Censura judicial e autocensura

Imagem: Anastasia Bilik
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

Tudo muda de figura quando um poder externo à esfera jornalística, o Judiciário, chama para si a autoridade de responsabilizar um órgão de imprensa por afirmações de terceiros

Todo governo, por melhor que seja, precisa ter no seu encalço uma imprensa livre, ainda que falível. Mesmo que o governante cultive as melhores intenções do mundo durante as 24 horas do dia, mesmo que ele nunca esbarre num conflito de interesses, mesmo que não tenha parentes incômodos, mesmo que esteja a um passo da santidade, a atuação de redações independentes e críticas, mesmo que elas tropecem e errem, vai lhe fazer bem – porque vai fazer bem à sociedade.

É o óbvio, não é? Para que uma democracia trafegue em trilhos seguros, o poder do Estado há de ser fiscalizado pela sociedade e, sem repórteres profissionais, nenhuma sociedade fiscaliza poder nenhum. Estamos falando aqui de um princípio elementar, básico, de evidência clamorosa, um princípio sobre o qual não deveria haver dúvidas. Não obstante, esse ponto singelo – e mortal – não foi ainda bem compreendido por uma considerável multidão de autoridades brasileiras.

Agora mesmo, no início do mês, o jornal O Estado de S. Paulo foi vítima de uma medida do Poder Judiciário que restringiu indevidamente sua liberdade. Segue aqui um resumo.

No dia 6 de dezembro, o juiz José Eulálio Figueiredo de Almeida, da 8ª Vara Cível do Maranhão, mandou suprimir duas reportagens do jornal O Estado de S. Paulo que relataram de modo preciso e objetivo a concessão, pelo Ministério das Comunicações, de retransmissoras de TV a uma emissora ligada ao grupo político do titular da pasta, Juscelino Filho. Na mesma sentença, o magistrado determinou que os repórteres se retratassem por ter publicado “informações falsas” e, em tom aconselhador, ainda asseverou: “ainda quando seja verdadeira a notícia, esta deve ser divulgada sem exageros, sem embustes, sem tendenciosidade e sem afronta”.

O sufoco durou pouco, ainda bem. Dois dias depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin restabeleceu a normalidade e devolveu a liberdade ao jornal O Estado de S. Paulo. Desta vez foi rápido, mas, no passado, houve episódios mais traumáticos e mais difíceis de desafazer. Em 2009, o jornal O Estado de S. Paulo foi proibido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) de publicar informações sobre a Operação Boi Barrica, uma investigação policial que envolvia o empresário Fernando Sarney, filho do ex-presidente José Sarney.

Naquela ocasião, a censura durou mais do que 48 horas: persistiu por 3.327 dias. Somente em 2018 o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, derrubou a medida. Na decisão restauradora de direitos, ele lembrou que, em julgamento de 2009, o STF garantiu “a plena liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”. Ricardo Lewandowski lembrou, mas, até hoje, muitas autoridades esquecem.

Às vezes, as autoridades descuidam da liberdade. Em decisão recente, com nove votos a favor e apenas dois contrários, os ministros estabeleceram que as empresas jornalísticas podem ser chamadas a responder por declarações de entrevistados, num entendimento que não coaduna com a melhor tradição brasileira. Segundo o jurista Ronaldo Porto Macedo Junior, em artigo no jornal O Globo, em primeiro de dezembro, foi uma decisão “preocupante e equivocada”.

Deve-se reconhecer, como fizeram alguns grandes diários brasileiros, que o jornalismo profissional tem o dever de aferir, em seus procedimentos rotineiros, se as declarações das pessoas que entrevista não atentam contra a verdade. Mas essa postura faz parte da deontologia da profissão, ou seja, decorre não de uma imposição estatal, mas de um compromisso autônomo, voluntário, por meio do qual a redação independente assegura a qualidade do que leva ao público e protege a sua própria credibilidade. As boas redações agem assim por vontade própria, porque seguem cânones éticos rigorosos.

Tudo muda de figura quando um poder externo à esfera jornalística, o Judiciário, chama para si a autoridade de responsabilizar um órgão de imprensa por afirmações de terceiros. O risco que se abre é imenso. Como os pequenos veículos sobreviverão à avalanche de processos que certamente virão? O que fazer, por exemplo, se, numa emissora de rádio, ao vivo, um entrevistado enunciar uma inverdade? A empresa terá de pagar por isso? Há ainda perguntas sem respostas.

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo no dia 3 de dezembro, a advogada Taís Gasparian, uma das mais respeitadas especialistas em liberdade de imprensa no Brasil, chamou de “labiríntica” a tese abraçada pelo STF nesse caso. O adjetivo procede. A partir de agora, por sendas sinuosas, traiçoeiras e um tanto imprevisíveis, virão por aí ações judiciais que, independentemente do resultado, infernizarão especialmente os pequenos órgãos de imprensa.

Por essas razões, ao dar alcance geral a um julgamento que deveria se restringir a uma causa isolada e atípica, o STF abriu uma porteira perigosa. Não se trata de censura, é verdade, mas essa medida poderá provocar uma onda de medo autocensura dentro das redações. A ver.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Werneck Vianna Luís Fernando Vitagliano Luciano Nascimento Antonino Infranca Leonardo Boff Ricardo Antunes Airton Paschoa Marjorie C. Marona Alexandre de Lima Castro Tranjan José Geraldo Couto José Costa Júnior Armando Boito Henry Burnett Sergio Amadeu da Silveira Benicio Viero Schmidt Luiz Bernardo Pericás Daniel Brazil João Feres Júnior João Sette Whitaker Ferreira Milton Pinheiro Walnice Nogueira Galvão Ricardo Fabbrini Daniel Afonso da Silva Alexandre Aragão de Albuquerque Vanderlei Tenório Salem Nasser Luiz Renato Martins João Carlos Salles José Raimundo Trindade Heraldo Campos Marcelo Módolo Tadeu Valadares Ronald León Núñez Ari Marcelo Solon André Márcio Neves Soares Elias Jabbour Marcos Silva Luiz Roberto Alves Gerson Almeida Tales Ab'Sáber Sandra Bitencourt Lucas Fiaschetti Estevez Afrânio Catani Bento Prado Jr. Matheus Silveira de Souza Igor Felippe Santos Samuel Kilsztajn Vladimir Safatle Luiz Marques Eugênio Bucci Leonardo Avritzer Luiz Carlos Bresser-Pereira Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Capel Narvai Érico Andrade Flávio Aguiar Jorge Luiz Souto Maior Chico Alencar Gilberto Maringoni Eliziário Andrade Mário Maestri Paulo Nogueira Batista Jr Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Fernandes Silveira Luiz Eduardo Soares Jorge Branco Berenice Bento Francisco de Oliveira Barros Júnior João Lanari Bo Chico Whitaker Alexandre Juliete Rosa Ricardo Abramovay Marcus Ianoni Antônio Sales Rios Neto Renato Dagnino Atilio A. Boron Michael Roberts João Carlos Loebens Fernando Nogueira da Costa Juarez Guimarães Eugênio Trivinho Maria Rita Kehl Caio Bugiato Rodrigo de Faria André Singer Henri Acselrad Bruno Machado Andrew Korybko Claudio Katz Carla Teixeira Celso Frederico Marcos Aurélio da Silva José Machado Moita Neto Manuel Domingos Neto Annateresa Fabris Ricardo Musse Dennis Oliveira Lorenzo Vitral Gabriel Cohn Valerio Arcary Yuri Martins-Fontes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Gilberto Lopes Celso Favaretto Dênis de Moraes Michael Löwy Thomas Piketty Francisco Fernandes Ladeira Fábio Konder Comparato Carlos Tautz Marcelo Guimarães Lima Paulo Sérgio Pinheiro Ronald Rocha Eleutério F. S. Prado Leonardo Sacramento João Adolfo Hansen Liszt Vieira Mariarosaria Fabris Marilia Pacheco Fiorillo Manchetômetro Daniel Costa Tarso Genro Fernão Pessoa Ramos José Luís Fiori Andrés del Río Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Dirceu Francisco Pereira de Farias João Paulo Ayub Fonseca Lincoln Secco Paulo Martins Slavoj Žižek Flávio R. Kothe Leda Maria Paulani Jean Pierre Chauvin Marilena Chauí Vinício Carrilho Martinez Luis Felipe Miguel Ronaldo Tadeu de Souza Eduardo Borges Julian Rodrigues Rubens Pinto Lyra Antonio Martins Kátia Gerab Baggio Alysson Leandro Mascaro Remy José Fontana Michel Goulart da Silva Anselm Jappe Denilson Cordeiro Osvaldo Coggiola Priscila Figueiredo Rafael R. Ioris Jean Marc Von Der Weid Eleonora Albano Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Otaviano Helene José Micaelson Lacerda Morais Boaventura de Sousa Santos Bernardo Ricupero Ladislau Dowbor

NOVAS PUBLICAÇÕES