Por ALEXANDRE DE FREITAS BARBOSA*
A falta de charme da nossa mídia burguesa e o novo presidente do IBGE
Começava o dia 24 de julho de 2023. Uma, duas, três, quatro matérias da grande mídia impressa e televisiva se sucediam num ato orquestrado com a intenção de impedir a nomeação do economista Marcio Pochmann para a presidência do IBGE.
Não importa quem dá o comando. O comportamento é de rebanho: “terraplanista econômico”, “heterodoxo da Unicamp”, “vai maquiar os dados da inflação”, “não é especialista em demografia e estatística”, “ligado ao Petê”, “economista militante e partidário”.
Ora, um oligopólio é sempre um oligopólio. E quando produz (des)informação, faz o que bem entende com ela. Busca-se uma fonte (ora, a fonte!) e a dita cuja fala pelo jornalista.
A nossa mídia burguesa, hoje unificada pelos interesses rentistas, atua de maneira insidiosa. Porta-voz do establishment econômico, ela toma partido e escolhe os seus inimigos políticos – aqueles que devem ter as suas trajetórias e ideias conspurcadas. Apoia-se nos economistas com frases feitas para o gosto do freguês (“O Brasil precisa de reformas, reduzir os gastos, se quiser baixar os juros”). Estes nobres sacerdotes do sacrossanto rentismo recebem frondosas páginas de entrevistas nos jornais ou banquetes agradáveis nos programas de televisão.
Como explicar a ojeriza da mídia rentista ao economista Marcio Pochmann?
Poucos intelectuais brasileiros se dedicaram, como ele, a mensurar, mapear e compreender as metamorfoses da desigualdade no Brasil contemporâneo. Marcio conhece como ninguém as bases de dados do IBGE, tendo publicado inúmeros livros por várias editoras brasileiras, olhando com lupa os indicadores econômicos e sociais, de modo a explicitar o funcionamento do nosso capitalismo dependente.
O professor titular do Instituto de Economia da UNICAMP, durante a sua profícua vida acadêmica, buscou compreender as relações entre o capitalismo, o emprego e as políticas sociais. No seu doutorado, investigou a construção do Estado do Bem-Estar Social nos países desenvolvidos. Daí em diante, procurou sempre casar um olhar empírico com o movimento mais amplo da história, mirando nas possibilidades de transformação da sociedade brasileira. Portanto, manteve-se fiel à tradição da Unicamp, escola herdeira do pensamento de Celso Furtado no Brasil.
Conheci Marcio Pochmann em 1995, quando trabalhava como economista na Secretaria do Trabalho do governo do estado de São Paulo, então sob a liderança do saudoso Walter Barelli. Pochmann, já professor da Unicamp, assessorava o governo do PSDB na organização das bases de dados (muitos deles produzidos pelo IBGE) com o objetivo de aprimorar as políticas de emprego estaduais.
Durante os anos 1990, Marcio Pochmann se destacou como intelectual público, lançando seu arsenal analítico ancorado numa verdadeira torrente de dados, a maioria do IBGE, para demonstrar os impactos negativos do governo FHC sobre o mundo do trabalho. Nessa época, a mídia burguesa não vivia sem os seus estudos. Bons tempos aqueles em que ela se fazia passar por crítica e plural!
Em 2001, Marcio Pochmann assumiu a Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) na gestão Marta Suplicy como prefeita de São Paulo. O então jovem economista criou uma secretaria literalmente do nada, que em poucos meses lançou os programas sociais da prefeitura, uma das marcas registradas daquele governo. Antes de iniciar a execução dos programas, a sua equipe realizou um mapeamento dos 96 distritos da cidade de São Paulo. Criou para isso o Índice de Exclusão Social (IES), por julgar insuficiente o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Utilizou para tanto, em grande medida, os dados do IBGE.
Assim teve início a série de livros Atlas da Exclusão Social, publicada pela editora Cortez, que começou com a cidade de São Paulo e se expandiu para o Brasil, atualizada em 2014 e 2015, com base nos dados do Censo do IBGE de 2010. Os indicadores eram apresentados de forma didática e por meio de mapas, permitindo uma visualização da exclusão social nas suas várias dimensões. O material chegou às universidades e foi usado inclusive no ensino médio, pois o nível de desagregação abarcava as unidades da federação. Gestores públicos de todo o Brasil se tornaram ávidos consumidores destes livros, como pude presenciar inúmeras vezes.
Esse é outro dos méritos de Marcio Pochmann. A prática da pesquisa vem associada a uma atividade de pedagogia política. No seu entender, a compreensão da economia e da sociedade não deve ficar circunscrita aos papers e revistas especializadas. Precisa circular, como ele circulava pelo Brasil afora, nos tempos da SDTS, e depois no IPEA, para participar de encontros e seminários com professores, estudantes, militantes sociais e gestores públicos. Para interagir com diversos segmentos da sociedade, pensando em novas propostas para o Brasil e sempre se baseando nos dados do IBGE.
Nos tempos da prefeitura de São Paulo, foi criado o Programa Renda Mínima, concebido na SDTS e liderado pela saudosa Ana Fonseca, que depois se mudou para Brasília e contribuiu para a estruturação do Programa Bolsa Família, já no governo Lula. Portanto, uma das sementes deste programa foi plantada na gestão de Marcio Pochmann na secretaria do trabalho da cidade de São Paulo.
Seu ingresso no IPEA trouxe novos ventos à instituição. Marcio Pochmann estabeleceu conexões entre o instituto de pesquisa do governo federal com várias universidades brasileiras e associações de pesquisadores de variadas áreas das ciências sociais. Promoveu debates com economistas de diferentes orientações ideológicas e realizou um concurso, amplo e plural, franqueando acesso ao IPEA de pesquisadores de diversas áreas de conhecimento. A instituição deixou de ser um espaço apenas de economistas com a criação de áreas dedicadas ao estudo das relações internacionais, da questão ambiental e do papel do Estado e da democracia. Além de estar sintonizado com a agenda das políticas públicas do governo, o órgão tornou-se ativo no debate sobre estratégias de desenvolvimento e – importante mencionar – criou o seu próprio curso de mestrado para servidores do governo federal.
Nos anos 2010, Marcio Pochmann esteve à frente da Fundação Perseu Abramo do PT. Todos os partidos políticos têm a sua própria fundação para produzir estudos e pesquisas de modo a qualificá-los no debate público e democrático, não é só o “Petê”. Marcio Pochmann transformou a fundação num órgão de reflexão sobre a sociedade brasileira, ampliando as suas interações com o mundo universitário e tornando seus estudos acessíveis às bases do partido e aos cidadãos brasileiros (muitos deles podem ser baixados no site da instituição). A sua preocupação com a formação de quadros, quase uma obsessão, também aqui se fez presente por meio da criação de um curso de mestrado na Fundação Perseu Abramo.
Há quase trinta anos acompanho a trajetória de Marcio Pochmann. Tive a oportunidade de trabalhar na sua equipe, escrever artigos e livros com ele e acompanhar a transformação empreendida em cada uma das tantas instituições por onde passou. Sempre com um sentido de missão, respeitando e valorizando o conhecimento do corpo técnico, com quem mantinha uma relação de camaradagem e parceria, pois acima de tudo ele é um estudioso do Brasil. Com o perdão do exagero, tenho a sensação de que os dados do IBGE circulam por suas veias.
Lembro-me com satisfação das várias vezes em que me chamou na sua sala, propondo escrever um artigo, depois de passar a noite em claro debruçado sobre a tela do Excel. Ele vinha com os dados do IBGE, sugerindo novas interpretações sobre a sociedade brasileira. Marcio Pochmann é o pesquisador mais curioso e ousado, e por isso o menos dogmático que conheci até hoje.
Outra qualidade de Marcio Pochmanné a sua habilidade política e a capacidade de forjar consensos. Não tem tempo ruim com ele. Difícil não se tornar seu amigo. Desarma seus contendores com uma boa piada. Ministra Simone Tebet, você que não o conhece, vai se surpreender com a sua cordialidade e capacidade de trabalho.
Espero ter respondido à pergunta acima sobre o porquê da ojeriza da nossa mídia rentista ao economista Marcio Pochmann. Ela se move por valores muito diversos dos que nortearam a vida deste economista, nascido numa família simples do interior do Rio Grande do Sul, que aprendeu em casa a cultivar a decência, a solidariedade e a justiça.
Aos jornalistas da mídia rentista: agora é oficial, no dia 26 de julho, o presidente Lula bateu o martelo e Marcio Pochmann se tornou o novo presidente do IBGE. Saibam que ele não é dado a revanchismos e adora dar entrevistas. Podem agendar e se preparem: com base nas pesquisas do IBGE, ele poderá assegurar as condições para que os pesquisadores do país revelem as tantas faces da desigualdade na sociedade brasileira; além de capacitar o governo com indicadores para realizar o inadiável planejamento com desenvolvimento e transformação social. Apenas deem-lhe alguns meses para por a casa em ordem.
“Faça o Brasil a estatística que deve ter, e a estatística fará o Brasil como deve ser” – este era o lema do idealizador do IBGE, o baiano Mário Augusto Teixeira de Freitas, durante a preparação do Censo de 1940.[i] O dístico positivista de culto à ciência segue válido, mas precisa se atualizar para um contexto de democracia e participação social.
Portanto, a reconstrução nacional exige um IBGE vigoroso, dotado de autonomia, empenhado na valorização dos seus quadros técnicos e mantendo constante diálogo com as universidades do país. Para isso, o Marcio Pochmann é o cara!
Do jeito que a coisa anda, é capaz de “toparmos” com um novo projeto de desenvolvimento mais adiante. E parte da mídia burguesa, depois de botar a mão na consciência e fazer a sua autocrítica, pode e deve engrossar esse caldo.
*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de economia no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor, entre outros livros, de O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida (Alameda).
Nota
[i] GOMES, Ângela de Castro. “População e Sociedade”, In: Olhando para dentro, 1930-1964, volume 4 da História do Brasil Nação, 1808-2010, Schwarz, Lilia Moritz, org. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 44-46.
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