A Kizomba da Vila Isabel – festa da negritude e do samba

Cleber Souza, Roda de samba, 2021.
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Por DANIEL COSTA*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Carlos Fernando Cunha, Nathalia Sarro e Vinícius Natal

“Valeu Zumbi: \ O grito forte dos Palmares \ Que correu terras, céus e mares \ Influenciando a abolição \ Zumbi valeu \ Hoje a Vila é Kizomba \ É batuque, canto e dança \ Jongo e maracatu \ Kizomba” (Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila).

Não é de hoje que setores da sociedade debatem e lutam pelo estreitamento das relações entre a Universidade (especialmente a pública) e o público externo, uma questão que nem deveria suscitar debate por ser tão óbvia, afinal o tripé que sustenta a Universidade é ensino, pesquisa e extensão.

Atentos a esse debate e conscientes do papel que deve ser exercido por uma Universidade pública um grupo de professores universitários resolveu mostrar que apesar do samba não ser ensinado no colégio, a universidade deve sim abrir suas portas para os mestres desse ritmo forjado em quintais, tendinhas e morros. Foi com esse espírito que surgiu nos corredores da UERJ o projeto Acervo Universitário do Samba, hoje coordenado pela professora Andressa Lacerda e com supervisão editorial do professor Luiz Ricardo Leitão, o projeto de extensão vinculado ao Centro de Tecnologia Educacional da UERJ (CTE-UERJ) e à Diretoria de Comunicação Social (Comuns) da Universidade tem trazido para o público obras de referência para pensar o samba e o carnaval, especialmente o carioca.[i].

Desde o lançamento do primeiro volume em 2015, a biografia do compositor Aluísio Machado, escrita por Luiz Ricardo Leitão, o projeto vem se tornando referência para aqueles que buscam compreender o desenvolvimento dessa festa que apesar dos pesares ainda pode ser considerada uma das mais democráticas e populares do país. Com o lançamento de A Kizomba da Vila Isabel: festa da negritude e do samba, escrito por Carlos Fernando Cunha, Nathalia Sarro e Vinícius Natal o leitor terá a oportunidade de acompanhar o processo de construção de um desfile de carnaval, desde a concepção do enredo até o dia em que ocorre a abertura dos envelopes com o crivo dos jurados acerca do desfile.

O leitor que se debruçar sobre as páginas que retratam essa verdadeira kizomba, terá a oportunidade de acompanhar a concepção do “épico desfile de 1988 da Vila Isabel, decerto uma das mais notáveis expressões de resistência cultural do samba carioca. O surpreendente e vitorioso cortejo é um marco não apenas na história da nossa folia, mas também no seio da comunidade do Morro dos Macacos e da buliçosa terra de Noel”.

Ao longo de dez capítulos – quesitos, o leitor passará pelas raízes de Vila Isabel, conhecendo a trajetória do bairro criado em meados do século XIX e da escola fundada em 1946, passando ainda pela construção e idealização do enredo; alegorias, fantasia e adereços; a composição do samba de enredo, um clássico atemporal do carnaval; passando pela bateria, o coração da escola até chegar à velha-guarda e as baianas, o esteio de qualquer agremiação.

O livro é acompanhado pelo documentário Kizomba: 30 anos de um grito negro na Sapucaí, dirigido pela historiadora e cineasta Nathalia Sarro, produzido pelo Departamento Cultural da G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel e que foi lançado em 2018 para comemorar três décadas desse desfile simbólico.

De acordo com os editores da publicação, “em tempos de profunda intolerância étnica, religiosa e social, além de espúrias manifestações de racismo no Brasil e no exterior, é sempre oportuno revisitar o cortejo realizado no ano do centenário da pretensa abolição da escravatura”.[ii] Para os autores da obra, “a Kizomba não marcou o tempo apenas por ser um desfile considerado, por muitos, como um dos melhores que passaram pela Sapucaí. Além disso, seu componente político, ao dialogar com a Constituição de 1988, é admirável em meio a um processo de reinvenção da política nacional”.

Segundo o cantor e compositor Martinho da Vila, um dos idealizadores do enredo, kizomba “é uma palavra do kimbundo que significa o encontro de pessoas que se identificam numa festa de confraternização”, ainda segundo o poeta da Vila de Noel, “do ritual da kizomba fazem partes inerentes o canto, a dança, a comida e a bebida, além de conversações em reuniões e palestras que objetivam a meditação sobre problemas comuns”.[iii]

Ainda segundo o trio de autores, “cabe frisar que o livro não possui apenas a intenção de contar, de forma reflexiva e a partir das vozes de quem desfilou naquele ano, como foi o histórico campeonato. Bem mais além desse propósito, ele também tem a ideia de mostrar como um olhar aguçado sobre um desfile pode nos despertar reflexões profundas sobre negritude, o samba como projeto de nação brasileira e suas disparidades sociais e, por fim, é memórias subterrâneas presentes nas gavetas e cabeças dos sambistas vila-isabelenses”.[iv]

O vínculo dos autores com a escola é um ponto crucial para o desenvolvimento da narrativa, com a profusão de trabalhos acadêmicos sobre o universo do samba e das escolas, o que poderia ser algo auspicioso as vezes torna-se problemático principalmente quando o pesquisador não está presente no cotidiano daqueles lugares, deixando assim de enxergar as contradições e disputas – positivas e  negativas – que ocorrem naqueles espaços. Na obra em questão não temos esse problema, visto que o trio de autores possui vínculos com a escola e com o bairro, o que possibilita a construção de uma narrativa que abarca todas as nuances envolvidas na construção de um desfile.

O historiador e professor Vinícius Natal, neto de Dona Ivanísia, reconhecida compositora da escola começou a frequentar os ensaios da bateria da escola, a swingueira de Noel aos 14 anos, lá segundo o mesmo: “aprendeu a ser sambista, ritmista e cidadão pela batuta de Mestre Mug[v] e pelo afago carinhoso de Tia Cirene e Tia Beta”, hoje Vinícius continua atuando na escola como professor.

Já a historiadora, cineasta e jornalista Nathalia Sarro, apesar de não vir de uma linhagem de sambistas, foi criada e mora até hoje no bairro de Noel. Assim como Vinícius Natal, Nathalia Sarro estreitou seus laços com a agremiação aos 14 anos quando foi levada por sua mãe a quadra da escola para acompanhar a disputa de samba. Segundo Nathalia Sarro, “a Vila Isabel ganhou meu coração de cara, um novo mundo surgia para mim ali naquele momento. Em 2005, eu descobri meu lugar no mundo, quase na esquina de casa. O lugar onde a vida faz mais sentido, e a felicidade toma conta do corpo inteiro”. Integrante do Departamento Cultural da agremiação desde 2014, ocupa atualmente o posto de diretora do grupo.

Por fim temos o cantor, compositor, professor e pesquisador Carlos Fernando Cunha, que apesar de ser filho de um portelense e uma mangueirense foi cativado pela Vila aos treze anos quando pela televisão assistiu a escola da terra de Noel desfilando na passarela do samba. Porém seria “a partir de 1997, depois de ralar um bocado de tempo, que passaria a integrar a swingueira, primeiro no tamborim, depois na caixa, até chegar ao tarol”, até hoje Carlos Fernando segue firme e forte desfilando na agremiação de Vila Isabel.

Na visão dos autores da obra, o ponto que uniu a trajetória do trio culminando na obra comentada, “foi o ofício na História e a preocupação com a memória de parte da nossa identidade, o samba e um olhar diferenciado e atento para a história de Vila Isabel. Se havia uma narrativa que privilegiava os feitos do Barão de Drummond e a construção de um bairro projetado em um modelo francês, por que não falamos, por exemplo, das  famílias negras descendentes de escravizados que, no pós-abolição, foram responsáveis pela ocupação dos morros locais? Há, então, um privilégio branco ao se contar a história do bairro. Para isso, a Kizomba nos despertou e aguçou a curiosidade. Onde estavam e quem eram as pessoas que construíram aquele espaço, por que eram silenciados?”.

Com a leitura de A Kizomba da Vila Isabel: festa da negritude e do samba, o leitor será convidado a viajar pelo épico desfile da Unidos de Vila Isabel no carnaval de 1988, com enredo assinado por Martinho da Vila e o inesquecível samba do trio composto por Luiz Carlos da Vila,[vi] Jonas e Rodolpho.[vii]

Em depoimento prestado ao Departamento Cultural do GRES Unidos de Vila Isabel e reproduzido no livro, Jonas afirma que após receber a sinopse é que se deu conta que a Vila era uma escola muito negra. Para os autores, “a despeito de uma história oficial que teimava em cantar Vila Isabel somente como um bairro que flertava com um estilo europeu e herdeiro de um intento civilizacional francês,[viii] a história da escravidão negra estava ali. A ancestralidade costurava as ruas e vielas. O Morro dos Macacos e suas divisões já haviam sido, também, quilombo, e isso precisava ser valorizado”.

Jonas ainda revela que o samba de sua parceria não era o preferido da presidenta da escola, mas contava com a plena simpatia de Martinho da Vila que, quando viajava ficando impossibilitado de acompanhar as eliminatórias deixava seu voto com a diretoria da agremiação, garantindo assim que o samba não fosse cortado. O compositor ainda conta aos autores do livro que a intenção de sua parceria “exaltar a Princesa Isabel e colocá-la no papel de heroína da abolição, mas sim enaltecer Zumbi, a luta negra e seus personagens como protagonistas”.

Antes da publicação da obra que coroa a trajetória do desfile ocorrido em 1988 o Departamento Cultural produziu um documentário[ix] e a jornalista e historiadora Nathalia Sarro, coautora da obra, publicou o texto Kizomba – 30 anos de um grito negro na Sapucaí. Um registro plural e democrático.[x] Considerado por especialistas e pelos amantes da folia como um dos mais emblemáticos desfiles do carnaval carioca, o enredo que sagraria campeã a agremiação da terra de Noel e do Morro dos Macacos foi desenvolvido a base de muita luta e suor dos membros da escola.

Além de fazer do “negro o grande vitorioso daquele carnaval”, Kizomba consagrou a gestão de Lícia Caniné, a Ruça, militante do PCB que ocuparia a direção da escola no vácuo de poder deixado com a saída do banqueiro do bicho Capitão Guimarães[xi] que se afastaria da escola levando consigo o capital financeiro. Porém, se o banqueiro levou consigo o dinheiro, o capital artístico e intelectual permaneceu na escola. Assim, recompondo-se “com palha, fibras e alegria no asfalto da Av. Marquês de Sapucaí” foi contada a “trajetória de milhares de ex-escravizados e de seus descendentes”.

Como diretora do Departamento Cultural da escola, e também uma das responsáveis pelo documentário Kizomba: 30 anos de um grito negro na Sapucaí, Nathalia Sarro fala sobre o trabalho no departamento trazendo luz a dificuldade ainda enfrentada pelos pesquisadores quando a tarefa é recontar a memória das agremiações. “Os departamentos culturais de forma geral, não só o da Vila, enfrentam enormes dificuldades para exercer, institucionalizar, manter e levar à frente esse trabalho. Muitas vezes as diretorias assumem um discurso de resgate, mas não se comprometem de fato com isso. Julga-se que o objetivo mais direto de qualquer grêmio recreativo é levantar o caneco na Sapucaí ou na Intendente Magalhães e que o carnaval é composto também pela efemeridade. Contudo, essa urgência compromete estruturalmente sua configuração e esvazia vários significados construídos ao longo dos anos. É preciso entender por que tal fenômeno acontece e se torna tão difícil trabalhar a memória nesses espaços”.

Com o lançamento de A Kizomba da Vila Isabel: festa da negritude e do samba, o projeto Acervo Universitário do Samba segue cumprindo com esmero a missão de apresentar ao público grandes nomes do samba, assim como momentos marcantes do carnaval carioca. Como bem destacou Nathalia Sarro: “Que o legado da Kizomba siga sendo eterno, que está Kizomba continue nos constituindo. O pagode é o partido popular!”.

*Daniel Costa é graduado em História pela Unifesp e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

Referência


Carlos Fernando Cunha, Nathalia Sarro, Vinícius Natal. A Kizomba da Vila Isabel: festa da negritude e do samba. Rio de Janeiro, Mórula Editorial / Outras Expressões, 2023, 368 págs. [https://amzn.to/417Sx6k]

Notas


[i]  Para maiores informações sobre os volumes anteriores ver: https://aterraeredonda.com.br/cartografia-do-samba-carioca/

[ii] Para o compositor e intelectual Nei Lopes que assina o prefácio da obra, “a Kizomba da Vila” representou, acima de tudo, uma grande oferenda ritual celebrada pelo Samba, o Rio de Janeiro e o Brasil em honra daqueles que o antropólogo belga Jan Vansina denominou os ancestrais esquecidos.”

[iii] A explicação dada por Martinho encontra-se na sinopse produzida pela Unidos de Vila Isabel para o desfile de 1988 e foi reproduzida de forma integral na publicação comentada. Ver págs. 30 – 43.

[iv] O trio de autores explica ao leitor que durante “o processo de escuta realizado nas entrevistas com antigos sambistas, quando questionados sobre o momento mais impactante, todos eles respondiam com uma só palavra: Kizomba. Adjetivos como “fantástico”, “emocionante” se repetiam a cada depoimento, muitas vezes seguidos de lágrimas nos olhos. Tal fato chamou nossa atenção, entendendo que se tratava da construção de uma espécie de mito urbano que reinava sobre a alma da escola”.

[v] De acordo com os autores após Osmar Mariano a bateria da Vila Isabel tem na figura dos Mestres Ernesto e Mug “os principais responsáveis pelo desenvolvimento, por sua consolidação em termos de definição dos seus naipes de instrumentos e características rítmicas. Mug foi o principal condutor desse processo. Ele dirigiu a bateria durante décadas e foi campeão com a Vila Isabel nos anos de 1979 (Grupo B), 1988, 2004 (Grupo de Acesso), 2016 e 2013”.

[vi] É importante destacar que o sobrenome artístico “da Vila” carregado por Luiz Carlos vem de suas vivências pela região da Leopoldina, especialmente os bairros de Ramos e a Vila da Penha, embora sua trajetória tenha sido marcada pela relação com a escola e bairro da Vila Isabel.

[vii] Cabe lembrar que no mesmo ano em que a Vila Isabel levou para a Marquês de Sapucaí o samba de Luiz Carlos da Vila, Jonas e Rodolpho a Mangueira vinha com o samba “Cem anos de liberdade – realidade ou ilusão?”. O samba composto por Hélio Turco, Jurandir e Alvinho daria o vice-campeonato a verde e rosa e seu refrão é considerado até hoje um dos melhores de todos os tempos do carnaval carioca.

[viii] O bairro de Vila Isabel teve como base de inspiração o modelo francês de urbanização, porém como os próprios autores alertam: “É importante frisar que a história de Vila Isabel vai mais além da construção de ruas abolicionistas sob um padrão europeu, mas também é marcada pela ocupação de seus morros e encostas por filhos e netos de escravizados”.

[ix] O documentário Kizomba: 30 anos de um grito negro na Sapucaí foi realizado na esteira das comemorações pelos trinta anos do desfile mencionado. Após a estreia em sessão no Museu de Arte do Rio, o documentário passou por salas como o Odeon, festivais e inúmeras escolas públicas e privadas do Estado do Rio.

[x] O texto de Nathalia Sarro foi publicado no livro Samba, democracia e sociedade. Para um comentário sobre a publicação ver: https://aterraeredonda.com.br/samba-democracia-e-sociedade/

[xi] De acordo com os jornalistas Aloy Jupiara e Chico Otávio, autores do livro Os porões da contravenção. Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado, Capitão Guimarães foi terceiro presidente da Liesa, substituindo Castor de Andrade e Anísio Abraão David. Anos depois de Ruça deixar a presidência da Vila, ele voltou a exercer influência sobre a escola. Em mais de um período chegou a colocar prepostos na direção. Podia não aparecer na quadra, mas em reuniões na sua casa se decidiam enredos e se escolhiam os sambas. Outro caso envolvendo Guimarães é narrado pelo jornalista Leonardo Bruno, “A disputa foi tensa. Não só pela qualidade das obras, mas porque os bastidores da escola assistiam a uma guerra silenciosa entre dois chefes do jogo do bicho. Capitão Guimarães, recém chegado à Vila, ameaçava o reinado de Waldemir Garcia, o Miro, presidente de honra da azul e branco, onde estava desde os anos 1960. Tradicionalmente, era Miro quem escolhia o samba vencedor da Vila. Mas as opiniões, no concurso de 1985, eram conflitantes: Miro preferia o samba de Pedrinho da Flor, enquanto Guimarães queria a vitória de David Corrêa. Por pouco a divergência não acabou em sangue. Guimarães conseguiu impor seu desejo e Miro resolveu se afastar definitivamente da Vila Isabel. A saída para a família Garcia foi se refugiar numa escola próxima: o Salgueiro, que seria comandada por ele nos vinte anos seguintes”.


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