Em tempos de pandemia, o desatino moral de um mandatário que vive orgulhoso nos porões da incivilidade indicam prejuízos sem precedentes para a nossa história
Por Bruna Triana* e Lucas Amaral de Oliveira**
I
Angelus Novus, o quadro de Paul Klee, deve ser lido ao avesso da interpretação benjaminiana. Com olhos esbugalhados, riso cínico e asas retraídas, o anjo mostra-se arrebatado pelo passado. Onde, diante de nós, acumulam-se catástrofes que buscamos não repetir, ele vislumbra seu horizonte. O anjo invertido não se detém para despertar os mortos, lamentá-los. Em vez disso, exalta tiranos e torturadores, jagunços e carrascos, linchadores e estupradores. Assim recompõe, de corpo em corpo, os fragmentos de um projeto sempre à espreita: a normatização da barbárie. A tempestade que sopra parece incapaz de conduzi-lo ao futuro. O anjo se fecha, cada vez mais, em seu universo particular, maravilhando-se com fantasias, entregando-se ao passado. A pilha de escombros cresce sobre seus pés. Ele quer fazer das ruínas sua morada. O que chamamos de país é um anjo que contempla o futuro como retorno do passado. A tempestade, a esperança teimosa que, com o pouco de ar que ainda lhe resta, resiste ao soprar.
II
Ainda nem nos aproximamos da fase mais aguda da Covid-19 no Brasil e a catástrofe já anuncia sequelas incorrigíveis. Sem embargo, mesmo diante do mundo em suspensão, Jair Bolsonaro insufla sua claque de seguidores contra as evidências que, em breve, o afogarão. De um lado, aposta seu mandato nas prospecções fictícias de conselheiros devotos e no que “crê ser verdade”, gabando-se de uma espécie de antolho ideológico que o impede de ver um palmo à frente. De outro, potencializa as narrativas de vitimização e hostilidade contra mídia, governadores, comunidade científica e entidades internacionais, inimigos que, para ele, formatam um complô de “globalistas” cujo objetivo é derrubá-lo. Esse desprezo pelos potenciais riscos da pandemia o tem convertido em “o líder negacionista do coronavírus”. Quanto mais acumulam-se infectados e mortos pelo Brasil afora, tanto mais o seu negacionismo adquire fisionomia de projeto. Nos vemos submetidos a duas ordens de infortúnios: a escalada do vírus e a permanência de Bolsonaro no poder. No fundo do espelho para o qual miramos, percebemos o reflexo perturbante do projeto colonialista que nunca deixou de estar presente. A velha tragédia brasileira retorna – afinal, estamos há mais de 500 anos exterminando corpos, silenciando saberes e enterrando diferenças em valas comuns.
III
De forma inédita, a nível mundial, experimentamos a aflição de viver uma distopia que habitou as mais inventivas tradições literárias. De Mary Shelley a Octavia Butler, de Aldous Huxley a José Saramago, de George Orwell a Margaret Atwood: no retrato ficcional que forjaram dos reveses da história, entrevemos os prenúncios do nosso colapso civilizacional. Tudo indica que os impactos da Covid-19 serão imensuráveis. No Brasil, projeções apontam para a perda de milhares, senão milhões, de vidas, para além do desarranjo dos sistemas social, econômico e sanitário. Para atenuar os efeitos e poupar o sistema de saúde de uma falência que acarretará o aumento exponencial dos mortos, recomenda-se a adoção de medidas de mitigação do contágio.
Nem todos os caminhos a serem seguidos são evidentes. Mas há dois consensos internacionais: é preciso que a pandemia seja levada a sério e que o poder público adote, de um lado, protocolos de isolamento horizontal para impedir a transmissão massiva do vírus e, de outro, ações para reduzir os impactos socioeconômicos da crise. O problema é que Bolsonaro reúne no currículo apenas vícios, limitações intelectuais e desprezo pela vida alheia. Mesmo sem berrar palavras tétricas quando externaliza esse desprezo, sua pulsão de Thanatos, como na retórica nazifascista, glorifica o “corpo são” e a resistência do “atleta” – supostamente invulnerável.
Esse ato discursivo “falho” reflete uma mistura de higienismo com eugenia, na medida em que sugere que estaríamos diante de uma situação na qual os “fortes” devem sobreviver e os “fracos”, sucumbir. Bolsonaro é nosso maior verdugo, diante de quem o jargão “não há nada tão ruim que não possa piorar” cai por terra. Suas atitudes irresponsáveis, por ação ou omissão, arremessam as vidas das pessoas para dentro de um triturador de futuros. Seus pronunciamentos intransigentes, suas condutas inconstitucionais, a instrumentalização constante da mentira e a mudança de “tática” ao sabor das conveniências dos aliados, dos humores do mercado e das hashtags das redes sociais, compõem seu método de gestão da crise.
IV
Países que vêm obtendo êxitos no combate à pandemia, além de seguirem as medidas sanitárias para achatar a curva de contágio, buscam alternativas para evitar o colapso socioeconômico de seus países: linhas de crédito, suspensão no pagamento de dívidas, implantação da renda básica, repasse de recursos ao sistema de saúde, abandono do teto de gastos. Mais do que nunca, o neoliberalismo pede socorro ao Estado – que tanto insiste em desdenhar – em busca de proteção.
Na contramão, Bolsonaro reitera um discurso alinhado à cartilha dos setores da elite econômica que o elegeram, ao mesmo tempo em que satisfaz sua horda de acólitos conspiracionistas, ainda numerosa. Somos compelidos a juntar às sempiternas disputas políticas (civilização x barbárie) e socioeconômicas (trabalho x capital), uma disputa médico-sanitarista (vida x morte). “O Brasil Não Pode Parar” é o mote de sua cruzada contra as evidências e a vida. Do confinamento de nossas casas, com panelas nas mãos, gritamos de volta: “Quem pode morrer para que a economia não possa parar?”. Cria-se a ilusão de uma escolha de Sofia que não existe.
Há uma outra cruzada bolsonarista: contra classes vulneráveis. O neoliberalismo sempre operou com o aparato do cálculo, vertendo vidas em algarismos. Nesse sistema, algumas existências valem mais que outras, em razão de seu potencial produtivo. A implicação dessa lógica é que aqueles que “não têm valor”, não pessoas, podem ser mais facilmente descartados, pois constituem, segundo Judith Butler, corpos passíveis de eliminação e extermínio. O desprezo pela saúde dos mais frágeis e a lógica do sacrifício de vidas precárias habitam o sistema biopolítico do “neoliberalismo autoritário”. Seja na Turquia ou nas Filipinas, na Hungria ou nos EUA, na Índia ou no Brasil: a perversidade se acha no cruzamento de práticas antidemocráticas, nacionalismos econômicos, xenofobias e racismos oficializados e racionalidades capitalistas ampliadas às decisões sobre quem deve viver e quem pode morrer.
Mas o que fazer com aqueles que estão condenados a essa existência sem valor? O que fazer com os corpos matáveis que já se acumulam? Para Achille Mbembe, experimentamos um outro estágio da autoritária gestão neoliberal, o “necroliberalismo”, concepção de política na qual a vida é objeto de cálculo estatístico e, por isso, se esvazia de valor intrínseco. A importância da vida depende do grau de objetificação que a balança usurária do “estado-mercado” determina. Muitas pessoas ainda insistem em dizer que estaríamos diante de um vírus igualitário, já que somos todos vetores de propagação e alvos de contágio. Contudo, sob quais condições se dão o contágio, a moléstia, a hospitalização, o cuidado e a sobrevivência? Quem é obrigado a escolher entre o isolamento ou o trabalho? Quem perde emprego, fonte de renda e, com efeito, passa a depender de pacotes de ajuda emergencial? Quem tem acesso a leitos de UTI, aparelhos respiratórios, planos de saúde e medicamentos? Quais corpos, de que classe, raça e gênero serão recolhidos das calçadas, lançados em valas comuns, velados sem testemunhas? Na encruzilhada de privilégios e direitos, quem morre? O descarte de vidas precárias ocorre tão logo elas se mostrem pouco prestadias às engrenagens deste grande engenho colonial do qual nunca saímos.
V
Há três lições a serem tiradas do fascismo histórico para pensar o necroliberalismo autoritário do Brasil bolsonarista. A primeira é que ele depende de apoio popular, diferente de outros tipos de tirania. O segundo é que implementa, em meio aos ânimos de uma minoria ressentida – e que anseia por tornar-se colaboracionista do regime –, um “tribunal moral”, cuja retórica é a da perseguição e eliminação do “outro”. O terceiro é que o fascismo cresce à medida que há a maturação de um anti-intelectualismo despudorado, somado a um repúdio à cultura popular, à recusa do afeto como forma de sociabilidade, à negação das diversidades, à condenação do pluralismo religioso e a negacionismos de múltiplas naturezas.
Todos os dias, “perversidades do mal” são proferidas por quem tem consciência do que está por trás dos discursos de ódio e da gramática de eliminação do “outro” capitaneadas por Bolsonaro. Essas perversidades compõem aquilo que o filósofo jamaicano Charles Wade Mills chamou de “ignorância agressiva”. Inocentemente agressivos, aqueles que seguem endossando o histrião do presidente, bem como os fundamentos ideológicos que guiam o seu mandato, têm a marca do que Hannah Arendt denominava “responsabilidade coletiva”. Por isso, os colaboracionistas devem ser corresponsabilizados pela catástrofe que se anuncia. Ao assimilar e aplaudir a ideologia de seus “mitos”, assinam um pacto coletivo em prol da barbárie.
VI
Nas idas e vindas de seus pronunciamentos, cujo pêndulo move-se da dissimulação à inverdade, Bolsonaro encena seu jogo: a articulação entre ultrapolítica, que militariza discursos e práticas, decretando guerra contra os “outros”, e pós-verdade, que abusa da porosidade da opinião pública para impor regimes de verdade por meio de apelos emocionais que ignoram fatos. Ainda que altere o tom das falas conforme as circunstâncias, segue manipulando informações ao ponto de cultivar e difundir o que Primo Levi denunciou como “verdades de conveniência”.
Tomemos dois exemplos. Primeiro, Bolsonaro lançou uma MP que, em um de seus artigos, desobrigava empregadores a pagarem os salários de seus funcionários durante quatro meses. No mesmo dia, após pressão popular, voltou atrás. Segundo, aventou a possibilidade de um voucher de R$ 200 para trabalhadores informais. Ao sofrer rechaço devido à timidez da medida, e com a oposição ganhando espaço com um projeto de renda emergencial no valor de R$ 600, decidiu omitir a proveniência do plano, de modo a capitalizar politicamente sobre a ideia, vendendo-a, em rede nacional, como fruto de sua gestão. A fingida preocupação com camelôs, diaristas, comerciantes e caminhoneiros o levou do lema “O Brasil Não Pode Parar” a uma “paternidade” inautêntica da renda mínima – bandeira história da esquerda.
Não se trata só de uma guerra de narrativas. A inconsistência discursiva de Bolsonaro é um projeto que inclui, além da manipulação da verdade e a difusão da desinformação, uma ignorância calculada que, no limite, nos lança para dentro de uma realidade política em que a mentira é instrumentalizada como método. O slogan de Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler – “uma mentira contada mil vezes torna-se verdade” –, ressurge e, de forma velada ou cínica, nos afoga com mensagens falsas que os seus robôs ajudam a difundir nas mídias sociais.
VII
O Brasil é latifúndio de experimentações para uma direita republicana de ocasião, autoritária por convicção. Fundado por uma oligarquia agromercantil a partir de um republicanismo frouxo que se queria renovador, o “moderno” estado nacional erigiu seus alicerces sobre ideologias que normatizaram hierarquizações raciais, eugenia, desigualdades e violências, usadas como sistema de governança. Esse “mal de origem” se faz presente em colonialidades difíceis de serem extirpadas dos nossos cotidianos. Frantz Fanon atentou para esse “germe de decadência” que os processos coloniais legaram às instituições sociais, políticas, econômicas, culturais e mentais de povos subalternizados. No Brasil, a implicação dessas colonialidades acabou por figurar uma síntese perigosa entre o mandonismo delinquente das elites políticas e o serventilismo necroliberal das elites econômicas. Esse arranjo vem atuando em conjunto para debilitar, cada vez mais, as políticas de amparo social conquistadas em governos passados, ao mesmo tempo em que aceleram desregulações que afetam outros setores-chaves, como o financeiro e o ambiental. A essa combinação destrutiva, somam-se, ainda, um moralismo arrogante e um vira-latismo cafona das nossas classes médias.
Em tempos de pandemia, o desatino moral de um mandatário que vive orgulhoso nos porões da incivilidade indicam prejuízos sem precedentes para a nossa história. Em sua obra Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi afirmou: “poucos países se podem dizer imunes em relação a futuras ondas de violência, geradas por intolerância, vontade de poder, razões econômicas, fanatismos religiosos, cegueiras políticas e atritos raciais. É preciso, pois, despertar nossos sentidos”. O incêndio sempre esteve aqui – e agora nos salta aos olhos. Suas chamas ardem, por exemplo, quando Jair Bolsonaro e seus colaboracionistas intentam uma revisão da ditadura militar. Defendem e celebram um regime que se utilizou da tortura e do estupro como métodos de interrogatório, da morte e do desaparecimento de corpos como política de Estado. Com isso, provam-se, além de colaboracionistas, seviciadores em potencial que se alimentam, de forma necrofágica, do ódio ao “outro”. Este é o Brasil bolsonarista: o pais cuja vocação é a carnificina.
VIII
Há um trecho genial em As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele, até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer, de dentro do inferno, o que não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
Que tenhamos força para, em meio à catástrofe anunciada por esta epidemia dupla, política e sanitária, saber quem e o que não é inferno. Para tanto, precisamos defender, contra a barbárie, o que nos resta de civilidade nos âmbitos ideológicos, políticos e institucionais: a liberdade de expressão, de imprensa e de cátedra, a educação pública, as manifestações culturais, o antirracismo e o combate incondicional a qualquer espécie de preconceito, a diversidade sexual e de gênero, o pluralismo religioso e o exercício da solidariedade, do afeto e da empatia. Afinal, estes são os alvos que Bolsonaro e seus colaboracionistas tanto desejam destruir, diariamente. Antes que “a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado”, nos alerta Walter Benjamin. Sabemos quem é o pavio. Seu desejo é tudo e a todos incendiar, para que o passado, que tanto o arrebata em suas fantasias, retorne. Mas a tempestade que sopra é uma esperança teimosa. Aprendamos com o grande pensador e líder indígena Ailton Krenak: é o vento da esperança que nos ajudará a adiar o início do fim do mundo que se nos apresenta.
* Bruna Triana é doutora em Antropologia Social pela USP.
** Lucas Oliveira é professor do Departamento de Sociologia da UFBA.