Ricardo Nunes contra os direitos sexuais e reprodutivos

Imagem: Anh Nguyen
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por HELOÍSA BUARQUE DE ALMEIDA*

Prefeitura de S. Paulo interrompe o acesso ao aborto legal no Hospital de Vila Nova Cachoeirinha

O Hospital de Vila Nova Cachoeirinha, por decisão da Prefeitura Municipal de São Paulo, deixou de atender o serviço de aborto legal. Recentemente, esse tema voltou à baila com a decisão da justiça que demanda a reabertura do serviço, mas que continua sendo desrespeitada. Podemos notar a partir desse embate entre Prefeitura e Judiciário algo muito grave e revelador dos retrocessos que ainda estamos vivendo em termos de gênero e direitos.

Desde 2016, há uma série de retrocessos em direitos humanos no País promovidos por propostas políticas de direita em detrimento do respeito à legislação vigente e aos direitos sexuais e reprodutivos. O aborto legal refere-se à interrupção da gravidez que acontece de forma segura nos casos previstos em lei, ou seja, nos casos de gravidez resultante de estupro, risco de morte da pessoa que está gestando, ou mais recentemente nos casos de fetos anencefálicos.

Desde a década de 1940, está previsto em lei no Brasil o direito ao acesso a abortamento nos casos de gravidez resultante de estupro, mas o acesso a esses serviços demorou décadas a ser efetivamente implementado e é ainda muito difícil na maior parte do País – por vezes, uma pessoa que foi violada tem que viajar mais de mil quilômetros para conseguir atendimento. Alguns serviços ainda exigem que a vítima faça um Boletim de Ocorrência supostamente para comprovar o estupro, o que não é necessário para se ter acesso ao atendimento médico e à interrupção da gravidez.

Mais do que isso, no caso de menores de 14 anos o estupro é presumido – a lei considera que a vítima não tem como consentir e, portanto, qualquer gravidez é considerada legalmente como resultante de violação. O retrocesso representado pelo governo federal anterior tem reduzido e mesmo eliminado redes de atendimentos e serviços, e tem colocado pessoas que sofrem violência sexual em risco, de modo crescente. A atual prefeitura da cidade de São Paulo parece ter escolhido as piores políticas daquele grupo, encerrando serviços e equipamentos que trabalham a favor dos direitos das mulheres, meninas e minorias sexuais, assim como pessoas trans.

O acesso ao aborto legal é muito difícil ou inexistente na maior parte do País. São Paulo é uma das poucas cidades que oferecem o serviço, mas ainda assim em raros hospitais – para saber mais, consulte a página do Mapa do aborto legal ou o Panorama do aborto no Brasil. O Hospital e Maternidade de Vila Nova Cachoeirinha é muito importante e considerado uma maternidade de referência na zona norte da cidade – e inclusive atende pessoas de muitos lugares do País, não apenas de São Paulo, como tantos outros centros médicos de referência nesta cidade, públicos ou privados. Era também o único local em São Paulo que fazia interrupção de gravidez em estágios mais avançados, ou seja, acima de 12 semanas.

Interrupções em gestações um pouco mais avançadas geram polêmicas, mas trata-se de um serviço fundamental, pois apenas deste modo pode-se atender inclusive os casos de estupro contra crianças e adolescentes menores de 14 anos que, muitas vezes, demoram a descobrir a gravidez. É preciso lembrar que esse é o tipo de violência sexual mais comum – ela atinge muito mais as crianças e adolescentes do que pessoas adultas, e podem ser estupros perpetrados dentro de casa e de modo repetido, normalmente por pessoas conhecidas ou parentes da vítima.

No boletim Violência contra meninas e mulheres no 1º semestre de 2023, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstra o aumento das denúncias de estupro, sendo que 74,6% destas referiam-se a vítimas menores de 14 anos. Ademais, levar a gravidez a termo em meninas de pouca idade é muito perigoso e arriscado para suas vidas e saúde, e a interrupção da gestação pode ser feita de forma segura.

Direitos sexuais e reprodutivos são desdobramentos dos direitos humanos. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, algumas noções de direitos se materializaram em acordos e convenções internacionais. No caso dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, dois eventos marcam e consolidam a ideia: a Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento, em 1994, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, em 1995. Essas convenções estendem a ideia de respeito, livre-arbítrio e bem-estar para as esferas da intimidade e da reprodução.

Direitos reprodutivos referem-se ao acesso à informação e a métodos contraceptivos, permitindo a autonomia da pessoa que gesta sobre a decisão de ter ou não filhos, com assistência à saúde em todo o período reprodutivo. Os direitos sexuais referem-se a uma vida sexual sem constrangimento nem agressões, e afirmam que cada pessoa tem direito a escolher com quem terá relações sexuais, inclusive o direito de mulheres e meninas não se submeterem a relações forçadas, assim como o direito de parcerias homossexuais, quando o sexo é consentido por ambas as partes.

Quando a Prefeitura interrompe um serviço tão importante, ela inviabiliza o acesso a direitos. As mulheres que buscam os serviços estão sendo atacadas e humilhadas, segundo a coluna de Mônica Bergamo no jornal Folha de S. Paulo. Mais ainda, outras violações estão sendo promovidas: a Prefeitura copiou os prontuários de pacientes deste hospital do ano de 2023 para supostamente investigar o atendimento naquele local. Mas isso foi feito sem a devida autorização legal e nem consentimento das pacientes, e significa ainda uma outra violência, agora direcionada àquelas pacientes que conseguiram realizar o procedimento no ano passado.

Resultam dessa decisão de suspender os atendimentos no Vila Nova Cachoeirinha situações como as de crianças e pessoas jovens violadas de diversas partes do País que buscam esse local e não têm mais acesso ao procedimento seguro. Muitas vezes, terão que perambular por outros hospitais até encontrar um atendimento, quando pode ser tarde demais. Com esta atitude, a Prefeitura fere a autonomia da pessoa que gesta sobre a decisão de não ter filhos, ou seja, fere um direito reprodutivo.[1]

*Heloísa Buarque de Almeida é antropóloga e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autora, entre outros livros, de Diferenças, igualdade (Berlendis). [https://amzn.to/3Su8zDz]

Publicado originalmente no Jornal da USP.

Nota


[1] Agradeço à consultoria de Shislene de Oliveira-Macedo para este texto.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O negacionismo ambiental e a inundação de Porto Alegreporto alegre aeroporto alagado 14/05/2024 Por CARLOS ATÍLIO TODESCHINI: Porto Alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil. É considerado um “minissistema holandês”. Por que esse sistema falhou em sua função de evitar que a cidade fosse alagada?
  • A mão de OzaJoao_Carlos_Salles 14/05/2024 Por JOÃO CARLOS SALLES: O dever do Estado brasileiro e a universidade contratada
  • A universidade operacionalMarilena Chauí 2 13/05/2024 Por MARILENA CHAUI: A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo
  • Pensar após GazaVladimir Safatle 08/05/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Desumanização, trauma e a filosofia como freio de emergência
  • Por que estamos em greve nas Universidades federais?Gatinho 09/05/2024 Por GRAÇA DRUCK & LUIZ FILGUEIRAS: A greve também busca disputar os fundos públicos com o capital financeiro e forçar o governo a se desvencilhar da tutela desse mesmo capital e de grupos políticos de direita
  • Dias perfeitos – o peso do ordináriodias perfeitos 2 07/05/2024 Por ALEX ROSA COSTA: “Dias perfeitos” expõe não as fissuras de pequenas belezas cotidianas, mas a rotina como forma de proteção contra o inesperado, o encontro, o outro, a reflexão
  • Suicídios de policiais em São Paulosombra 9 12/05/2024 Por THIAGO BLOSS DE ARAÚJO: A indiferença de Tarcísio de Freitas com as dezenas de mortes resultantes das operações policiais se amplia para uma indiferença com as mortes dos próprios policiais por suicídio
  • Edward W. Said – crítico literário e intelectual públicowalnice 10/05/2024 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Os trabalhos de Edward W. Said alçam-no à posição de um dos mais influentes pensadores das implicações políticas da cultura em nosso tempo
  • A Universidade funcionalistachave 11/05/2024 Por JEAN PIERRE CHAUVIN: O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios
  • Um ensaio sobre a libertaçãoWolfang leo maar 11/05/2024 Por WOLFGANG LEO MAAR: Prefácio à edição brasileira do livro recém-editado de Herbert Marcuse

AUTORES

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES