A disputa de projetos no governo Lula

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Por JOSÉ RAIMUNDO BARRETO TRINDADE*

Nos últimos meses tivemos episódios marcantes de disputas em torno de projetos mínimos de sociedade, não havendo a consolidação de uma perspectiva de ruptura com a ordem neoliberal

Nos últimos oito anos a disputa social brasileira, na situação impositiva de uma ordem totalmente subordinada aos condicionantes do neoliberalismo e de uma crescente ausência de projeto de nação, foi intensa. Estamos entrando no oitavo mês atual governo do presidente Lula, sendo que conforme a conjuntura se aprofunda temos uma frequência mais intensa, pela imposição por parte da burguesia, de uma continuidade do modelo econômico rentista e dependente estabelecido.

Não compete refazer a análise deste amplo período, mas convém rememorar que a ruptura institucional ocorrida em 2016 teve como centro o desfazimento do pacto estabelecido no início dos anos 2000, algo que já descrevemos como um “bloco histórico” construído no em torno do programa social-liberal do PT (Trindade, 2023).

A dupla interação entre pressões sociais e concessões permitiu uma capacidade de gestão do Estado nacional com certo uso social do fundo orçamentário público que possibilitou recuo da pobreza e da desigualdade social, assim a proporção de pobres cai a menos da metade no período de 2003 a 2011, passando de 22,6% para 10,1% da população nacional e a desigualdade medida pelo coeficiente de Gini cai pela primeira vez na história brasileira abaixo de 0,53 em 2011.[i].

Esses números não são desprezíveis, somente como comparação, vale lembrar que os impactos sociais do governo democrata estadunidense de Lyndon Jonhson e seu plano de “Grande Sociedade” resultou em números relativos semelhantes: em 1964 “mais de 22% dos norte-americanos viviam abaixo da linha de pobreza oficial”, em 1968 “esta percentagem tinha caído até um pouco abaixo de 13%” (Varoufakis, 2017).

Nos últimos meses tivemos episódios marcantes de disputas em torno de projetos mínimos de sociedade, não havendo a consolidação de uma perspectiva de ruptura com a ordem neoliberal, por mais que se observe importantes impasses e conflitos que definem a base das disputas sociais em curso. Vamos vê-las.

A primeira disputa se deu ainda na chamada transição de governo, em duas frentes distintas: no Congresso Nacional com a aprovação da Emenda Constitucional que definiu a flexibilidade do teto de gastos para destinação de recursos para os programas emergenciais compensatórios, particularmente o Bolsa família. Uma segunda frente de disputa se dava em torno da conformação do próprio governo, sempre tendo em vista a noção, bastante frágil e frouxa, de “governabilidade”.

O grau de consentimento teve a resistência de forças de esquerda, como resultante o arranjo foi o estabelecimento de um governo que em geral constitui um avanço social importante, seja pela constituição de Ministérios como o dos Povos Indígenas e das Mulheres, porém com orçamentos limitados e, vale observar, reconstituir políticas que já tínhamos consolidado, é o que parecia, como o caso do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e das políticas para agricultura familiar. Aspecto a ser ressaltado é que essa disputa em torno dos rumos governamentais e de sua composição continuam até aqui e serão permanentes.

A resistência irracional dos setores da mídia tradicional sobre o nome indicado para o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) somente verbalizou a discordância de parcela importante da burguesia brasileira, ao tentarem bloquear a tecnicamente indiscutível capacidade do professor Márcio Pochmann de assumir a presidência daquele central órgão de produção de bases de dados estatísticos e indicadores, imprescindíveis para qualquer sociedade minimamente racionalizada e contemporânea.

Um segundo momento ou foco de disputa, já que isso parece parte central da lógica rentista, refere-se ao tratamento da relação entre a chamada política monetária e a política fiscal.

O caráter do capitalismo das últimas décadas, a chamada neofinanceirização, se tornou o elo mais expressivo da forma como se apresenta a economia capitalista na atual quadra histórica. Como observam autores críticos a noção de “autonomia” completa do dinheiro em relação a produção, em termos do Marx a crítica a economia vulgar, que considera que o dinheiro brota em árvores, tal como as “parreiras produzem peras”, ou ainda a perspectiva mais forte na teoria neoclássica que as mercadorias chegam ao mercado sem preços e o dinheiro sem valor.

Alguns autores, comentados parcialmente por Eleutério Prado, no site A Terra é Redonda, reforçam a construção desenvolvida por Marx de que somente a produção de excedente, material ou de serviços, mediante exploração de trabalho social, possibilita expansão da riqueza. Este aspecto é central para o entendimento das sociedades dependentes, como o Brasil e outras nações se enquadram neste multiverso capitalista.

Na nossa perspectiva somente se mantem uma economia-mundo capitalista com regime rentista, ou financeirização, durante tantos anos (quatro décadas), se tivermos sociedades periféricas fornecedoras de valor-riqueza, em oposição a valor-fictício (papéis que nada valem, mas transferem e concentram riqueza), possibilitando crescente economia de “despossessão” ou espoliação, ou seja, retirada de “direitos” de propriedade individuais ou sociais e transferência para um pequeno grupo de ultra bilionários.[ii]

A situação brasileira deriva da sua condição de sociedade periférica, mesmo que avançada, e, ao mesmo tempo, com forte presença de organizações sociais de esquerda, um caso próprio de impasse entre a disputa social por um modelo não neoliberal e a subordinação obsequiosa da classe dominante ao centro capitalista, garantindo a manutenção de um padrão de transferências de valores regulares e necessários ao próprio regime rentista mundializado.

Assim como tratou Yánes Varoufakis (2017) e sua tese de que o capitalismo existe com base em “reciclagem de excedentes”,[iii] e que o sistema se encontra em crise desde 2008, o autor grego levanta a hipótese de que o poder estadunidense está com seus dias contados, porém apresenta uma enorme reserva de “vassalagem” que possibilita a continuidade de um regime moribundo. A esquizofrenia fiscal e o “austericídio” são parte desse padrão crítico de manutenção tanto do regime neoliberal, quanto do poder central estadunidense.

Assim, o confronto interno ao governo Lula se manifesta numa grande dificuldade de ruptura com o estrangulamento fiscal, algo visível nos limites do chamado “arcabouço fiscal”, isso pela necessidade de manutenção do esforço de transferência de valores do Estado vassalo brasileiro ao centro capitalista, necessidade que se expressa pela lógica continuada do sistema de recompras garantidas dos títulos da dívida pública, base da manutenção dos juros extorsivos.[iv] A ruptura com esse formato seria, talvez, a maior conquista econômica e social favorável a população trabalhadora brasileira.

Um terceiro momento de disputa interna se relaciona a gestão de setores econômicos estratégicos para sociedade brasileira, especialmente petrolífero e energético. Um dos pontos explicativos do golpe de 2016 se relaciona ao controle privado e rentista das duas empresas estratégicas mantidas pelo Estado nacional, tanto no caso da Petrobras quanto da Eletrobras temos um conjunto de fatores essenciais a macroeconomia nacional que, sob diversas formas, possibilitariam alterações qualitativas no atual quadro de desindustrialização e crescente reprimarização  econômica, seja pelo insumo energético, seja pela base de alavancamento de investimentos que essas duas empresas possibilitariam.

Como observamos em artigo recentemente publicado na Revista de Estudos Sociais (RES) da Universidade Federal do Mato Grosso,[v] referente a análise da Companhia Vale S/A, maior player nacional do setor de mineração, mas plenamente aplicável aos dois casos aqui tratados, os ganhos rentistas dos controladores acionários das empresas induzem estratégias empresariais baseadas somente na maximização dos referidos ganhos, o que se reflete numa lógica de crescente exploração da força de trabalho e na extração espoliativa de riquezas naturais, reduzindo a intensidade tecnológica, os investimentos em políticas de controle ambientais e expandindo a distribuição de dividendos.[vi]

A retomada estratégica da Petrobras e Eletrobras se encontra no mesmo nível de dificuldade da retomada, mais que necessária, do controle estatal brasileiro sobre a Companhia Vale, como neste caso temos uma enorme dificuldade, seja pelos interesses que se consolidaram nos últimos sete anos, seja pela ausência de um projeto nacional mais vigoroso e que reorganize a base reprodutiva econômica do país.

A disputa social no interior do governo Lula é, portanto, parte da própria disputa pela ruptura com o modelo neoliberal assentado faz quatro décadas, porém renovado permanentemente pelos impasses de uma sociedade que se tornou incapaz de romper com a atávica dependência aos interesses dos segmentos rentistas do capital.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência e os limites do capitalismo periférico brasileiro e seus condicionantes regionais (Paka-Tatu).

Referências


BORGES, Gedson Thiago e TRINDADE, José Raimundo Barreto. Economia política da financeirização no segmento mineral brasileiro: o caso da Vale S/A. IN: Revista de Estudos Sociais, 24(49), 45–69. https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/res/article/view/14941.

HARVEY, David. A loucura da razão econômica. São Paulo: Boitempo, 2018.

KLIASS, Paulo. Bancos, Lucros e Juros. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Bancos-lucros-ejuros/7/45018

TRINDADE, José Raimundo Barreto. A disputa das ideias na atual conjuntura: neoliberalismo, resistência e redes sociais. Belém: Editora do ICSA, 2023.

TRINDADE, José Raimundo Barreto. Crítica da economia política da dívida pública e do sistema de crédito capitalista: uma abordagem marxista. Editora: CRV. 1 Ed. Curitiba, 2017.

VAROUFAKIS, Yánis. O Minotauro Global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

Notas


[i] Conferir Sônia Rocha. Pobreza no Brasil: A Evolução de Longo Prazo (1970-2011). Disponível em: http://files.dohms.com.br/idpsite/arquivos/material-de-apoio/texto-04–prof.-marcelo-proni–pobreza-no-brasil-a-evoluc%C3%A3o-de-longo-prazo.pdf. Sônia Rocha mostra que o declínio da pobreza foi estruturalmente acentuado no período em questão, sendo que a melhora nos indicadores de desigualdade foi sensível comparado com às décadas anteriores.

[ii] Em relação a acumulação por espoliação, podemos definir como um processo histórico de reprodução do capital com base na apropriação de riqueza ou propriedade previamente existente. Esse processo implica na retirada de direitos da pequena propriedade ou de privatização de propriedades públicas ou estatais, algo mais característico do avanço do capitalismo nos países periféricos ou dependentes nas últimas décadas, ver Harvey (2018).

[iii] A noção do autor de “reciclagem de excedentes” refere-se a tese de que o capitalismo ao fazer uma “superprodução” de excedentes necessita de um duplo mecanismo de realização dos referidos excedentes: “um do futuro para o presente”, o que constitui o sistema de crédito e outro espacial, “de uma região para outra”, o que constitui os fluxos comerciais e de capital. Essa interpretação é próxima a que utilizamos sobre a dívida pública enquanto “mecanismo de reciclagem de capital de empréstimo”, ver Trindade (2017).

[iv] O sistema de recompras garantidas foi instituído ainda durante a Ditadura Militar e Empresarial, em 1974, segundo informações oficiais consolidadas e disponíveis na página da Secretaria do Tesouro Nacional, de janeiro de 1997 até maio de 2019 “o Brasil retirou de seus valores orçamentários o valor total de R$ 5,4 trilhões (a valores corrigidos para os dias de hoje)” para pagamento de juros e serviços da dívida pública (Kliass, 2019).

[v] Ver Borges e Trindade (2023).

[vi] A estratégia de maximização do valor ao acionista repercutiu também na redução dos investimentos referente à sustentação da operação da Companhia Vale, de modo que isso influenciou nas condições das barragens como mostraram as tragédias de Mariana e Brumadinho, como apontou Belluzzo e Sarti (2019) “os investimentos de manutenção de operações foram reduzidos sistematicamente no período 2014-2017 (…), observa-se que os gastos em ‘pilhas e barragens de rejeitos’ foram reduzidos pela metade entre 2014 e 2017 (US$ 474 milhões para US$ 202 milhões)”.


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