Chico de Oliveira

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Por LUCINEIA ALMEIDA*

Homenagem ao intelectual que faria 90 anos hoje

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: Ele era assim…
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em vôo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.

(Carlos Pena Filho, Testamento do homem cansado)

1.

Quando trabalhava no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP fui assistir um evento, em 1997, sobre o tema “20 anos das greves do ABC e a criação do Partido dos Trabalhadores” que estava sendo organizado pelo NEDIC, em parceria com a Fundação Perseu Abramo, no Auditório da História, onde os fundadores do NEDIC, Chico de Oliveira e Maria Célia Paoli estavam. Maria Célia coordenava a mesa que contava com a presença de Jair Meneguelli, Maria da Conceição Tavares, Lula e dos fundadores da CUT.

Depois, em 1998 fui assistir algumas aulas do professor Chico de Oliveira no curso de Literatura Brasileira, pois ele tinha sido convidado a dar um curso naquela área. Era meio da tarde quando entrei na sala 102, lotada, e um professor baixinho e bonitinho falava pausadamente sobre o Brasil, o capitalismo contemporâneo e as classes sociais, com firmeza e com um sotaque bem familiar. Perguntei para um estudante quem era aquele professor e ele me disse Francisco de Oliveira, não é de letras é sociólogo. Poucos anos depois conheci o professor no meio de um furacão. Eu saindo da Teoria Literária e ele que precisava então de uma funcionária desprendida e que topasse uma empreitada numa tribo destemida, pois segundo ele, era a “Tribo Asterix” em construção.

2.

Uma colega funcionária da FFLCH, nossa histórica representante, Marlene Petros, sabendo que eu estava em desacordo com a coordenação do Departamento de Teoria Literária me apresentou à professora Maria Célia Paoli que a tinha pedido indicação de alguém que topasse se transferir e trabalhar com o Grupo e que se identificasse com eles, os marxistas. Marlene então dizia, um grupo progressista e sem recursos.

Maria Célia me falou do propósito dos trabalhos do grupo que estudava o tema da universalização dos Direitos e da Cidadania. Propôs o desafio de trabalhar num lugar sem nenhuma estrutura, sem sala definida, sem equipamentos, sem recursos financeiros, com um pequeno grupo de pesquisa, com proposta de trabalho e com projeto em construção dos professores do Departamento de Sociologia em um Núcleo de Pesquisa, cuja liderança intelectual era Chico de Oliveira. Naquele ano o Nedic encerrava um projeto financiado pela Fundação Ford, do qual resultou o livro Os sentidos da democracia publicado em 1990, pela Editora Vozes. Ela enfatizou que a grande liderança da equipe era o professor Chico de Oliveira com quem ela já tinha anunciado a minha existência e ele queria me conhecer.

Agora, em 1999, estavam construindo um projeto que era uma fração de um projeto maior, um CEPID que seria apresentado pela professora Marilena Chaui à FAPESP. No caso do projeto do Nedic seria algo menor e denominado pelo grupo de “fapespinho”, com 10 pesquisadores apenas, que estava em discussão e construção.

O projeto então nasceu um ano depois, em 2000 com o nome de Projeto Temático Cidadania e Democracia: as rupturas no pensamento da política e que resultou em 2007 no livro A Era da Indeterminação.

Maria Célia me passou essas informações e me prometeu que agendaria para a semana seguinte um encontro com o professor Chico de Oliveira.

Na época, três outros departamentos me convidaram e então falei pra Maria Célia que eu não queria ficar vinculada à Reitoria, mas à FFLCH, e para isso precisaria transformar o Núcleo em um Centro da FFLCH como outros já que já existiam. Marcamos uma reunião com o professor Flávio Aguiar para orientações acerca da transformação do Núcleo em Centro de Pesquisa da FFLCH.

A Teoria Literária me pedia para não sair, para pensar, mas eu já tinha decidido mudar. Decidi sair de lá, mesmo gostando de todos os colegas e professores daquele Departamento. O diretor da Faculdade, Francis Aubert, me pediu para esperar e tentou acordo, mas eu não aceitei. Disse a ele que já ia começar trabalhar com a Maria Célia e com o Chico de Oliveira, pois eles tinham muito trabalho, um projeto bonito.

Fiquei trabalhando na sala do Chico de Oliveira, conforme orientação dele, com uma mesa redonda, muitos livros recém-chegados do CEBRAP, um computador velho, uma impressora quebrada e um sofazinho cinza que era o descanso merecido do mestre após o almoço.

Pedi para ser posta à disposição pela Teoria Literária e despacharam equivocadamente para o Departamento de Sociologia, o então chefe, que era o oposto do Chico de Oliveira, dizia que não via sentido em criar o Centro de Pesquisa, mas reforçar o departamento, e me propôs ir trabalhar na pós-graduação deles, mas eu não quis e falei que não queria trabalhar com ele, mas com o Chico de Oliveira e a Maria Célia e o grupo do Cenedic. A conversa ficou tensa, ele me devolveu para o diretor.

Chico de Oliveira e eu fomos juntos falar com o Diretor da FFLCH, já com o projeto de transformação de Núcleo em Centro em mãos. Antes do diretor nos receber, sentamos no café. Ele tinha acabado de perder a mãe e voltado de Recife e me pediu desculpas por não ter tido tempo de desmarcar o encontro na semana anterior. Chico foi me contando o mais difícil, das lembranças da sua mãe intercalando pausas emocionadas e risos discretos, aquela mãe que lhe dizia que não sabia para que servia o curso de Ciências Sociais, mas que se Deus existisse era aquela pessoa, doce e diabética, que tinha 10 filhos, seus irmãos.

Chico falou de Pernambuco, dos tempos da Sudene, da vivência em Recife, da dureza do exílio e da experiência que tivera nos porões com testemunhos como do Luiz Roncari e me perguntou se o conhecia. Lembro que ficamos horas ali e falei para ele que também era pernambucana e meu pai contemporâneo do Miguel Arraes, que sabia do Gregório Bezerra e das Ligas Camponesas, que tinha trabalhado na campanha de Marcos Freire para o senado e governo em PE, e que ele tinha sido o padrinho da minha turma no encerramento do ensino médio na cidadezinha de Cachoeirinha, em Pernambuco.

Foi um encontro de um grande intelectual com uma trabalhadora, mas Chico de Oliveira não era prepotente, era gentil e tinha uma enorme qualidade, era humilde e tratava com respeito e igualdade todas as pessoas. Um extraordinário saber e toda aquela vivência, ele não se alimentava de arrogância nem de vaidade. Chico falava baixinho, civilizado, cuidadoso. Os meus colegas que passavam ao lado se mostravam curiosos sem saber quem era aquela pessoa que quase cochichava comigo.

Disse para o Chico de Oliveira que a única condição na conversa com o Diretor era não trabalhar fora do Conjunto didático e não ficar vinculada à Reitoria, desta forma precisava transformar o Núcleo em Centro da FFLCH. Ele falou que o grupo precisava ser ampliado mesmo e até porque eram até então os professores da Sociologia da USP e de outras instituições como PUC, Unicamp, etc.

O diretor nos recebeu e Chico de Oliveira foi firme, não deu espaço para evasivas e exigiu que a direção colaborasse com aquela situação em que eu e ele queríamos trabalhar juntos e em paz, mostrou o monte de papéis do projeto que estávamos montando e não podíamos parar e que não aceitávamos ficar naquele “angu de caroço” e o diretor então olhou para Chico de Oliveira, ouviu seus argumentos e respondeu: ela vai ficar alocada aqui na direção mas trabalhando lá com vocês no Nedic vou colocar aqui “para apoiar as pesquisas do Chico de Oliveira e Maria Célia Paoli” assim e vocês farão a transformação de Núcleo em Centro, como já foi feita em outras situações. Quando o Cenedic estiver criado e aprovado no Conselho Universitário ela ficará definitivamente então no Cenedic. O que só ocorreu em 2003.

3.

Na época, éramos: Chico de Oliveira, Maria Celia Paoli, Vera Telles, Leonardo Gomes e Cibele Rizek (USP) Ana Amélia e Carmelita Yasbeck (ambas da PUC), Laymert Garcia (Unicamp) Carlos Bello e Roberto Véras e Elson (alunos de doutorado).

Flávio Aguiar, professor da área de Literatura Brasileira ajudou-nos a criar o Cenedic a pedido da Maria Célia Paoli (ambos tinham sido diretores da ADUSP), nos dando o caminho das pedras que inclusive eu havia trilhado com ele e a professora Ligia Chiappini para criar o Centro Ángel Rama, uma década antes. Montamos todo o processo e os professores da FFLCH foram muito simpáticos à ideia de um Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania tendo à frente Chico de Oliveira e Maria Célia Paoli e muitos deles se associaram. Luiz Roncari, por exemplo, quando consultado por mim respondeu que “com o Chico de Oliveira eu vou até para o inferno”. O professor István Jankso também se colocou à disposição.

Gabriel Cohn apoiou o Chico de Oliveira, Leonel Itaussu, Olgária Mattos, Irene Cardoso, Marilena Chauí, Maria das Graças, Francisco Escarlato, Zilda Yokoi, Sergio Cardoso também deram uma grande força.

Tivemos apoio de cerca de 150 professores na época e das mais diferentes áreas e os Departamentos de Ciência Política, de Filosofia, e de Letras Clássicas e Vernáculas se juntaram como proponentes e formaram o Conselho Deliberativo do Centro que deixou de ser exclusivamente do Departamento de Sociologia.

Quando ligava para os professores para convidá-los para participar no Cenedic de algum debate logo de pronto era atendida, qualquer pedido em nome do Chico de Oliveira era aceito de imediato. Muito se pôde fazer no Cenedic exatamente por ter Chico de Oliveira à frente, além de grande intelectual, Chico de Oliveira foi uma figura carismática, desprovido de vaidades e glamour. Nunca tivemos dinheiro, era tudo no braço, como ele falava, mas trazíamos os alunos, os trabalhadores da educação, a militância, os intelectuais e realizávamos grandes eventos. Chico de Oliveira era singular e plural e por ele eu recebia olhares atravessados dos conservadores e ganhava abraços sinceros da esquerda marxista dentro e fora da Universidade.

4.

Em 2000, fiquei grávida e a Maria Célia ao me ver retornando de férias logo falou: Chico, temos novidades! E o Chico olhou para mim e indagou: você está grávida, querida? Que beleza! É uma maravilha! Eu ainda assustada com tamanha responsabilidade e eles tão solidários comigo… Tive uma gravidez de alto risco, Chico de Oliveira sempre me advertindo para seguir as orientações médicas sugeriu indicar uma colega para me substituir no Cenedic na licença maternidade e trouxe minha colega de curso da Letras a Jane Pessoa, que também passou a admirar o Chico de Oliveira e ver como ele era afetivo, educado e gentil com todos.

Quando o Lucas nasceu a segunda pessoa a chegar no HU foi ele. Barraram ele, a Rebeca e o Victor no térreo, mas ele insistiu com os guardas e subiu até o quinto andar. Ficou comigo no quarto, foi ao berçário ver o Lucas e falou que o Lucas era grande, ia superar o problema de saúde, e, observou que ele tinha uma testa de quem era inteligente. Vai ser um grande homem, vai ser amigo do Vitão. Quando ele crescer vou dar o Asterix para ele ler e depois O Manifesto Comunista para ele abrir o olho!

Obviamente, o Lucas leu todos os gibis do Asterix e quando o Lucas tinha 12 anos leu O Manifesto Comunista e depois o releu. Naquele dia descobri que Chico de Oliveira não só entendia de política, economia, história e sociologia, mas de relações humanas, de fino trato com gente, ele sabia das implicações e do sofrimento de uma mãe trabalhadora, solteira e recém parida diante de um filho internado em UTI. Não fez vistas grossas e ficou por perto.

Um dia o professor Antonio Candido me ligou dizendo ter me procurado no Departamento de Teoria Literária e lhe passaram o meu ramal, ele queria agradecer umas fotos que eu fizera da Dona Gilda e havia lhe enviado. Falei que mudei de setor, mas o coração continuava o mesmo. Ele então me agradeceu e falou que eu fizera um ótimo caminho pois o Chico de Oliveira era um grande sociólogo brasileiro e também pernambucano extraordinário, fundador do PT e seu amigo. Um homem de extraordinário valor e conhecedor do Brasil. Contei para o Chico de Oliveira o relato do professor Candido, que ficou contente em saber dos elogios a distância que recebeu do grande mestre.

Era 2003, Chico publica suas memórias em A noiva da revolução. E depois o artigo O Ornitorrinco – e lá vem polêmica. Depois, Chico de Oliveira rompeu com o PT e deu uma entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura que rendeu muita falação: muitas ligações todos os dias, gente convidando para debates, jornalistas pedindo entrevista e um dia, anos depois, eu falei: Chico, o Brasil está melhor eu estou indo ao Nordeste a cada dois anos e vejo a diferença. Você está sendo muito duro com o PT, tenho sobrinhos estudando em cursos bem disputados nas Universidades Federais por exemplo, houve investimentos grandes na construção de portos, a transposição do Rio São Francisco, por exemplo.

Ele me respondeu: “Querida, o Nordeste era muito atrasado e portanto essa diferença que você narra é muito pequena perante os lucros que esse grande capital tem com esse governo. Não existe sequer um Estado de Bem-Estar-Social nesse país. Meu papel é esse, querida, ser crítico. O consumo não gera cidadania, querida, não civiliza. Esse governo não está fazendo a aposta certa, fez uma aliança com os de cima e isso não dá certo, isso é uma armadilha”. Não é que ele em grande medida tinha razão?

Chico de Oliveira era o Brasil que resiste, ele sempre se colocava por priorizar as pesquisas sobre o Brasil, era solicitado por jornalistas constantemente e podia escolher o dia e a hora que eles corriam para entrevistá-lo. Chico ia para as aulas greve, ia para os grupos de formação de funcionários no Sindicato, debates promovidos pelo DCE, Chico atraia o melhor, trouxe gente da PUC, Unicamp, Universidades Federais. Chico de Oliveira era procurado por alunos do Nordeste e do Sul e nunca lhes fechou as portas, participava de bancas, apresentava livros, Chico perdia horário de vôos, esquecia papéis, mas não perdia o raciocínio nem a generosidade. Era pontual com quem o esperava e jamais se impôs com arrogância e superioridade diante do grupo. Chico ajuda a fundar o PSOL e lá vem debates!

Nunca vou esquecer de um episódio em que um dia um pesquisador francês participante de um convênio me impôs que assumisse determinada tarefa que não era da minha alçada, fez insinuações descabidas para sua colega, por vingança, e eu, naturalmente, me recusei a compactuar. Ele gritou comigo e disse que ia reclamar para o Chico de Oliveira. Eu peguei o telefone na frente dele e liguei para o Chico e narrei o fato. Chico de Oliveira de pronto me disse: Não se submeta querida. Diga-lhe que se retire de sua sala e eu é que vou falar com ele para se comportar como um cidadão francês. Eu então só perguntei: quer ouvir dele ou quer que transmita?

Chico de Oliveira respeitava as mulheres, não gritava com ninguém, era educado e generoso e nos fortalecia como gente, como mulher e como classe trabalhadora. Chico é um exemplo de homem civilizado, competente e desprovido de vaidades. Chico de Oliveira era cuidadoso com os porteiros do prédio, com o pessoal da limpeza, com as cuidadoras de saúde, com o pessoal de enfermagem no Hospital. Chico não fazia distinção no trato humano, coisa rara neste planeta.

5.

Chico de Oliveira viajava sem parar, era convidado para muitos lugares e pouco se recusava. Maria Célia pôs ele como Centro da roda, planejava para todas as sextas-feiras atividades no Cenedic e o Chico não podia faltar. Foi ficando cada vez mais pertinho. Ele pensava sem parar, era intuitivo, liderava qualquer reunião com brilhantismo e generosidade.

Ele e Maria Célia eram parceiros de primeira, de conversas infindáveis. Lembro de uma vez que de tanto conversarem, ele e Maria Célia perderam dois vôos na mesma tarde em Congonhas (quando iam para Minas Gerais participar de um Seminário com o Grupo dos Republicanistas) no mesmo aeroporto (risos), lá se iam bilhetes de vôos, esquecia notas fiscais, não lembrava data de pagamentos, Chico de Oliveira era aparentemente distraído, mas não o era de fato.

Os alunos gostavam do Chico, que não era burocrata, que mantinha-se distante de gabinetes e ele os chamava pra boa briga da luta e fugia das categorias tradicionais impostas pela academia.

Chico de Oliveira gostava de festa, de vinho, de conversar. Jantares na casa da Maria Célia, almoço na casa da Cibele, aniversário nos restaurantes e nos finais de ano. Fez a festa de 70 anos na Casa da Cidade do vereador Nabil Bonduk, na Vila Madalena, e lá estávamos nós conhecendo toda a família, os oito filhos que ele dizia ter, lá estavam de fato. Um lindo momento.

Chico de Oliveira foi homenageado como cidadão paulistano, proposta apresentada pelo vereador Nabil Bonduk, em 2003 e lá no Auditório da História estávamos nós. A Cibele Rizek, o Wagner Romão e eu fomos os organizadores, um evento de 3 dias com mesas tarde e noite. Dessa homenagem foi publicado o livro Chico de Oliveira: a tarefa da crítica, em 2006, pela Editora da UFMG.

Chico recebeu o prêmio Jabuti por O Ornitorrinco, e depois o título de Professor Emérito da FFLCH em 2008 e lá estávamos nós, com citações e honra, Maria Célia de madrinha e nós de plateia. Fazia aniversário e lá estávamos nós.

E em 2006 o Projeto “Hegemonia às avessas” foi aprovado com financiamento do CNPq e mais três anos de debates e convidados externos no Cenedic. O Chico convidou os professores Luiz Werneck Viana, Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Neto, todos do Rio de Janeiro e Ary Minella da UFSC, entre outros. Ampliou o horizonte num grande evento de lançamento de mais um livro em 2009 publicado pela Editora Boitempo.

E nessa tribo, muita gente foi chegando, Chico de Oliveira tinha como proposta aos novos membros que apresentassem ao grupo um seminário com seus trabalhos, suas pesquisas. Paulo Arantes sempre foi um colaborador de primeira hora, depois veio Walnice Nogueira Galvão, Wolfgang Leo Maar, Leda Paulani, Luiz Renato Martins. Os alunos Elson, Solange Sanches, Joana Barros, Sara Freitas. Em 2009 Josefa Barros (UFMA), André Singer (DCP) e a Profa. Maria Elisa Cevasco (DLM) e depois Isabel Loureiro (Fundação Rosa Luxemburgo).

Chico de Oliveira apostava nos seus alunos e os deixava trabalhar com autonomia, mas cobrava-lhes rigor e qualidade nas pesquisas. Assim foi com Elson, Carlos Bello, Solange Sanches, Joana Barros, Álvaro Comin, Annye Daymetman, Sara Freitas. E os orientandos de pós-doc, Ary Minella e Josefa Barros.

Chico de Oliveira deixou sua casinha na Rua Caio Graco, na Lapa, onde morou com seu acervo e depois voltou a morar na Rua Tito. Teve de se desfazer de sua biblioteca, foi sofrido porque o espaço já não permitia abrigar seus livros. Ele resolveu ouvir a sugestão da Ana Regina, sua bibliotecária que cuidava de seus livros na sua casa. A Ana levou o acervo dele para a Universidade Federal de Sergipe (onde ela e seu esposo, o filósofo e professor Márcio foram trabalhar (hoje ambos estão vinculados à UNB), para que fosse disponibilizada para aquela Comunidade Universitária no Acervo Central daquela Universidade.

O acervo foi recebido por Jônatas da Silva Meneses, sociólogo da UFSE, em Aracajú, na época Diretor do Centro de Educação e Ciências Humanas (2005/2012), hoje aposentado (mas até recentemente não tinha sido feito o combinado da incorporação do acervo a Biblioteca Central). Chico de Oliveira então ficou com pouquíssimos livros e disse-me que ia ficar agora com a literatura, com a ficção. Então eu chegava lá e ele estava lendo ficção em um cantinho do sofá.

Em 2011, o Cenedic resolveu oferecer um curso de formação no período noturno e oferecemos 16 aulas de diferentes áreas, quase todos com professores titulares, nenhum recurso e uma experiência ímpar na formação dos estudantes universitários e professores da rede pública de ensino, pois o curso de extensão foi oferecido de forma gratuita aos interessados a pedido de Francisco de Oliveira e 85 alunos participaram de todas as aulas.

Chico de Oliveira foi parceiro do SINTUSP e da ADUSP, foi testemunha de alunos para defendê-los de processos por conta de ocupações, enfrentou o reitor Rodas quando os aposentados foram demitidos, defendeu em várias mesas os trabalhadores da USP em sucessivas greves e sempre lhes dizia para não chamá-lo de professor, pois os trabalhadores deviam se tratar sempre como companheiros.

Chico brigou pelo HU, pelas Creches da USP, foi parceiro do movimento estudantil, foi candidato a Reitor só para fazer provocações e questionar o Estatuto da USP, herança de 1973, estático e conservador. Avesso à burocracia, um ser livre que via os trabalhadores também com absoluto respeito ele ficava indignado quando sabia de tratamentos discriminatórios dentro desta Universidade.

Levamos o Chico para a Escola de Aplicação da FE-USP, em 2015, eu e a Diretora da APM fomos buscá-lo em casa e ele falou para 180 estudantes do Ensino Médio. Os estudantes fizeram silêncio e depois muitas perguntas. O Chico carinhosamente os alertava: Façam política, participem da vida política do Brasil, informem-se, façam sociologia, ciência política, filosofia. O melhor caminho é o conhecimento e a participação na vida pública como cidadãos. Não se enganem com a FEA. Foi um momento muito especial para nós, cujos filhos de 15 a 18 anos puderam ver essa figura histórica trazendo-lhes tantas dicas preciosas.

No final de 2018 meu filho foi o orador da turma do terceiro ano escolhido pelos colegas formandos daquela Escola e fez um discurso progressista chamando a responsabilidade dos colegas para tomarem as rédeas e se fazerem cidadãos presentes na vida política deste país. Lucas se inscreve para o curso de Economia na Unicamp e Biologia na USP e passa nos dois. Ele dá a notícia ao Chico, que comemora. Que bom, Lucas, vá pra Unicamp, lá você vai ter uma ótima formação de economia política. Lucas respondeu que preferia ficar na USP, mas não na FEA, e disse-lhe: Chico, vou para a Biologia não quero FEA e o Chico ficou feliz.

6.

Chico para mim foi um ser de luz, mas luz de fato. O que ilumina com saber, estímulo e gosta da vida com a graça da partilha, da mão amiga, do rigor e reconhecimento pelos companheiros de luta e de vida como os Professores Paul Singer a quem ele dizia constantemente “ser o melhor entre todos eles”, pois “pertencia a categoria “santo” , Otávio Ianni, Maria Célia Paoli, Irene Cardoso, Lena Lavinas, Wolfgang Leo Maar, Roberto Schwarz, Vilma Areias, e principalmente com o Celso Furtado, seu grande mestre.

Lembro que em 2018 eu estive com André Singer no apartamento dele, pois o André foi levar o livro O Lulismo em Crise recém- lançado com uma dedicatória que diz “Chico de Oliveira nos deu régua e compasso” que foi o resultado do projeto coletivo e coincidentemente foi no dia da tal facada do Jair Bolsonaro, e o Chico de Oliveira perguntado sobre as eleições respondeu de pronto que Jair Bolsonaro seria o presidente. Tomei um susto e achei que ele não estava acompanhando as notícias, mas o engano era inteiramente meu.

Chico de Oliveira focava no seu propósito. Não desligava de seu país Brasil, manteve-se um ávido intelectual e chamando a atenção do grupo para pensar o Brasil e a América Latina.

Adorava a USP, mesmo crítico a Administração Central, admitia ser um ótimo ambiente para uma vida intelectual, o mais saudável de sua trajetória recente, a USP deveria, portanto, ser defendida incondicionalmente como instituição de ensino superior democrática e a serviço da sociedade. Ele foi envelhecendo, mas dizendo que o açúcar a mais em suas veias era o doce da mãe que açucarou todos os filhos…

Chico gostava de ouvir música clássica, mas também adorava um frevo do Capiba e do Claudionor Germano. Ele gostava dos versos do poeta pernambucano Carlos Pena Filho, mesmo admitindo que ele era um poeta menor. Sempre recitava os poemas. Um deles era

A Solidão e Sua Porta, de Carlos Pena Filho
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.

Quando lembrava da sua própria adolescência nos carnavais de Rua de Recife seu semblante era muito particular, resplandecia uma alegria que só quem é pernambucano diante do frevo “vassourinha” consegue compreender…

Depois entrou na fase difícil, dependência de remédios, de laboratórios de clínicas e para viajar não era fácil. Quando ia para Recife tínhamos que pensar num pacote de cuidados e acabei descobrindo uma amiga (Dra. Polyane Carvalho Lopes, que é médica nefrologista e sua irmã Patrícia Carvalho, especializada em problemas renais lá em Recife e pus na roda para cuidarem dele por lá.

Chegando em Recife no primeiro dia agendado o Chico de Oliveira ao invés de ir para a Clínica foi para o mar e a médica me ligou à noite apavorada com os riscos que ele estava correndo. Eu então liguei também  à noite no Hotel para dar-lhe uma bronca: Chico, como assim, que você não foi fazer hemodiálise, está correndo risco de vida, viu? – Não querida, fui para o mar, o mar é vida. Querida, venha pra cá também, Boa Viagem é uma delícia. A hemodiálise é que é de morte! (risos)

Chico, estou falando sério, eu falei com a médica para te atendê-lo na primeira hora da manhã e você não pode faltar e as outras clínicas não são confiáveis. Ele ria, dizia que já estava “descendo a ladeira mesmo”, mas obedecia e acabava sendo tão gentil com a equipe que as amigas ficaram encantadas com ele…

Chico de Oliveira sabia das coisas e ria dos vaidosos, mas ria baixinho para não os magoar. Sabia diferenciar a pequena ganância do oportunismo das grandes “fulano é da quitanda já fulano é das Fundações”, fulana precisa “calçar os chinelos da humildade”, “fulano não se trata”, fulano “é atilado, mas fica no trilho” “tuti buona gente”.

E aquele Padre Anselmo, o padre das anedotas, tão citado pelo Chico? Dizia ele “ Um padre velho e cansado do Sertão de Pernambuco era chamado para atender as almas oferecendo a extrema unção ao cidadão na hora da morte – ele é chamado na hora da morte para socorrer as almas. Chega lá e encontra uma belíssima mulher. O Ariano Suassuna chamaria de “mulher vestida de sol” e o padre Anselmo pergunta para o Bispo o que fazer, e ouve “Esta felicidade não está para esse padre, Senhor”.

Chico de Oliveira era assim, um intelectual brincante e penso que quase indizível.

Um dia ele me ligou pedindo ajuda para os trabalhadores da padaria do seu bairro para indicar cursinhos populares para eles. Ele era generoso e discreto.

Falava dos filhos com especial carinho, dizia que “se Deus existisse eram seus filhos e sua mãe.” Preocupava-se com o desemprego, com a vulnerabilidade das novas formas de trabalho.

Chico era mesmo singular e eu não tinha dia nem hora para falar com ele por telefone ou ir visitá-lo. Levava bolos, frutas e outras guloseimas que ele apreciava, canjica, doces de caju em compota trazidos de Itamaracá, graviolas, pinhas, rocambole, queijo de coalho e bolo Souza Leão e até mesmo roupas artesanais como as camisas de linho cru compradas em feiras livres. Antes de assinar papéis era uma maçã, um café, um chá, um suco, pois éramos de Pernambuco.

Chico, vou te buscar para um almoço, vamos comer baião de dois e casquinha de siri, fique pronto! Ele ficava todo lindo e cheiroso, era um gentleman, eu lhe contava sobre minhas paixões e ele dizia que se eu quisesse ele dava uma forcinha, um empurrãozinho, mas eu lhes dizia que eu era a Dulcinéia em busca do Dom Quixote e ele me respondia que então já tinha meio nome só faltava salgar os porcos e eu lhes dizia que melhor não. (risos)

Éramos amigos sinceros, gente do front e de caráter. Perdeu muitos amigos recentemente e ficava muito triste com cada partida: Carlos Nelson Coutinho, Antonio Candido, Paul Singer, Maria Célia Paoli. Foi muita gente da sua turma. Em junho de 2019 quando da morte da Maria Célia, ele quis escrever um texto para homenageá-la, me pediu material para revisar. Montei a pasta, mas ele não escreveu e me ligou e pediu para eu escrever. Eu falei que escolheria um poema ou mais do Drummond e do Bandeira e no dia da homenagem nós leríamos juntos para ela na presença da sua filha Mariana e ele concordou. Ele partiu no mês seguinte, fiquei devendo essa para ele, mas vou cumprir no dia da homenagem a Maria Célia.

Obrigada Chico, por existir, por ter encontrado você nesta São Paulo, por ter me dado a mão e por ter aprendido que ser crítico e dissidente não é romper com os valores da esquerda e da luta, mas apostar no que move e constrói os direitos e a cidadania mesmo que utopicamente.

Com o Chico eu reforcei minha certeza de que ser mulher, mãe solteira, nordestina e trabalhadora desta Universidade não me deixa menor, não sou um subproduto, sou gente que constrói e defende o seu chão, sua base, e que nos pequenos gestos se gestam a sociabilidade das relações. No cotidiano se fortalecem laços, se superam desafios e principalmente que sem bases não há revolução.

Nessa tribo, eu sei, foram e serão muitas travessias, mas nós aprendemos com ele que somos madeira de lei que cupim não rói.

Encontrar o Chico de Oliveira foi cruzar uma estrada luminosa, foi ter a gratidão do sotaque e da generosidade da raiz de Pernambuco, foi ter alguém por perto para falar do Nabuco, do Freire, do Capiba, das alegrias festas e feridas da nossa gente cantante. Cruzar com o Chico foi um instante, eita, passou…

Nem acredito que aqui estamos para falar do Chico no passado. Chico é, e sempre será presente, ele sacudia a gente, chacoalhava as ideias, achava metáforas, fazia analogias sem perder o espírito da boa anarquia, da graça. Quem não se lembra do Padre Anselmo? Chico gostava de poesia de fantasia, de alegria.

Ele era elegante e mordaz, atento como ninguém, Chico reunia o melhor deste país.

Chico, nosso mestre amigo, você deixou raiz profunda. És presente, pois fostes um intelectual que, como o Paulo Freire nunca teve medo de ser afetivo, presente, altivo!

Para você, Chico, quero confessar, preparamos eu e o meu filho, uma câmera para fotografá-lo na segunda-feira à noite e não deu tempo, você partiu na madrugada sem nos avisar. Eu então escolhi o poema Consoada, de Manuel Bandeira, que é um exemplo de quem viveu, sofreu, mas assimilou cada passo com muita sabedoria, apesar do sofrimento não ficou amargo, mas cumpriu sua travessia com decência, ética e generosidade. Fechou um ciclo e nos deixou com leveza e esse foi um enorme legado: O dever cumprido como amigo, como homem de luta, como Estadista!

Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Para você, Chico, eu dedico a música que você tanto apreciava, que é uma marchinha carnavalesca que ressignifica a luta e tanto nos fortalece “Madeira do Rosarinho” em nome dos trabalhadores da USP, de todos os outros membros do Cenedic que poderiam compor aqui essa mesa, do povo pernambucano e em nome da resistência à barbárie:

Madeira do Rosarinho
Vem à cidade sua fama mostrar
E traz com seu pessoal
Seu estandarte tão original
Não vem pra fazer barulho
Vem pra dizer e com satisfação
Queiram ou não queiram os juízes
O nosso bloco é de fato campeão
E se aqui estamos, cantando essa canção
Viemos defender a nossa tradição
E dizer bem alto que a injustiça dói
Nós somos madeiras de lei que cupim não rói.

*Lucinéia Almeida é funcionária do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – CENEDIC, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Texto lido em novembro de 2019 por ocasião de homenagem ao professor Chico de Oliveira.

 


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