, colocou sua tropa no encalço deles. Rodou, procurou, encontrou e montou cerco. Inicialmente foi repelido. Leolino contou com a ajuda de Exupério, o irmão bom de mira, atirador de primeira. Preparou-se como o troiano para defender sua fortaleza, proteger sua Helena do agreste, do Recôncavo.

Depois de algumas tentativas malsucedidas, o coronel parecia ter desistido, deixando-os tranquilos. Um dia, entretanto, Leolino precisou viajar com o irmão, viagem longa, e deixou seu pessoal armado protegendo as muralhas, as fronteiras de seus domínios; do improvisado palácio onde escondera Pórcia e o fruto do amor “proibido”, um robusto menino já se aproximando do primeiro aniversário.

O coronel Silva Castro não era de desistir e mantinha por ali seus olheiros. E, na ausência de Leolino e de Exupério, desferiu o ataque. Encontrou resistência, mas não a ponto de fazê-lo desistir. Derrubou as muralhas de segurança e invadiu o recinto. Ao ver seu pai com os capangas entrarem em sua casa, Pórcia usou o último recurso de que dispunha. Mostrou-lhe o neto, um menino lindo e sadio. Mas não conseguiu apagar a sede de vingança do pai; pior, parece que a existência do neto a incitou. E diante da mãe imobilizada ordenou a morte do neto, que ali mesmo foi sacrificado com a fria lâmina de um facão.

Amarrada, Pórcia foi levada como louca e findou seus dias como prisioneira em um quarto do casarão do pai, sempre vigiada. Leolino morreu algum tempo depois lutando para vingar sua amada e o filho, no que foi ajudado pelo irmão. Foi assim.

 

***

– Entendeu, agora, meu interesse?

– Sim. Que tragédia, hein!? O ser humano é capaz de fazer coisas horríveis…

– Pois é. O irônico de tudo isso é ela ser menos lembrada que seu pai – um herói da Independência.

*Josué Pereira da Silva é professor aposentado da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Sociologia crítica e a crise da esquerda (Intermeios).

Publicado originalmente no livro Contos de outono (Edição do autor).


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