A manipulação da verdade

James Boswell, O cinema, 1939
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

Comentários a partir do livro de Patrick Charaudeau

Em A manipulação da verdade, Patrick Charaudeau afirma que “a pós-verdade produz a contraverdade”. Nos Estados Unidos, nas eleições de 2016, questionada sobre os números inflados da “multidão” na posse do candidato eleito, a justificativa amoral da assessora trumpista é que preferia “fatos alternativos”. Técnicas fotográficas e audiovisuais apagam “verdades factuais” e justapõem desinformações. Para o professor da Universidade Paris XIII, a contraverdade alimenta a desfaçatez. O ciberespaço potencializa polêmicas que têm menos a ver com a mentira e, muito mais, com o “tudo é dizível”. Falar merda deixou de ser problema.

Pós-verdade

Esse é um tempo de “palavras-maná, cujo significado impactante, multiforme e fugidio dá a ilusão de que com uma certa palavra se pode responder a qualquer coisa”, lê-se em Roland Barthes por Roland Barthes. Na atualidade, segundo o Dictionary Oxford, o mote mágico é post-truth. A pós-verdade insere-se no leque dapós-modernidade, pós-marxismo, pós-liberalismo, pós-nacionalismo, pós-colonialismo, pós-democracia, pós-revolução. A inflação de pós-conceitos não implica maior cuidado ou precisão no uso da linguagem. Implica antes o caos.

A partícula “pós” alude o momento seguinte, em pós-parto. Em pós-industrial, uma ruptura qualitativa com a perda de relevância do operariado fabril na história. Em pós-moderno, um pretenso fim das ideologias e o início das tecnologias digitais nas relações sociais. Na pós-verdade, os apelos às crenças e às emoções ganham proeminência. Fatos viram “interpretação” (Nietzsche) ou “narrativa” (Lyotard) e, no léxico homofóbico, “mimimi” (o Coisa). Para a nova velha direita, a lei que importa é a de um antigo axioma maquiaveliano – “governar é fazer crer”. Palavras viram elásticos puxados para lá e para cá por absoluta conveniência, até arrebentar.

Hannah Arendt, em As origens do totalitarismo, salienta as dissonâncias cognitivas com o real sob o prisma da concepção de “ideologia” enquanto “falsa consciência”. O pensamento ideológico seria independente e descolado da realidade; consideraria o factual um artefato; não distinguiria entre a verdade e a falsidade. Puxa-se à vontade, de acordo com o freguês. Com sorte, asnos se convertem em alternativas de poder aos domingos, na TV. Meios de comunicação inventaram e monetizaram a “democracia de opinião”, agora reproduzida nas redes sociais como o jogo onde “tudo é possível” e “tudo é divino e maravilhoso”. Se non è vero, è ben trovato.

O sinaleiro

A pasteurização das mentes pela mídia convencional foi a grande ameaça à democracia, no século XX: tornava os indivíduos incapazes de pensar com autonomia em face da linguagem vertical dos veículos. Sem a cidadania informada, o Estado de direito democrático não controla o exercício da governança. Sem transparência republicana, não há efetiva fiscalização dos governantes. A incerteza então confunde-se com uma impotência para mudar ou denunciar os tiranetes. Com o imaginário coletivo monitorado pela Big Tech, está pior no século XXI.

A agenda de mistificações desorienta a sociedade e obriga os adversários a gastarem uma enorme energia com os desmentidos. As redes estimulam a inimizade, acirram a competição, exploram o medo no ser humano. O ódio se espalha mais rápido que a solidariedade, cultiva o bullying, os insultos, organiza a violência para chacinas nas escolas. “Fazer justiça” (sic) tornou-se um ótimo produto para alavancar as vendas entre bilhões de usuários das telas de celulares com sede de sangue, cancelamento. Sobram vingadores na webesfera.

A barbárie atrás de uma tela de computador atrai mais do que a civilização. Por isso, a vitória de Lula da Silva teve caráter épico ao derrotar o neofascismo, o espírito do tempo e a máquina estatal. A resiliência dos trabalhadores que recebem salários inversamente proporcionais à sua memória esteve do lado certo: o futuro. Como no conto de Charles Dickens, O sinaleiro, a pequena burguesia precisa aprender com os pobres: “Ei, você aí embaixo!”

Bom negócio

O ódio é um bom negócio. Não à toa, a cinematografia hollywoodiana substitui romances por dramas tarantinos, que acabam em tortura e morte. Adéqua-se ao neoliberalismo, onde os fracos não têm vez e os fortes não têm empatia; circunstância que leva ambos a consumirem fórmulas de autoajuda à disposição no varejo. Com a iluminação em preto e branco, a truculência dispensa os roteiros e a plateia faz catarse durante as sessões. Cafajestes são atores com legendas em inglês; os ladrões de joias têm rachadinhas em português. Para compreender, há que situar os filmes no seu entorno, como indicado para as esculturas a céu aberto.

A “cultura do inimigo” está na alma das classes dominantes, o que inspira o eterno confronto do livre mercado com a democracia. A metáfora do mundo cindido em 1% de cidadãos versus 99% de subcidadãos, estampa a distopia neoliberal e resgata a verdade objetiva perdida nos labirintos da internet. A propósito, a imagem-mercadoria de Donald Trump na foto de presidiário é de soberba; Pablo Escobar sorri. Como será retratado no ato da prisão, o Coisa? Ao fundo, jazem Cancellier, Marielle, Bruno, Paulo Gustavo e outras 700 mil vítimas. As placas tectônicas estão se movendo. A custo, a democracia soube se defender; saberá conquistar?

Patrick Charaudeau não tem o otimismo dos ilusionistas. Percebe-se na dedicatória do livro: “Aos meus netos, presentes e futuros, para navegar entre ventos contrários”. Sem temer o ciclônico capital, o avô octogenário ensina as novas gerações a manejarem as velas do barco com a arma da crítica, para assumir a condição de sujeitos da história. A verdade produz a contramentira; a luta produz a consciência. O leme-leitura singra mares agitados.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Referência


Patrick Charaudeau. A manipulação da verdade: Do triunfo da negação às sombras da pós-verdade. São Paulo, Editora Contexto, 2022, 192 págs. [https://amzn.to/3SuvLTz]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES