Capitalismo no século XXI

Jo Spence, O maior produto do capitalismo, 1979.
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Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

Introdução do autor ao livro recém-lançado

Capitalismo no século XXI nasceu para sacudir uma bandeira: atenção, atenção, há uma grande turbulência a frente, pois a nave capitalismo se desgovernou por si mesma, definitivamente. Agora somos verdadeiramente muitos e estamos na mesma viagem, precisamos, pois, nos unir para mudar o rumo da história. Por isso, escolhi como subtítulo do livro a expressão “Ocaso por meio de eventos catastróficos”.[1]

O sistema social em que se vive, como se sabe, existe e persiste no tempo histórico por meio da contínua transformação das condições da produção, mas também das instituições e dos aparelhos que lhe dão suporte e que conformam o comportamento das pessoas, tais como a escola, a mídia etc.

Mais ainda, em seu curso atribulado, ele transforma a cultura, a personalidade individual e, assim, a civilização como um todo. Ao pensar a existência da sociedade humana desde tempos remotos verifica-se – e isso não é novo – que o movimento de mudança histórica trazido por esse modo de organização humana nunca foi tão rápido, tão inovador e tão turbulento. O seu dinamismo envolve progressões, crises e mesmo regressões. Nunca se mostra sossegado.

Essa é hoje uma compreensão corrente e bem difundida do modo de produção em que se vive atualmente; como se sabe, houve outros como o feudalismo e o escravismo. Marx e Engels já em meados do século XIX apresentaram uma compreensão dele, ao mesmo tempo visionária e concêntrica, que se tornou inesquecível. Eis que é a partir do modo de produção que se articula toda a estrutura da sociedade.

Escrevendo o Manifesto Comunista, em meados do século XIX, disseram que “a burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, assim, todas as relações sociais”. Ou seja, localizaram na lógica do processo produtivo – ou seja, na lógica da acumulação de capital – a fonte de um dinamismo totalmente novo no curso da história milenar do homem na face da Terra.

Como se sabe, encontra-se nesse panfleto genial uma compreensão marcante e decisiva do desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias. Vê-se aí que ele contém uma dinâmica interna que eleva a produtividade do trabalho por meio de novas tecnologias e novas formas de organização do processo de produção, que aumenta a massa das mercadorias produzidas e que exige, em decorrência, a contínua expansão dos mercados.

Como consta aí – e este é o ponto que interessa aqui ressaltar – a indústria moderna, baseada em máquinas cada vez mais complexas, diversificadas e potentes exige a integração progressiva dos mercados nacionais e do mercado mundial. O comércio de mercadorias, por sua vez, exige o desenvolvimento dos transportes terrestres e marítimos, das comunicações e, em consequência, dos fluxos de informação.

Além do comércio entre países, difundiram-se também, primeiro, as plantas industriais modernas para nações da periferia, mas também, depois, as cadeias internacionais de produção que interligaram o mundo por meio de relações intersetoriais de insumo/produto. Na linguagem dos sistemas dinâmicos, todo esse processo pode ser caracterizado pela lógica da realimentação positiva: grosso modo, o mercado expande a produção, a produção exige a expansão do mercado nacional e mundial, a qual, por sua vez, requer o desenvolvimento da produção.

Marx e Engels apresentaram esse movimento ainda no Manifesto, que veio a ser chamado depois de processo de globalização ou de mundialização, como conquistador, disruptivo e mesmo heroico. A perspectiva adotada nesse escrito marcante é a de jovens revolucionários. Ao perquirirem o futuro em meados do século XIX, este lhes pareceu aberto a grandes transformações: “Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo terrestre. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte”.

Neste livro, pretende-se revisitar esse processo, mas agora da perspectiva do começo do século XXI, quando o horizonte deixou já de parecer progressivo, auspicioso e radiante e se mostra, ao contrário, bem turvo e complicado. Mais de um século e meio se passaram desde aquele momento promissor, mas agora tudo se transfigurou: o passado parece tumultuoso, crispado e mesmo trágico e o futuro se afigura estreito, talvez fechado – de qualquer modo, adverso.

Esse escrito, agora do ponto de vista de um século XXI calamitoso, pareceu a muito críticos que os dois jovens filósofos se entusiasmaram em excessivo com a lógica do progresso. Eis que, baseada no dinamismo da produção, ela parece sugerir que a civilização vai desabrochar em todas as suas dimensões. Eis que esse centralismo do econômico foi caracterizado por muitos críticos, por isso, como estreito e produtivista.

Entretanto, estudos mais recentes da obra do filósofo da práxis como um todo, tal como o de Kohei Saito em o Ecossocialismo de Karl Marx, mostraram que “ao longo do caminho, ele abandonou conscientemente sua avaliação otimista do potencial emancipatório do capitalismo”. De qualquer modo, cito aqui uma tese crucial de Walter Benjamim sobre o “anjo” triste que se chama progresso. Ele quer fazer o bem, se esforça para prover a humanidade, mas vai deixando atrás de si um rastro de destruição.

Há um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

Sob o sol inclemente dessa avaliação – eis que ela desertifica e queima – e sob a sombra fugidia de um ecossocialismo democrático, apenas possível, a finalidade deste escrito é apresentar três teses sobre o devir histórico do sistema baseado na relação de capital, ou seja, entre o capital e o trabalho assalariado.

A primeira delas diz que o processo de globalização esteve sujeito não apenas a movimentos expansivos, mas passou também por reversões muito significativas; eis que a principal delas ocorreu em meados do século XX – um período marcado no início e no fim por guerras mundiais e que foi classificado como uma primeira era catastrófica.

Eric Hobsbawn escreveu em a Era dos Extremos que o fim dos tempos foi anunciado nesse período, ou seja, entre 1914 e 1945. O fim de considerável proporção da razão humana não pareceu muito distante. Houve momentos em que talvez fosse de se esperar que o deus ou os deuses que os homens pios acreditavam ter criado o mundo e tudo o que nele existe estivesse arrependido de havê-lo feito. A humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do século XX desmoronou nas chamas de duas guerras mundiais e da depressão dos anos 1930.

A segunda tese afirma que a partir dos anos 80 do século passado se assiste ao ocaso do capitalismo sem que tenha havido um movimento decisivo em direção ao socialismo. Na verdade, como se sabe, as duas grandes revoluções do século XX, a russa em 1917 e a chinesa em 1949, retornaram, depois de um período que parecia revolucionário, a forma de organização social que supostamente queriam ultrapassar.

Finalmente, a terceira tese sonda o futuro a partir de certas tendências que estão se manifestando após a crise de 2008; com epicentro nos Estados Unidos, ela se espalhou pelo mundo mostrando mais uma vez que nada dura muito nesse sistema social. O objetivo principal consiste em mostrar há agora fortes motivos para pensar que a humanidade entrou em uma nova era de catástrofe.

Para dar sustentação a essas três teses, quatro capítulos se seguem. O primeiro revisita um passado que vai de meados do século XIX até o começo do século XXI para mostrar as ondas de globalização e reversão.

O segundo traz argumentos para apoiar a tese de que se está já no ocaso do capitalismo; o principal deles, mostra uma característica tardia desse modo de produção, qual seja ela, a socialização adiantada do capital por meio da hegemonia do capital financeiro. Mencionam-se aqui barreiras que o capital não pode superar mais nem com a assistência do Estado:

Quatro contradições estão na base dessa crise estrutural. São elas: (i) Há uma necessidade crescente de bens públicos num sistema baseado na propriedade privada. Veja-se, por exemplo, a necessidade de prover o SUS como mais recursos. Diante dele, os arautos do sistema financeiro anunciam como desgraça, não o sofrimento da população carente, mas a falta de austeridade.

(ii) Há uma necessidade imperiosa de coordenação da ordem mundial. Eis que se tem um sistema econômico mundializado formado por nações que tem interesses conflitantes. Nesse sistema, cada nação só quer mesmo passar a “batata quente” para as outras. Veja-se, por exemplo: foram já feitas várias conferências internacionais para tratar da ameaça climática; nelas, metas foram estabelecidas para a redução da emissão de carbono; entretanto, essas metas não estão sendo cumpridas e não serão cumpridas porque as nações atuam cada uma buscando o próprio interesse, não o interesse coletivo.

(iii) Tem-se atualmente uma apropriação crescente da natureza diante de uma limitada capacidade de carregamento do planeta Terra. A lógica da acumulação de capital requer de modo imanente a exploração máxima da natureza humana e da natureza não humana. Sob ela, o “desenvolvimento sustentável”, mesmo se altamente desejável, se torna um apenas logro: de fato, ele é insustentável. Na verdade, não passa de um autoengano ingênuo ou de um engano de outros que tem boa vontade.

(iv) O sistema vive uma crise de superacumulação em que a destruição de capital se tornou politicamente insustentável. A solução das crises econômicas em sua lógica imanente requer sempre a destruição “moral” e “física” de parte do capital acumulado; atualmente, a propriedade do capital foi socializada por meio dos mercados de ações, título, fundos etc. A magnitude do desmanche seria tão grande que o processo é impedido por meio da criação de liquidez por parte dos governos e bancos centrais. Em consequência, o montante das dívidas globais não diminui, mas, ao contrário, cresce sempre mais.

O terceiro capítulo tenta mostrar as tendências atualmente presentes no evolver do modo de produção recém-globalizado por completo e que permitem afirmar estar nascendo um novo período catastrófico que põe em risco a existência da própria humanidade. E esse perigo se mostra decisivo no problema do aquecimento global e dos desastres ecológicos:

Luiz Marques em sua obra Capitalismo e colapso ambiental (2015) alerta para o que chama de uma grande inversão: durante quase toda a longa história do ser humano na face do planeta o aumento da produção elevou a segurança e a perspectiva de vida das populações, agora esse aumento passou a atuar em sentido contrário já que se eleva sistematicamente o risco do colapso ambiental. Esse tipo de desastre não é novidade na história da civilização, mas ele sempre aconteceu localizadamente. Agora, entretanto, trata-se de uma ameaça que atinge a humanidade como um todo.

O quarto e último capítulo busca mostrar o impasse civilizatório, que nasce do econômico, mas que envolve, também, outras dimensões como, por exemplo, aqueles que ocorrem na saúde, na escola e na família. A crise hoje é vista, por isso, como policrise. A derrocada em andamento, em especial pelos eventos climáticos, afeta hoje a humanidade como um todo. E ela tem um caráter multidimensional. Fraturas estão ocorrendo e se agravarão. E elas criarão certamente catástrofes, mas também possibilidades de revoltas e de mudanças.

O genocídio que atualmente ocorre na Palestina usurpada por uma Israel racista e colonialista, sob o suporte dos imperialismos norte-americano e europeu, ambos agora em declínio, é uma amostra da forma como os desenvolvidos vão tratar as suas periferias doravante. O mundo assiste estarrecido, mas nenhuma ação decisiva tem sido feita para parar o genocídio, mas um que tem de ser debitado na conta da Humanidade.

Marx escreveu em sua obra maior, em meados do século XIX, que a verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital. Em seu desenvolvimento, de modo imanente, ela cria barreiras, supera essas barreiras apenas para criar barreiras ainda mais poderosa. Essa dinâmica, entretanto, modificou-se no correr do século XX, pois o Estado tornou-se necessário para a superação das barreiras então criadas pelo processo de acumulação.

Agora, no século XXI, nova modificação ocorreu; agora, o capital criou já barreiras que não consegue e não conseguirá mais suplantar. Em consequência, a superação dessa sociabilidade competitiva e individualista se tornou uma necessidade existencial para a humanidade, para além dos interesses imediatos da classe trabalhadora. Somos agora verdadeiramente muitos e temos de nos apressar… A história está demandando agora uma grande transformação molecular. Mais do mesmo ou o aprofundamento do mesmo não vai funcionar.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).

Referência


Eleutério F. S. Prado. Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos. São Paulo, CEFA Editorial, 2023, 114 págs.
Pré-venda: [https://amzn.to/46s6HjE]

O lançamento em São Paulo será no dia 23 de novembro, às 19 horas no Anfiteatro da FATEC-SP [Avenida Tiradentes, 615].

Nota


[1] O livro foi uma encomenda de Paulo Ghiraldelli. Devo o título a uma sugestão de Ricardo Musse.


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