Transição ecológica em um mundo finito

Imagem: Eduardo Berliner
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TOMÁS TOGNI TARQUINIO*

Ainda permanece a ilusão que será possível desacoplar, ou dissociar, o crescimento da riqueza dos danos causados aos quatro componentes da ecosfera

A Terra é finita. Com apenas treze mil quilômetros de diâmetro, distância que separa Paris de Montevideo, o planeta restará do mesmo tamanho por bilhões de anos. Um insignificante corpo celeste vagando no espaço, porém excepcional: único que abriga vida, ao nosso conhecimento. No entanto, nós o concebemos como ilimitado e cuja função é nos servir.

No registro sagrado, a visão é antiga; está presente nos primeiros versículos do Genesis. No registro profano, a visão utilitarista da natureza se afirmou bem mais tarde. No século XVII, René Descartes a sintetizou colocando os humanos no pedestal como “maître et possesseur de la nature”. No século XX, Joseph Schumpeter atualizou o conceito ao afirmar que a destruição criativa é o motor do capitalismo. Nas entrelinhas, o economista austríaco disse que a modernidade fóssil somente prospera em um mundo infinito. Hoje, essas ideias são cada vez mais contestadas. Nós, humanos, redescobrimos que somos natureza, que estamos na natureza e que a natureza está em nós.

A sociedade termo industrial é completamente tributária das energias fósseis. Ela se revelou incompatível com os limites impostos pela natureza. A abundância de energias fósseis e matérias primas moldou a forma como o modo de vida está organizado.  E alimenta a quimera de um planeta interminável. Esse modo de produção e consumo de bens e serviços afastou os seres humanos da natureza viva e inanimada. Agora coloca em risco as condições de habitabilidade dos humanos e não-humanos sobre a face da terra. O utilitarismo nos apartou da biologia – das condições que a vida prospera – em proveito da mecânica.

Face à desregulação ecológica em curso acelerado da atmosfera, hidrosfera, litosfera e biosfera (ecosfera), os defensores dessas concepções tentam preservar esse modo de produção e consumo de bens e serviços deletérios. O discurso predominante veiculado pelos meios de comunicação, igualmente presente na sociedade civil, pressupõe que a transição ecológica será realizada sem mudanças de paradigmas. Supõem que a superação do gigantesco desafio ocorrerá em um contexto de abundância de matérias primas e energia.

As limitações futuras são minimizadas e não condizem com os enormes obstáculos que a civilização termo industrial já enfrenta e enfrentará em escala mais aguda, no curto, médio e longo prazo. O suposto contexto de opulência de recursos naturais, associado ao otimismo no tocante a inovações tecnológicas, seriam componentes favoráveis à superação das dificuldades. A transição ecológica é observada como se fosse independente do enorme substrato material sobre o qual repousa a modernidade. A gigantesca escala de recursos naturais que será necessário mobilizar é insuficiente para garantir o mesmo padrão de vida. Situação agravada pelo exíguo período de tempo necessário para se construir uma sociedade post-carbono.

Trata-se de substituir a matriz energética mundial dependente em 85% de energias fósseis (carvão, petróleo, gás), e responsável por cerca de 80% das emissões de GEE, por energias de baixo carbono (eólica, solar e nuclear que só produzem eletricidade). E introduzir novas tecnologias que exigem extrair uma quantidade de metais equivalente ao que foi retirado da litosfera desde a invenção da metalurgia.

Mas a desregulação ecológica não diz respeito apenas da vertente climática. Vem acompanhada da perda de biodiversidade, esgotamento dos recursos naturais não renováveis e poluições diversas e variadas do meio natural (água, ar, solos…).

Ainda permanece a ilusão que será possível desacoplar, ou dissociar, o crescimento da riqueza (PIB) dos danos causados aos quatro componentes da ecosfera. Ou seja, promover o crescimento da riqueza e, ao mesmo tempo, reduzir do emprego de matérias primas e energia – em termos absolutos. O aumento dos bens e serviços sempre foi acompanhado do crescente emprego de matérias primas e energia. Hoje, por exemplo, o consumo de matérias primas é superior à taxa de crescimento da economia mundial. Quanto maior for a produção e consumo, mais matéria e energia serão empregadas no processo econômico e maior será a degradação do meio natural.

A narrativa prevalente segue difusa e não estruturada. Acreditam que os mesmos privilégios oferecidos pela modernidade fóssil serão assegurados pela transição ecológica: crescimento econômico, poder de compra, mobilidade, alimentação, habitação, saúde, educação, aposentadoria, seguridade social, lazer… No entanto, a prosperidade proporcionada pela sociedade termo industrial beneficia de maneira extremamente desigual em torno de 30% da população mundial. Por exemplo, o 1% mais rico do planeta é responsável por 15% das emissões de CO2; os 10% mais ricos por 52%; enquanto que os 50% mais pobres por apenas 8%. Se os 10% mais ricos já causam esse nível de degradação da ecosfera, fica evidente que é impossível estender os benefícios desse modo de vida à parte da humanidade excluída do banquete.

No entanto, o modo de produção e consumo desenfreado de bens e serviços segue sendo visto como perene e não como transitório. Trata-se de um parêntesis de abundancia iniciado com a revolução industrial e que agora encontra limites à sua expansão. Essas restrições são impostas por leis físicas químicas e biológicas irrevogáveis e não por leis econômicas.

Atenuar e adaptar a humanidade aos efeitos nefastos causados pela desregulação ecológica requer encarar o futuro com realismo. Ainda não há clareza como o futuro será, tampouco como construí-lo. As soluções serão provavelmente diversificadas, dependendo de condições locais e regionais, com aproximação da esfera da produção e do consumo.

O futuro não será o prolongamento do modo de vida presente. A transição ecológica não se resume a mudança de infraestruturas, a substituição de energias fósseis por energias de baixo carbono. Trata-se transformação cultural que requer abandonar o modo de vida nascido com civilização termo industrial.

Ainda há tempo para construir uma sociedade pautada pela sobriedade na produção e consumo, pela moderação voluntária e compartilhada. A superação implica em saber o que produzir, para que produzir, para quem produzir e, sobretudo, como produzir, dando prioridade ao necessário e essencial, abandonando o supérfluo.

*Tomás Togni Tarquinio, antropólogo, é pós-graduado em Prospectiva Ambiental pela EHESS (França).

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES