Por BRUNO BOTELHO COSTA*
Considerações sobre o livro recém-lançado de Débora Mazza
O livro de Débora Mazza é uma obra documentada que nos abre as portas de um Paulo Freire (1921– 1997), ao mesmo tempo, íntimo e público, conhecido e desconhecido, pois contextualiza sua vida e obra conjuntamente às de pessoas, instituições e processos que o influenciaram e o marcaram.
O texto revisita, sob olhares distintos, documentos dos primeiros Movimentos de Cultura Popular (MCP) e outras mobilizações com as quais o pensador se envolveu no início da década de 1960, bem como os trabalhos posteriores realizados no Chile, na África e em outras paragens do exílio ao qual ele foi submetido pelo governo cívico-militar golpista brasileiro. Igualmente reconta os percalços do retorno do exílio e sua difícil reinserção na sociedade por meio do ingresso na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no Partido dos Trabalhadores, na Secretaria de Educação de São Paulo, bem como, em outras esferas
No primeiro capítulo, “Uma Breve Biografia de Paulo Freire”, Débora Mazza comenta sobre as circunstâncias pessoais e familiares e os elementos socioeconômicos e culturais da família e do entorno do educador, tecendo ponderações afiadas sobre os contextos social, político e educacional em curso nos anos de 1920 a 1960, no Recife e no Brasil. A autora nos apresenta elementos da infância e juventude, o empobrecimento da família e os impactos na vida de Paulo Freire, o seu ingresso na Faculdade de Direito e os diversos momentos em que, em razão do seu trabalho político-pedagógico, foi perseguido e teve sua vida cerceada pelos opressores de plantão.
O segundo capítulo, “Paulo Freire e a constituição de um pensamento educacional”, analisa a aderência do autor ao campo da educação, destacando o trabalho à frente do Serviço Educacional da Indústria, no anos de 1947 a 1957. Neste período, presenciou a realidade e o problema do analfabetismo, assim como ensaiou algumas ações na esfera da educação de adultos através de campanhas governamentais e projetos populares.
Pouco tempo depois, escreveria Educação e atualidade brasileira na forma de uma tese para disputar o concurso público para a cadeira de Filosofia e História da Educação na Faculdade de Belas-Artes na Universidade do Recife, hoje a Universidade Federal de Pernambuco. Nesta obra, se encontram vários elementos de sua compreensão filosófica e sociológica, versando sobre a condição humana no contexto do subdesenvolvimento, a carestia socioeconômica, sanitária e de saúde, a privação sistemática a recursos formativos e criativos como educação e cultura. Posiciona-se abertamente em favor de uma educação feita pelo povo, enquanto comunidade educativa na escola e em outras instituições civis, como clubes de bairro, associação de moradores, igrejas, sindicatos, movimentos de frentes de atuação como forma de democratizar a cultura.
É no conjunto de transformações profundas que Paulo Freire, nessa época, se envolveu com a mobilização popular em Recife, cerne da organização do Movimento de Cultura Popular (MCP) que ganhava adesão de intelectuais, artistas e estudantes universitários na cidade. Não tendo ocupado o primeiro lugar no concurso à cadeira de História e Filosofia da Educação, dedica-se ao Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, instancia decisiva para o trabalho que aconteceria nos anos seguintes com a alfabetização de adultos, pois por seu intermédio as discussões dos Centros de Cultura Popular (CPC), MCP, Movimento de Educação de Base (MEB) e da universidade crítica se encontraram.
Em 1962 e 1963, pesquisas catalogaram o “universo vocabular” nos programas de educação de adultos, juntamente com a estrutura dos Círculos de Cultura idealizada e montada naquele momento, propiciando que estas iniciativas se espalhassem por outros estados do Nordeste. Dentre essas experiências, aquela realizada na cidade de Angicos, no interior potiguar, se tornaria mundialmente conhecida.
Essa decisão foi importante para que os movimentos de educação de adultos deixassem de lado as abordagens baseadas em cartilhas e gradualmente caminhassem para a abordagens metodológicas centradas nos “temas geradores” da perspectiva freiriana. A autora destaca ainda como os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais também se fizeram presentes nesse momento, como quando, o Centro de São Paulo abriu as portas para que a proposta de Paulo Freire fosse utilizada fora do Nordeste. Recorda que com o advento do golpe de 1964, essas iniciativas foram perseguidas e abortadas.
O terceiro capítulo, “Paulo Freire na Unicamp: o ranço autoritário e o verniz democrático”, elucida as condições do retorno de Paulo Freire ao Brasil em 1980 e as reações de desconfiança e descrédito suscitadas, fora e dentro dos ambientes aparentemente favoráveis à redemocratização. A década de 1980, marcada por eventos progressistas, como as manifestações pelas Diretas Já, foi também palco de exercícios autocráticos em vários setores da sociedade brasileira, incluindo a esfera de gestão universitária.
Impedido de reassumir o cargo de professor universitário na Universidade Federal de Pernambuco por força de impedimentos legais da ditadura que ainda perduravam, a UNICAMP foi uma das instituições que parte do corpo docente se empenhou para acolher Freire. Apesar do convite genuíno, “a fina camada de verniz democrático presente em alguns setores da universidade” se viu refém do “ranço autoritário (…), que graça nas câmaras acadêmicas com força e vigor, assim como a brisa alvissareira da abertura política e da retomada democrática” (p. 114).
Os comentários e ponderações do capítulo giram em torno da análise do Processo de Vida Funcional de Paulo Freire na instituição, que para além de indicar os dessabores próprios da burocracia, testemunha a reação conservadora da universidade às ações e reconhecimento obtidos pelo professor através de práticas educativas perpetuadas à margem dos protocolos acadêmicos. O dilema em meio à sua acolhida foi notadamente explicitado nos autos dos documentos, quando a alguns docentes fora solicitado que exarassem pareceres sobre a reputação intelectual e moral de Paulo Freire.
O capítulo descreve a resistência institucional de atribuir a Paulo Freire a posição de MS-6, nível máximo na universidade. Débora Mazza detalha os protocolos de idas e vindas (mesmo havendo indicação e alocação orçamentária para sua efetivação) e as inúmeras solicitações de inclusões documentais, numa demonstração de resistência à assimilação do professor nos quadros da Unicamp. O Processo de Vida Funcional termina com o pedido de exoneração de Paulo Freire, após 11 anos de trabalho, em virtude do reconhecimento de seu direito de aposentadoria pela UFP.
A questão que parece fulcral é a de como a esfera pública se faz palco de modos de gerência e de organização do trabalho cultural e intelectual antagônicos à abertura política. O trabalho universitário de Paulo Freire, seja no engajamento extensionista que teve na Unicamp atuando no Centro de Saúde de Paulínia, seja no seu envolvimento com a mobilização estudantil, seja na escrita e circulação de seus livros, revela um pesquisador e professor forjado nas ações que, desde os anos de sua atuação na Universidade do Recife, priorizaram a perspectiva popular que se contrapunha à um projeto de universidade tradicional.
O quarto capítulo “Paulo Freire na Bolívia: reminiscências”,a autora relata uma experiência de trabalho que viveu, na Bolívia, ao lado do educador, em 1987, quando várias instituições daquele país se organizaram para oferecer-lhe o título de Doutor Honoris Causa concedido pela Universidade Maior de São Simão, em Cochabamba. Descreve a capacidade de Paulo participar e transitar entre grupos de diferentes matizes sociais e políticas como movimentos de educação popular indígena, grupos vinculados à teologia da libertação, professores de educação básica, pesquisadores e acadêmicos da Universidade de Cochabamba.
Ele encontrava-se deprimido pelo o falecimento recente de Elza Freire (1916-1986), sua primeira esposa, e transformou seu sentimento de luto e mal-estar numa possibilidade de estabelecer uma comunhão com todos os que sofrem pelas situações adversas do mundo. Gerou um sentimento de irmandade e acolhimento entre os diferentes e desiguais, promoveu fortalecimento dos grupos vinculados à educação popular.
O quinto capítulo, “Paulo Freire e o Projeto Escola sem Partido” tece reflexões sobre a atualidade do pensamento freiriano, acompanhando os desdobramentos da extrema direita que tem vinculado o nome de Paulo Freire ao fracasso da educação brasileira. A autora documenta fotos que circularam nas redes sociais, cartazes com expressões de ódio, imagens com afirmações fantasiosas e descabidas, mas também deliberadamente perniciosas e oportunistas. Tece considerações sobre a cruzada privatista na educação direcionada à sociedade civil e a mobilização de ideologias conservadoras e antidemocráticas que visam desqualificar a escola pública.
Destaca que Paulo Freire faz um alerta aos entusiastas da flexibilização da gestão estatal da escola pública que, por vezes animados com a possibilidade de abrir iniciativas independentes das garras burocráticas do Estado, não percebem que a pulverização dos meios de financiamento da educação pública – cara à agenda neoliberal – leva o Estado a abrir mão do compromisso democrático basilar de responsabilizar-se pela educação pública popular.
A agenda neoliberal se fortaleceu mundialmente a partir da década de 1980, e o Projeto Escola sem Partido surgiu numa época da história brasileira em que muitas das ideias neoliberais já orientavam o trabalho educativo e serviam para a gestão-padrão da escola pública em vários estados do país. Iniciado pelo advogado Miguel Nassib em 2003, e contando com o apoio do deputado Flávio Bolsonaro, tornou-se projeto de lei, em 2014 (pp. 163-164). Não é trivial que o registro do Projeto no Congresso Nacional, tenha ocorrido juntamente à ascensão, apogeu e difamação do projeto social-democrático de esquerda no Brasil, sob os auspícios dos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Não obstante o crescimento em popularidade e resultados de interesse no campo político e econômico, este cenário institucional se deu em meio a uma reorganização dos setores conservadores mais arraigados e arcaicos. A autora demonstra como o projeto se utiliza de mecanismos conceituais e regulatórios próprios do mercado de serviços, como o Código de Defesa do Consumidor, para dar à sociedade civil a impressão de que a educação pública seria adequadamente supervisionada a partir de prerrogativas consumistas.
Fica nítido que os interesses político-pedagógicos envolvidos na composição do projeto sequestram o caráter republicano pois “Esta concepção privada e privatista de educação e escola deságua na desqualificação do professor e do trabalho da escola pública travestida de argumentos aparentemente vinculados a esfera da moral cristã” (p. 165). Essa descaracterização do verdadeiro trabalho da escola não ocorre para que se aponte os problemas de conjuntura ou de estrutura em que estão envolvidas as dificuldades inegáveis do magistério público. Ao contrário, ela é direcionada aos professores enquanto indivíduos, tido como falhos, despreparados, irresponsáveis e oportunistas, proferindo um ataque aberto e desavergonhado às entidades de classe dos trabalhadores da educação.
Débora Mazza demonstra como este discurso fundado no medo conduz os argumentos do Projeto de Lei até a validação irrestrita do poder familiar sob os assuntos de cunho escolar, rifando o direito à educação pública ao reforçar distribuição de vouchers à iniciativa privada custeados pelo Estado, rastreando com mais afinco a circulação juvenil ao mantê-los no lar através do reforço ao ensino doméstico e bradando a Educação à Distância como solução para baixar os altos custos com a escola, a despeito dos problemas tão recentemente percebidos quando foi necessário às comunidades escolares adotar modelos híbridos em razão da pandemia do Covid-19.
É a farsa da propriedade privada que quer simular a salvaguarda da liberdade de escolha e moral da família através do mercado e, infelizmente, alguns educadores compraram este discurso, por vezes acreditando-se revitalizar as relações educador-educando distanciando-se das propostas de Paulo Freire.
Chega-se, assim, “À Sombra dessa Mangueira” ponto que merece menção e que Débora Mazza dá um delicado destaque: o tradicionalismo com que se desqualificou o pensamento filosófico, pedagógico e político de Paulo Freire com ataques vindos de setores da direita e da esquerda. A autora inventaria ideias defendidas por Guiomar Namo de Mello e outros nomes que atuaram na Secretária de Educação no estado de São Paulo, indicando o conservadorismo de muitas propostas que depois foram reanimadas no chão da escola pelo Projeto Escola sem Partido.
O escrutínio oferecido revela como a pedagogia freiriana, dialógica e popular na construção do conhecimento, fora obstaculizada pelos processos de construção do saber e do poder dentro e fora das escolas. Paulo Freire foi um pensador atuante nos movimentos de mobilização popular. Seja como secretário de educação no município de São Paulo (1989- 1991), seja como membro e companheiro do Movimento de Cultura Popular nos trabalhos junto ao Serviço de Extensão Cultural da Universidade de Recife (1962- 1964), seja como coordenador do Instituto de Ação Cultural no trabalho durante o exílio (1976- 1980).
Ele pensou a realidade do/com o povo e não para/pelo povo. Como a autora aponta, ao fazer isso, recebeu críticas, equivocou-se e reviu-se. Porém, sua defesa da educação e dos educadores nunca almejou simplesmente mostrar erros e contradições, mas contribuir para que os trabalhadores ousassem vislumbrar outros modelos políticos-pedagógicos.
No início dos anos 1980, muitas intelectuais de diferentes matizes ideológicas, o viram como alguém que, em nome da educação popular, não fora além da reprodução sistêmica e sistemática da lógica capitalista (p. 193-195). Uma tomada de posição que levou alguns a se retratarem no desenrolar da história. O estrago, contudo, prolongou-se para além do deslize. Há algo aí para educadores críticos, desejosos de engajar-se nas ações que mudam a vida do povo, através da política e da educação popular: a desqualificação dos lutares é, quiçá, tão ou mais perniciosa que a exacerbação ufanista de suas ideias.
Por fim, Paulo Freire: a cultura e a educação traz um apanhado analítico da história do educador com sóbria têmpera sociológica, farta documentação historiográfica e muita clareza política e pedagógica. Serve aos mais solidários propósitos de se pensar sobre este professor tão caro à história do pensamento brasileiro. Ele ajuda a todas as pessoas realmente preocupadas em repensar as contradições da sociedade capitalista a fazê-lo com Paulo Freire e, assim, transformar seu legado em força motriz dos mais solidários propósitos de superação das suas e nossas contradições. Porque a necessidade de uma educação dialógica é tanto urgente hoje quanto fora no passado.
*Bruno Botelho Costa é professor de filosofia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Autor, entre outros livros, de Paulo Freire e os movimentos de cultura popular: a construção de uma filosofia da educação (CRV).
Referência
Débora Mazza. Paulo Freire: a cultura e a educação. Campinas, Ed. Unicamp, 2023, 232 págs. (https://amzn.to/45rfnXh)
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