Por IVONALDO LEITE*
Num mundo onde o tempo é uma qualidade, acontecimentos não são pontos fixos em determinados períodos
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Assim escreveu o Prêmio Nobel Gabriel García Márquez, ao principiar o seu clássico Cem Anos de Solidão, narrando a saga da América Latina, por ele chamada Macondo.
García Márquez deu expressão literária ao tempo-ficção como construtor da memória-existência de uma região, nomeadamente, de resto, quando afirma que Macondo era uma pequenina aldeia de apenas vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio, e que “o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las era necessário apontar com o dedo”. A inteligibilidade ficcional do tempo, contudo, contrasta com a polissemia da sua representação “real”.
Dizia Agostinho de Hipona que há consciência do que é o tempo; porém, basta tentar expressá-lo em palavras, e já não se sabe do que se trata. Por vezes, o tempo é percebido como a trágica renúncia de possibilidades, a vida inteira que poderia ter sido, mas não foi, segundo o dizer do poeta Manuel Bandeira.
Outras vezes, o tempo é sentido como portador de possibilidades inesperadas. Há casos em que as coisas duram apenas alguns segundos, mas que consubstanciam momentos que valem uma vida ou, conforme a célebre frase do personagem cego Frank Slade (Al Pacino) no filme Perfume de Mulher: “num momento, vive-se uma vida”. No entanto, há momentos, também, em que os segundos podem demorar um “século”, e não têm significação ontológica.
Diante do tempo, há milhares de palavras. Contudo, as perguntas a seu redor se mantêm e se multiplicam, questionando, por exemplo, se ele realmente existe ou se é um conceito que nós criamos para aglutinar as inquietações sobre as quais há mais mistério do que perceptibilidade. Não só isso. Várias outras indagações emergem, como: Em quantos sonhos, por causa do tempo, os seres humanos já se viram enredados?
Qual é o significado do tempo estampado no rosto, na fala e nos gestos? As palavras que brotam, os olhos que deambulam entre elas, os sentidos do presente, que não são mais os mesmos de antes, o pensamento e as suas realizações, são obras do tempo? A religião e a sua ideia de saberes, as profecias, as crenças, a dedicação a cultos e adoração de deuses, os ritos, as obrigações da iniciação religiosa, etc., existiriam se não fosse o enigmático vácuo do tempo? O poder manter-se-ia sem o tempo no qual ele se expressa? No vazio da sua ausência, haveria o ideal de liberdade e de transformação? Enfim, haveria vida sem o tempo?
De uma referência que, como marcador, acompanhava o nascer e o pôr do sol, aos poucos, o tempo passou a nortear o controle do ritmo da vida quotidiana. Contemporaneamente, verifica-se um predomínio da textualização do tempo, quer dizer, da utilização da linguagem dando vida à temporalidade. Expressões como duração, transcurso, continuidade, ontem, hoje, amanhã, instante, etc., evidenciam uma relação entre o ‘ser e o tempo’ sob a mediação da linguagem.
Por outro lado, sem a linguagem, percebe-se o tempo, mas ele carece de significação. Eventos como nascer, crescer, amar, transformar-se, etc., são percebidos na temporalidade e registam marcas no ser, com ele, ao longo da sua existência, produzindo modos de identificá-las e compreendê-las.
Uma das dimensões mais desafiantes, para o ser humano, é, provavelmente, a que envolve o tempo e a finitude. Na verdade, a morte parece ser um “problema” para os que ficam, os que não morreram, não para quem se foi. Nesse sentido, o filósofo alemão Theodor Adorno disse que os sobreviventes das mortes trágicas não tinham o direito de viver ignorando as “dores do mundo”, isto é, o sofrimento daqueles que padecem com o inferno das tragédias que lhes são impostas. Deveriam, sim, ser solidários com eles.
Há infernos, aqui e agora, por todos os lados. Ao dizer que o “inferno são os outros”, o dramaturgo e romancista sueco August Strindberg descreveu-o como um lugar onde uma alma atordoada habita um esplendido palácio, leva uma vida luxuosa e até se considera uma das pessoas eleitas. Aos poucos, no entanto, os esplendores evaporam e a atordoada criatura dá-se conta de que está confinada em um local miserável e cercada de sujeira. Sartre deu outra configuração (cênica) à expressão.
Seja como for, estamos perante metáforas. Infernos psíquicos e infernos corrosivos das condições individuais de existência, geralmente mais tormentosos ainda em decorrência da falta de percepção sobre o que representa a temporalidade. O grupo musical Titãs canta: “O problema não é meu/O paraíso é para todos/O problema não sou eu/O inferno são os outros, o inferno são os outros”.
A maior parte de nossa vida – escreveu Sêneca em Cartas a Lucílio – passa enquanto estamos a fazer coisas desagradáveis, outra parte enquanto não estamos a fazer nada, e tudo isso enquanto estamos a fazer o que não deveria ser feito. Estamos equivocados, diz a lição senequiana, quando pensamos que a morte é coisa do futuro, pois, do “tempo de vida vivido”, a morte já se apossou de nacos seus: os anos atrás de nós já não existem.
A relação entre tempo e finitude parece, de facto, ser indissociável. Por isso, ao invés de conceber o tempo de forma meramente quantitativa, convém pensá-lo como uma qualidade, como a luminescência da noite sobre as árvores no preciso momento em que a lua nascente toca o topo das copas, tal qual a imaginação de Alan Lightman a respeito dos sonhos de Einstein. Ou ainda como o alumiar mostra-e-esconde do inquieto percurso dos vaga-lumes. Num mundo onde o tempo é uma qualidade, acontecimentos não são pontos fixos em determinados períodos, mas sim projeções que deambulam pelo espaço da imaginação materializadas por olhares, sentimentos e desejos.
*Ivonaldo Leite é professor de sociologia da educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
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