Alerta vermelho em Zaporizhzhia?

Imagem: Wendelin Jacober
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LINDA PENTZ GUNTER*

Criar uma zona sem fogo em torno de Zaporizhzhia não seria suficiente. É preciso acabar com o uso da energia nuclear

Em meio a acusações dos lados russo e ucraniano de que a usina nuclear de Zaporizhzhia, no sudeste da Ucrânia, pode ser logo detonada ou poderia ser deliberadamente atacada durante a atual guerra no país, uma verdade absoluta permanece: as usinas nucleares são inerentemente perigosas.

Se as ameaças retóricas são reais ou não, ainda é assunto para debate. O que é incontestavelmente real é o perigo que uma central nuclear representa. Afinal, é por isso que os dois lados estão fazendo essas ameaças para assustar: porque o resultado seria largamente mortal. Se Zaporizhzhia fosse um parque eólico, nem sequer ele seria mencionado.

Cada reator nuclear contém um somatório radioativo letal no núcleo e nos reservatórios de combustível nos quais ele foi carregado, sendo então densamente embalado para que dure ao longo do tempo. Os barris, que também abrigam resíduos nucleares descarregados das piscinas de combustível, são também uma fonte de perigo.

Zaporizhzhia é a maior usina nuclear da Europa, com pelo menos 2.204 toneladas de resíduos altamente radioativos dentro dos reatores e dos reservatórios de combustível irradiado. Dependendo da gravidade do que acontece, todo esse combustível radioativo pode ser inflamado.

Em meio à confusão e à falta de confiabilidade de quaisquer dos pronunciamentos proferidos através da “névoa da guerra”, restam várias perguntas sem resposta que continuam levando ao aumento de boatos e das especulações:

A central nuclear de Zaporizhzhia foi, de fato, preparada para que seja detonada? Certos interesses seriam servidos pela explosão desse complexo? Por que há um êxodo de funcionários de fábricas russas e ucranianas? A sabotagem da barragem de Kakhovka, a jusante, que resultou em inundações catastróficas, levará a uma perda igualmente catastrófica do abastecimento de água de resfriamento disponível para os reatores e piscinas de combustível?

Será que os geradores a diesel de reserva, frequentemente usados para alimentar o resfriamento essencial cada vez que a usina perde a conexão com a rede elétrica, aguentarão as próximas crises? O seu combustível também deve ser reabastecido, mas isso seria potencialmente possível em condições de guerra?

Nenhuma dessas ameaças ganharia as manchetes se Zaporizhzhia fosse o lugar de um parque eólico ou de uma matriz solar em grande escala. Isso talvez explique a pressa agora em minimizar a gravidade da situação, com alegações na imprensa de que um grande ataque à usina “não seria tão ruim quanto Chornobyl” e que as liberações radioativas seriam mínimas e mal ultrapassariam as linhas próximas.

Trata-se de um ocultamento irresponsável dos perigos reais. A avaliação comedida do Dr. Edwin Lyman, teórico da Union of Concerned Scientists, confirma que um ataque a Zaporizhzhia pode realmente ser catastrófico.

O moderador de grafite usado em Chornobyl inegavelmente piorou o resultado daquela explosão, assim como as suas consequências. O grafite alimentou o fogo e a fumaça subiu muito o que espalhou mais, depois, a precipitação radioativa; esta viajou muito pela antiga União Soviética e por toda a Europa.

O papel desempenhado pelo moderador do grafite no aumento da gravidade do desastre de Chornobyl levou a uma suposição de que grandes incêndios e explosões em Zaporizhzhia resultariam em consequências menos graves, dado que os reatores não são do mesmo projeto. Todos os seis em Zaporizhzhia são VVERs russos, semelhantes ao Reator de Água Pressurizada, usados nos Estados Unidos. O de Chornobyl era o RBMK, considerado mais velho.

No entanto, embora Zaporizhzhia possa ser um design menos primitivo, não é inofensivo. Absurdamente, esses reatores dos anos 1980 são descritos na imprensa como “mais modernos”.

Se o combustível de urânio nos reatores de Zaporizhzhia ou as piscinas de armazenamento de combustível irradiado superaquecerem e inflamarem, ele poderia então aquecer o revestimento de zircônio ao seu redor, que se inflamaria e queimaria ferozmente como uma chama em temperaturas muito quentes para possa ser extinguida com água.

A reação química resultante também geraria um ambiente explosivo. O calor da liberação e quaisquer detonações subsequentes poderiam romper estruturas de concreto para, em seguida, lançar gás radioativo e precipitação no meio ambiente alterando o clima ao redor.

A precipitação radioativa pode contaminar terras agrícolas cruciais na Ucrânia e potencialmente também na Rússia, caso os ventos predominantes viajem para o leste no momento do desastre. Como aprendemos com as consequências de Chornobyl, este é um dano duradouro que entra na cadeia alimentar e nos corpos humanos e permanece prejudicial no meio ambiente indefinidamente, como exemplificado pela Zona de Exclusão de Chornobyl de 1.000 milhas quadradas.

Quem consome esse alimento também pode ser afetado de forma fundamental. Enquanto a Europa permite 600 becquerels por quilograma (Bq/kg) de césio radioativo em alimentos, os suprimentos de alimentos contaminados da Ucrânia têm níveis mais altos. E, após um desastre nuclear, poderiam ser exportados para países com padrões ainda mais baixos, incluindo os EUA, onde o limite é de no máximo 1200 Bq/kg. Mas será que aqueles que consomem esses alimentos serão contabilizados entre as vítimas do desastre nuclear, se isto ocorrer? Provavelmente não.

Os números reais dos prejudicados pelo desastre de Chornobyl nunca serão conhecidos devido à omissão institucional, à deturpação dos números e à ausência de registros nos países da antiga União Soviética. Portanto, sugerir que um grande desastre nuclear em Zaporizhzhia seria “não tão ruim quanto Chornobyl” é muito insensato e especulativo já que não olha para detalhes importantes.

As especificidades que se deve notar são do tipo: saber se o desastre envolve explosões de hidrogênio, como aconteceu em Fukushima; indagar se os incêndios resultantes de um bombardeio ou ataque de mísseis poderiam dispersar ainda mais a radioatividade. Também dependeria de saber se todos os seis reatores sofreram falhas catastróficas, se todas as piscinas de combustível foram drenadas, se pegaram fogo e se os barris de armazenamento foram rompidos.

O resultado dependeria ainda de que maneira o vento estava soprando no momento do estouro e, ademais, quando e onde subsequentemente choveu radioatividade. Ora, todos esses fatores formam influentes e importantes por ocasião da precipitação radioativa de Chornobyl.

Se o estouro de Zaporizhzhia vier a prejudicar a Europa, cada lado do conflito quase certamente responsabilizará o outro. Mas, em última análise, a responsabilidade que todos devem compartilhar é passar a rejeitar o uso contínuo de uma tecnologia que tem o potencial de causar consequências tão desastrosas para a humanidade.

A energia nuclear é a forma mais perigosa de ferver água. É desnecessário e caro; ademais, é um obstáculo para o desenvolvimento das energias renováveis. Está intrinsecamente ligada ao desejo – e ao desenvolvimento – de armas nucleares, cujo uso poderia ser o outro resultado letal desta guerra.

Zaporizhzhia é notícia quase todos os dias. A propaganda pode ser deliberadamente alarmista, mas a base para o alarme é muito real, em caso contrário, ela não estaria nas manchetes. É hora de ver o sentido de tudo isso. Criar uma zona sem fogo em torno de Zaporizhzhia não seria suficiente. É preciso acabar com o uso da energia nuclear.

*Linda Pentz Gunter é especialista em energia nuclear; editora e curadora de Beyond Nuclear International.org.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no portal Counterpunch.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES