Por Lincoln Secco*
O bolsonarismo retoma o movimento fascista na mobilização de massas, no conluio com o capital monopolista, no oportunismo absoluto e, sobretudo, na autonomia que exibe em relação às instituições do Estado.
Definitivamente nunca houve um governo de pessoas tão desqualificadas, de ideias estapafúrdias e discurso puramente oportunista. Suas declarações beiram o nonsense e agridem os ouvidos pela violação da língua. Entre elas há gente desonesta, criminosa e até perversa. Desalojá-las do poder imediatamente é um imperativo moral.
Mas muito além da maldade dos governantes há uma prática de fundo que precisa ser combatida. Diante da aparência monstruosa daquela famiglia no poder é compreensível que desejemos sua rápida derrocada mesmo ao custo da manutenção da sua política antisocial por um substituto palatável na forma (para quem?) e intragável no conteúdo (sabemos para quem).
É igualmente natural que surjam análises precipitadas de que o presidente não mais governa, de que sofreu um golpe, está fragilizado e cairá em algumas semanas. Evidentemente tudo isso pode acontecer ou já ter acontecido, mas eu confesso não ter a mínima evidência disso.
As evidências
Eric Hobsbawm dizia que em certos momentos o conhecimento da história se assemelha a uma investigação judicial: ela deve se ater à velha evidência positivista. Podemos, dizia ele, debater as razões da derrota de Cartago; mas jamais mudaremos o resultado das Guerras Púnicas. Roma venceu!
O que há de factual e não ficcional na política brasileira? (a) temos um governo que se originou do voto de 57 milhões de eleitores; (b) há mais de uma centena de oficiais militares no seu quadro administrativo e eles ainda ocupam cerca de 36% dos ministérios; (c) o governo é apoiado ostensivamente pelos Estados Unidos; (d) sua política econômica é aplaudida pelo Congresso e pela mídia corporativa; (e) tem o respaldo de aproximadamente 1/3 da população; (f) tem capacidade de mobilização popular; (g) seus valores estão enraizados na base da sociedade; (h) seus meios de comunicação são mais eficazes que os da oposição; (i) tem sólidas reservas de apoio no Poder Judiciário e, por fim, (j) possui a legitimidade constitucional.
Posto este conjunto de fatos, podemos interpretar as tendências sem confundir teorias com possibilidades, como dizia o velho memorialista operário Everardo Dias. Há uma contradição entre o centro conservador (Rede Globo, Congresso, STF etc) e o neofascismo. Mas é uma “contradição secundária”, pois as duas forças são igualmente liberais na economia.
Há uma inquietação militar com um presidente que desnuda as fragilidades morais e até educacionais da corporação, mas para que isso se torne uma conspiração, depois um golpe exigiria que as Forças Armadas tivessem uma estratégia para o país. Poderiam fazê-lo sem nada disso, mas seriam incapazes de criar um governo permanente como em 1964. Pelos seus atos registrados nos anos derradeiros da Nova República vimos apenas a predominância de interesses corporativos temperados por discurso antipetista.
Oposição
Se consideramos que o bolsonarismo é fascista, temos que situar em primeiro plano aquela que talvez seja a sua característica mais comum. Não é a mobilização de massas, o conluio com o capital monopolista ou o oportunismo absoluto. Ainda que essas e outras características possam fazer parte de qualquer movimento fascista. Quando se trata de um governo ocupado por fascistas o fato é que nenhum outro exibe tanta autonomia em relação às instituições do Estado.
Certamente sua autonomia é relativa. Mas jamais desprezível. Muitas vezes é decisiva. Quem possui aquelas 10 condições elencadas acima não parece nem frágil e nem perdido. As centrais sindicais seguem emudecidas, as mobilizações de rua impossíveis devido à quarentena e uma esquerda extraparlamentar saiu do jogo provisoriamente depois das jornadas de junho de 2013 e das lutas secundaristas de 2015.
Há, por outro lado, uma experiência da juventude acumulada, uma crescente insatisfação social e, neste início de 2020, uma retomada da iniciativa da classe média progressista e o silenciamento da reacionária; existe condenação internacional do governo; o afastamento dos seus ex-aliados oportunistas; e os efeitos de médio prazo da pandemia poderão reforçar a defesa do investimento público e da solidariedade social.
Que fazer?
Formar uma frente de esquerda, pedir a renúncia do presidente, propor impeachment, cassação da chapa, anulação das eleições e restabelecimento dos direitos políticos de Lula é melhor que não fazer nada. Mas imediatamente qualquer saída seria meramente formal, ainda que pudesse abrir uma brecha de novas lutas.
Uma real mudança da política econômica só parece provável no médio prazo, numa previsão otimista. Por isso, para que a esquerda esteja preparada para intervir de modo independente numa mudança de governo, seja no curto ou médio prazo, há uma série de ações a serem feitas no quotidiano. Seu desafio é vincular-se à nova classe trabalhadora e reconstituir-se enquanto alternativa popular. Como?
Nesse quesito são as pessoas na frente de luta que têm a melhor avaliação. Porque a análise fria das impossibilidades do momento também não pode ser um pretexto para que os partidos de esquerda não façam nada, não proponham nada e fiquem à espera do fim do mandato do presidente com a ilusão de que seu desgaste o inviabilize nas próximas eleições. Se ele sobreviver no primeiro mandato é provável que obtenha um segundo. A militância precisa ter o que dizer aqui e agora.
No plano imediato a palavra de ordem “Fora Bolsonaro e sua política”, como quer que ela venha a ser formulada, é um imprescindível meio de agitação. Ela não deve ser acompanhada de ilusões. Mas também não pode ser adiada pelo freio de mão puxado daqueles que só pensam nas próximas eleições municipais.
A esquerda reformista ou revolucionária sempre precisou de uma massa crítica que diante do inesperado conseguisse intervir para mudar o sentido da conjuntura. Para formá-la é necessário ter estratégia, programa, tradição de lutas e reconhecimento popular. Mas acima de tudo esperança.
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP.