A pandemia neoliberal

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Por Ana Paula Fregnani Colombi e Gustavo Moura de Cavalcanti Mello*

Em nome do controle da pandemia do coronavírus o que se avizinha é o alargamento da pandemia neoliberal

Nas últimas semanas, a crise sanitária aberta pela disseminação do COVID-19 parece ter produzido um raro consenso entre economistas brasileiros. Ortodoxos e heterodoxos ressuscitam o velho keynesianismo e defendem o aumento temporário do déficit público para salvar vidas e evitar um colapso econômico.

Do ponto de vista heterodoxo, prevalece a visão de que é preciso renunciar aos pressupostos do equilíbrio fiscal, avançando na direção “dos ensinamentos básicos do senhor Keynes que, em linhas gerais, afirmou que o melhor remédio para não se cair em uma crise econômica profunda é manter a demanda agregada em expansão”[i]. A saída, diante de uma situação de ruptura das relações de mercado, como enfrentamos agora, é a reconstituição dos nexos mercantis, injetando dinheiro na economia, direcionando o crédito com a finalidade de criar renda monetária para famílias, trabalhadores e empresas[ii]

Economistas reconhecidos no campo ortodoxo, por sua vez, afirmam que é necessário canalizar mais recursos para a população e reforçar o SUS, sem que se esqueça que passada a situação de emergência, a recuperação da saúde fiscal da nação deva voltar a ser uma prioridade[iii]. Afirmam, ainda, que dar liquidez ao mercado é a direção correta, mas é preciso também implantar a renda mínima, atuando ao mesmo tempo na concessão de recursos para os vulneráveis e para os trabalhadores formais. Isso requer o abandono dos dogmas ideológicos em torno do Estado mínimo. O Estado precisa tomar medidas de emergência, emitindo dívida para, de maneira coordenada, conseguir repassar recursos para pessoas e empresas[iv].

Fica evidente, neste aparente consenso, que tão logo o debate sobre a velocidade do ajuste fiscal pós-crise volte ao centro da agenda, parte dos economistas, olhará para o grande aumento da relação dívida/PIB e defenderá outra dose de austeridade. Como afirmou Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central, é legítimo expandir a base monetária, nesse momento, mas “essa despesa tem começo, meio e fim (…) acabou a pandemia, acabou isso, nós voltamos à normalidade, pode voltar à austeridade fiscal”[v].  

Outra questão, implícita neste debate, é o potencial que a crise aberta pelo Covid-19 teria de questionar o neoliberalismo. Diante da consensual convocação da atuação Estado e do reconhecimento de que o mercado não é capaz de apresentar solução às crises sistêmicas, tem surgido a tese de que a atual crise desnuda o capitalismo contemporâneo, tendo em vista que a “falácia neoliberal de que o mercado por si é capaz de regular a economia de modo preciso, e sua defesa intransigente para o Estado mínimo, simplesmente desmorona diante dos fatos”[vi].

É notório que a presente crise evidencia que mesmo os países desenvolvidos possuíam fraca estrutura básica de saúde para dar uma resposta rápida à pandemia. Além disso, mostra como os mercados não são capazes de dar respostas às crises sistêmicas que fazem parte da própria dinâmica do sistema capitalista. Isso não quer dizer, entretanto, que uma retomada do protagonismo estatal diante da imensa crise que se abre represente o fim do neoliberalismo. Como afirmou Lapavitsas, na atual crise, “o Estado emergiu como regulador da economia e passou a concentrar enorme poder. Não foi difícil para muitos da esquerda acolherem as novas ações estatais, tomando-as como um sinal do ‘retorno ao keynesianismo’ e morte do neoliberalismo. Estas conclusões, são, porém, precipitadas”[vii].

Somente se entendermos o neoliberalismo como mera emanação da ciência econômica ortodoxa é que podemos aventar sua crise, neste momento. Ao contrário, se o apreendemos como uma nova cosmovisão que congrega um “conjunto original de aparatos discursivos, princípios normativos, dispositivos de poder, orientações epistemológicas e práticas de conduta social”, cuja função prioritária é “difundir a lógica da concorrência para todas as dimensões da vida social”[viii], seu desmoronamento não parece ser iminente. A partir dessa visão, não faz sentido vislumbrar de maneira instantânea que a crise aberta pelo Covid-19 possui as condições objetivas para o fim do neoliberalismo e fazê-lo seria o mesmo que assentar a problemática no terreno da simples disputa entre ciência econômica ortodoxa e heterodoxa.

O neoliberalismo, como lógica societal que se impõe para todas as dimensões da vida social não prescinde do Estado, mas dele faz uso em nome de um intervencionismo destinado a moldar politicamente as relações econômicas e sociais regidas pela concorrência[ix].

Diante deste entendimento, o novo campo de disputas que se abre parece estar forjando condições favoráveis para legitimar a atuação do Estado autoritário e não para recompor o Estado planista e keynesiano, como muitos querem crer. Há evidências nessa direção.

Os países que estão conseguindo enfrentar a pandemia (Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Singapura) têm governos notadamente autoritários. A vigilância digital tem permitido que os Estados controlem a disseminação do vírus, notadamente o modelo policial digital chinês, reforçando a tendência à constituição de um estado de exceção global[x]. No Ocidente, as medidas contra o Covid-19 estão acompanhadas por políticas, também, fortemente autoritárias. O uso de tecnologias de controle e de vigilância similares àquelas mobilizadas pelo governo chinês tendem a se disseminar; como é o caso do desenvolvimento do aplicativo “StopCovid”, anunciado no dia 08/04 pelo governo francês[xi], ou o caso do intempestivo contrato do governo do Estado de São Paulo com as operadoras de telefonia celular (Vivo, Claro, Tim e Oi) para monitorar o isolamento social[xii].

Esse caráter autoritário se estende também às políticas econômicas, sempre subtraídas ao debate e a mecanismos efetivos de controle democrático. Como se sabe, com a brutal destruição de capital fictício, o Federal Reserve (Fed) precisou intervir com urgência, prometendo comprar volumes ilimitados de títulos públicos e até de títulos privados, exatamente como na crise de 2008/9. Sua intervenção maciça foi acompanhada pelo gigantesco pacote fiscal do governo dos Estados Unidos[xiii]. Não obstante, como de costume, o grosso da ação estatal se concentra no salvamento de grandes instituições financeiras (“too big to fail”), e nesse sentido a chamada quinta etapa do “afrouxamento monetário” (quantitative easing) apresenta uma magnitude que suplanta em muito as etapas anteriores, inauguradas no bojo da crise do subprime.

No Brasil, visando melhorar as condições para que as instituições forneçam mais crédito num momento de incerteza, o Banco Central ampliou a liquidez do sistema financeiro em R$1.217 bi, equivalentes a 16,7% do Produto Interno Bruto (PIB) e, dentre outras medidas, reduziu a obrigatoriedade de os bancos manterem provisionados R$ 68 bilhões em depósitos compulsórios sobre recursos a prazo[xiv]. Entretanto, o que se tem observado é um aumento expressivo das taxas de juros entre 50% e 70%[xv] no repasse do crédito ao varejo. Já a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 10/2020), também conhecida como “PEC do orçamento de guerra”, que ainda aguarda aprovação no Senado, prevê que o Banco Central possa comprar títulos públicos e privados nos mercados nacional e internacional, permitindo, na prática, que a transferência de prejuízos dos bancos para o Estado. Todas essas medidas, são evidências de uma ação coordenada para salvar, uma vez mais, o capital financeiro, em nome da promoção de um grande bem-estar corporativo.

Salvar o mercado é a mesma lógica que prevalece nas ações que estão sendo tomadas perante os mercados de trabalho. É notório que diante de uma crise de demanda e de oferta como desdobramento do distanciamento social, mesmo países de corte conservador, como Reino Unido e EUA, têm adotado medidas para impedir um colapso econômico[xvi]. Entretanto, mesmo com medidas dessa natureza, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê que ao menos 81% da força de trabalho mundial será afetada pela crise. A estimativa é que o número de desempregados no mundo ultrapasse os 25 milhões inicialmente projetados pela própria Organização[xvii]; como indica o caso americano, em que quase 17 milhões de trabalhadores entraram com o pedido de seguro-desemprego em três semanas[xviii].

No Brasil, de acordo com dados da PNAD Contínua de 2019, são 11,6 milhões de trabalhadores sem e cerca de 38 milhões de pessoas trabalhando sem registro. Dentre os informais, são 24,5 milhões de pessoas no trabalho por conta própria, isto é, onde se localizam os trabalhadores(as) mais vulneráveis e expostos ao vírus: comerciantes de lojas; pedreiros; vendedores a domicílio; condutores de automóveis; motoristas de táxi; cabeleireiros; especialistas em beleza, dentre outros [xix]. A esses trabalhadores, o governo destinou o pagamento de auxílio emergencial no valor de R$ 600,00. Além de insuficiente, a medida chegou com muito atraso. No primeiro dia de liberação para cadastramento em site da Caixa Econômica Federal, mais de 26 milhões de pessoas haviam se inscrito para o recebimento do auxílio[xx].

Além disso, o país aposta na fórmula fracassada de tentar impedir o desemprego com mais flexibilização. Esse é o sentido das medidas provisórias 927/2020 e 936/2020, claramente orientadas pelos interesses empresariais. A MP 927 autoriza a redução da jornada em até 25% com correspondente redução salarial e, entre outros aspectos, amplia as possibilidades do uso do tele trabalho e autorizar o banco de horas mediante negociação individual ou coletiva[xxi]. A MP 936 está voltada aos trabalhadores formais e atende à mesma lógica. Ela lança introduz a recomposição salarial compensatória da redução da jornada de trabalho com correspondente redução salarial (possibilitando essa redução em 25%, 50% e mesmo 70%), tendo como referência o valor do seguro desemprego e não a folha de pagamentos. Ela também prevê a suspensão temporária do contrato de trabalho, implicando em retração da massa salarial[xxii].

Essas evidências mostram que a face autoritária do Estado neoliberal parece encontrar terreno firme para buscar sua legitimidade nesse momento de crise. Vigilância digital, salvamento de grandes instituições financeiras e alargamento do poder dos empregadores para manejar o estoque de força de trabalho mediante um avassalador crescimento do desemprego em redução da massa salarial estão na ordem do dia. Em nome do controle da pandemia do coronavírus o que se avizinha é o alargamento da pandemia neoliberal.

*Ana Paula Fregnani Colombi e Gustavo Moura de Cavalcanti Mello, professores do Departamento de Economia da UFES. 


[i] MATTEI, L. A cegueira das elites empresariais brasileiras: reduzir salários não é a solução. Acesso em 23/03/2020.

[ii] BELLUZZO, L. G. Belluzzo: ‘é preciso sustentar a renda do brasileiro por pelo menos 6 meses‘. Acesso em 01/04/2020.

[iii] FRAGA, A. Covid-19: primeiras lições, desafios e propostas. Acesso em 29/03/2020.

[iv] BOLLE, M. Monica De Bolle: Hoje, dane-se o Estado mínimo, é preciso gastar e errar pelo lado do excesso. Acesso em 01/04/2020.

[v] MEIRELLES, H. Meirelles defende ‘imprimir dinheiro’ contra crise do coronavírus: ‘Risco nenhum de inflação’. Acesso em 08/04/2020.

[vi] MOLINA, J. A. A pandemia e o fim do neoliberalismo pós-moderno. Acesso em 17/03/2020.

[vii] LAPAVITSAS, C. Esta crise expôs os absurdos do neoliberalismo. Isso não significa que ela irá destruí-lo. Acesso em 07/04/2020.

[viii] MARIUTTI, E. B. Estado, Mercado e concorrência: fundamentos do “neoliberalismo” como uma cosmovisão. In: Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. 54/ setembro 2019 – dezembro 2019 (p. 10).

[ix] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016 (p. 67-68).

[x] HAN, B. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo. Acesso em 05/04/2020.

[xi] Coronavirus: qu’est-ce que StopCovid, l’appli de traçage étudiée par le gouvernement ? Acesso em 08/04/2020.

[xii] SP faz parceria com operadoras de celular para divulgar combate ao coronavírus. Acesso em 07/04/2020.

[xiii] LAPAVITSAS, C. Esta crise expôs os absurdos do neoliberalismo. Isso não significa que ela irá destruí-lo. Acesso em 07/04/2020.

[xiv] Medidas de combate ao Covid. Acesso em 08/04/2020.

[xv] Valor Econômico: “Varejo acusa banco de elevar juros!”. Acesso em 08/04/2020.

[xvi] CADÓ, I.; BORSARI, P. Medidas de amparo ao trabalho e à renda frente à pandemia do coronavírus: comparativo internacional.

[xvii] OIT. ILO Monitor 2nd edition: COVID-19 and the world of work. Acesso em 08/04/2020.

[xviii] A Shocking 17 Million Americans Have Filed For Unemployment In Past 3 Weeks. Acesso em 08/04/2020.

[xix] Para mais informações para a dramaticidade do caso brasileiro frente à crise ver CESIT. Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida. Acesso em 08/04/2020.

[xx] 26,6 milhões já se cadastraram para receber o auxílio emergencial de R$ 600. Acesso em 09/04/2020.

[xxi] CESIT. Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida. Acesso em 08/04/2020.

[xxii] Como discutido em CECON, Impactos da MP 936/2020 no rendimento dos trabalhadores e na massa salarial. Acesso em 08/04/2020.

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