Por LUIZ MARQUES*
As ideologias servem à dominação e à emancipação. Interpelam a subjetividade da cidadania e são interpeladas pela posição objetiva das classes na sociedade
A exemplo da burguesia no século XVIII, o proletariado em ascensão na sociedade industrial foi o sujeito da história nos séculos XIX e XX: “o grande responsável por um enfrentamento social ao capitalismo”, escreve o sociólogo sueco da Universidade de Cambridge, Göran Therborn, no ensaio “Novas massas?” (Revista Piauí, abril / 2014). Depois dos anos 1980, porém, a desindustrialização deteve e inverteu a marcha do operariado no Norte. Ao Sul, a industrialização avançou na América Latina, Ásia e África. A má notícia – não se forjou alternativas à heroica classe de macacão azul ou aos movimentos anticolonialistas. A boa – surgiram grupos com críticas anticapitalistas latentes.
Os trabalhadores industriais em regiões decadentes; a massa excedente no circuito da produção; a juventude da classe média endividada com os bancos de crédito financeiro; e os povos originários em defesa de territórios e estilos de vida, hoje, constituem as bases sociais de uma recusa radical ao modelo neoliberal de exclusão. Falta-lhes uma coordenação para: (a) gerar um polo associativo dinâmico em defesa dos “humilhados e ofendidos”; (b) estimular a imaginação democrática através de um processo cumulativo de bandeiras civilizatórias; sem preconceito, ressentimento ou inveja.
Forças anticapitalistas
A dialética do trabalho assalariado não perdeu a validade. O “valor” segue existindo, não houve a metamorfose para a “economia de serviços”. A mão de obra remanescente nas indústrias é capaz de assustar, não derrubar o establishment. Em 2010, na França, operários ameaçaram interromper o abastecimento de gasolina; em 2012, ocuparam fábricas – ficou nisso. Mas ao promover “guerras de posição” nas estruturas de dominação do sistema, os metalúrgicos auxiliam a decifrar os grilhões.
No país, conforme anota Gilberto Maringoni no artigo “Viralatismo em marcha”, do livro Resgatar o Brasil, organizado por Jessé Souza e Rafael Valim: “O avanço da automação e da robótica nos processos produtivos, combinado com novas formas de gestão, impacta o nível de emprego com a chamada Revolução 4.0 na indústria. Plantas fabris complexas – em especial de bens duráveis – apresentam uma altíssima produtividade e número decrescente de operários”. O apoio do BNDES à reindustrialização é uma estratégia desenvolvimentista racional, ao revés de um suspiro analógico.
A segunda força crítica reúne o subproletariado: camponeses sem-terra e batalhadores urbanos informais que moram em favelas tidas por redutos das “classes perigosas”, logo, vítimas frequentes de violência policial. Nos Estados Unidos e na Europa, o seu equivalente acha-se nos hispano-americanos, árabes, curdos, turcos, persas, africanos e nos juvenis imigrantes que, sem um futuro, ameaçam a estabilidade sistêmica. Uma ira represada dá mostras de um estopim explosivo contra os despejos, por água, eletricidade e transporte sobretudo no cinturão de Paris. Os protestos se dirigem à austeridade econômica. Move-os a procura da identidade coletiva e de meios para a subsistência.
No país, a população expulsa do emprego formal afora se desdobrar em aplicativos, sem o vínculo empregatício admitido (iFood, Uber), sofrem déficit organizativo pela pulverização geográfica. No entanto, guardam a chama da rebeldia. Encenam uma solidariedade oposta ao hiperindividualismo e à superexploração. Importam na definição de fórmulas normativas de ação para nutrir a resiliência e combater as desigualdades, de qualquer tipo. A precarização do trabalho serve de pano de fundo.
A terceira força crítica surge das contradições do capitalismo financeirizado, no intermezzo social. Em 2011, os estudantes tiveram papel importante em vários lugares (Espanha, Grécia, Oriente Médio) e no Occupy Wall Street, em New York. Em 2013, a classe média ensejou atos confusos (Turquia, Brasil). Se não desestabilizou a burguesia, derrubou governos (Egito, Tunísia). O nó górdio dos novos sujeitos é tirar da sombra os sujeitos ocultos, no cassino das finanças. “O poder, cadê o poder?”, pergunta Emir Sader, percorrendo as teorias com a lanterna de Diógenes.
No país, o contingente de universitários saltou de 3,5 milhões para 8 milhões com a fundação de 18 universidades e 173 campus para a interiorização do ensino superior, nas administrações populares. As cotas etnorraciais das instituições federais e, nas privadas, do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) propiciaram mobilidade social. Se a pequena burguesia não é a favor da democracia, não se conclui que seja um náufrago à espera da tábua de salvação para chegar ao Estado de exceção.
A quarta força crítica é representada pelos povos “pré-capitalistas”. Sua resistência se estende internacionalmente. Na Bolívia, mineiros socialistas demitidos das minas de cobre plantam coca e organizam os indígenas, na coalizão governamental. Ministérios nativos rompem o isolamento após 500 anos de solidão, há mais tempo que na ficção do escritor colombiano. Governanças inclusivas nas Américas (Sul e Central) têm obrigação política e moral de reparar sequelas do período colonial.
No país, as ruínas das povoações na terra brasilis passam pelo extermínio dos primeiros habitantes e dos negros escravizados. Prosseguem na gentrificação do neoliberalismo que soma desigualdades. Na Amazônia, o genocídio e a devastação da floresta derivam do garimpo ilegal de ouro, diamantes e cassiterita (um mineral portador de estanho), e dos óbitos por desnutrição. O mercúrio que polui os rios inviabiliza a pesca e a caça. Urge um balanço humanitário sobre a continuidade perversa da predominância colonialista e supremacista. Muitos podres poderes atravessaram séculos, impunes.
Uma contra-hegemonia
Para Göran Therborn, em La ideología del poder y el poder de la ideología: “As obras de Adam Smith, Marx e Darwin são obras científicas. Paralelamente funcionam qual ideologias – liberalismo econômico, socialismo científico, darwinismo social – e costumam ser estudadas e avaliadas assim”. São determinadas pelas condições materiais e o modo como as pessoas reagem ao conflito entre as forças produtivas e as relações de produção. Em tal perspectiva, são combos simbólicos. Prestam-se para justificar e mobilizar campanhas de construção de uma sociabilidade pluralista e republicana.
A pergunta é: como a “ideologia” se entrelaça com as alternativas antissistêmicas? As ideologias servem à dominação e à emancipação. Reportam práticas e teorizações, na cacofonia de signos e códigos de linguagem. Interpelam a subjetividade da cidadania e são interpeladas pela posição objetiva das classes na sociedade. A ciência, o direito e a arte não se confundem com as ideologias, mas correspondem a configurações ideológicas das épocas, às vezes com recorte nazifascista. Como no poema de Amílcar Cabral: “Quem é que não se lembra / Daquele grito que parecia trovão?!”
As ideologias pressupõem atores que são, em simultâneo, os “sujeitos da história” e os “sujeitos submetidos ao poder do príncipe”. Capacitam a ação transformadora consciente para as mudanças graduais ou revolucionárias e, a um tempo, subordinam a coletividade ao status quo. Devem ser entendidas como processos sociais, não nichos de ideias. Resultam da luta de classes. Não retratam uma “falsa consciência” em contraposição ao real, senão a expressão de interesses antagônicos.
O esforço para conquistar a contra-hegemonia coloca aos modernos demiurgos o desafio de um embate intelectual sobre: (a) o que existe e como se delineia o sistema-mundo; (b) o que é o correto e o justo, e os seus contrários; (c) o que é viável no organograma da esperança; (d) o que influencia a conversão do militante engagé em um agente de causas pragmáticas. Weberianamente trocou-se a vocação de viver para a política pela profissão de viver da política. Menos utopia, mais hipocrisia.
Frente a crise climática, a ameaça da guerra atômica e a erosão da democracia ocidental, a quem recorrer? A resposta está em revitalizar o Fórum Social Mundial (FSM) para além do intercâmbio de experiências, com funções de direção e organização, de um lado; de outro, em intervir no aparato político-institucional que mantém uma capacidade de ação, legitimidade e instrumentos para impor certas decisões. A conjuntura é de acúmulo. O movimento do Estado para inserir o Plano Plurianual Participativo na institucionalidade prova a fragilidade da sociedade civil, mas também o sem rumo momentâneo das classes dirigentes. O novo está nascendo, apesar de o velho ainda não ter morrido.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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