Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOY*
Comentário sobre o romance de Edgard Telles Ribeiro
“A melhor maneira de lidar com o absurdo é transformá-lo em ficção”. Essa frase, de Edgard Telles Ribeiro, em forma de postulado, é o mote que anima Uma mulher transparente, romance de certo modo histórico, mas que é forte demais para ser apenas histórico, e que é histórico demais para ser meramente um romance. É um livro rico de observações psicológicas instigantes, que revelam um autor que diz muito em poucas palavras. Creio que essa simbologia do qualitativo, e não do quantitativo, é o que mais impressiona o leitor de Edgard Telles Ribeiro.
O absurdo vivido por uma juventude violentada e perdida, a quem quis se dar voz em comissões de verdade, transformado em ficção, ainda permanece absurdo, porque há absurdos que não se reconstroem de outra forma. A cena da tortura, na qual o autor descreve a personagem em um caixão, resume uma morte cruel, porque substancialmente ocorrida na alma, ainda que não projetada no corpo, caso a dicotomia platônica possa fazer algum sentido em nossa cultura. A página da tortura é uma página assustadora. É emocionalmente claustrofóbica.
Uma mulher transparente é um livro belíssimo que fixa dilemas de três gerações; isto é, se posso trocar o quarto de século por quatro lustros, como forma de contagem. Se possível a analogia, o livro sugere um ábaco inovador. O tempo histórico é mediado pelo intelectual com a pistola na cintura, um dos mistérios do livro, pelo corpulento professor de história, que se casou com a aluna vinte anos mais nova e pelo tempo da mulher transparente, que dá título ao livro, e que está em todas as páginas e ao mesmo tempo em página alguma. Uma personagem vaporosa, cuja olência o autor sugere em duas passagens. O leitor imagina que se a personagem-título é uma mulher discreta e ao mesmo tempo deliciosamente perfumada.
Um fato definido e impreciso, num fim de tarde de maio de 1962, é o ponto de partida para um enigma, que liga três mulheres substancialmente distintas, que se unem, e se completam, no desate de suas vidas complicadas. 1962 (faltavam dois anos para o golpe), 1982 (passaram-se dezoito anos do golpe) e 2002 (quando os tempos de ressentimento supostamente teriam chegado ao fim, e quando equivocadamente imaginávamos que não haveria mais golpes) são as balizas históricas do plano narrativo.
Cada uma dessas datas assinala pontos de inflexão das personagens centrais, presas a seus respectivos tempos, até porque, na narrativa o poder de escolhas é do narrador. Nesse passo, o livro traz um pouco de teoria literária, com digressões inteligentíssimas sobre o poder dos autores, que se qualifica pela cáustica lembrança de que “(…) brincar de Deus tem seus limites (…) cedo ou tarde todos os livros acabam no sebo”.
Uma mulher transparente é um romance que enfrenta cicatrizes da ditadura (físicas e emocionais), e que trata de estados psicológicos de sofrimento permanente, de dúvidas (machadianas, há indícios esparsos de adultério), de coincidências, de segredos, da Casa do Barão (na antiga Rua Larga) e, nesse último caso, o leitor colhe as reminiscências do autor, que atuou como diplomata de carreira.
O Correio da Manhã e Paulo Francis fazem uma ponta na narrativa. Tem até um labrador, Astor, que a exemplo do Cão das Lágrimas, de Saramago, não pode faltar em uma história carregada de humanidade.
O narrador (como se chama mesmo?) é perseguido pelo inusitado acidente da moça do vestido vermelho (cujo nome se revela quase no fim do livro). É também acuado por outro incidente, marcado por aquela que divulgava de sua família o que o marido tentava esconder da família dele.
O narrador é refém do “corpo na calçada [que] o transportara para mundos distantes”. Pode ser nada simbólica a diferença entre cair no mar e cair na calçada, especialmente quando as quedas resultam na irreversibilidade da experiência humana. De fato, lê-se no início do capítulo 3, “nada como a morte para nos levar a celebrar a vida…”.
O narrador é atormentado por uma ideia fixa, que conduz o enredo, nas ruas de um Rio de Janeiro que perdia a majestade. Era a capital da Guanabara, já não era mais a Capital Federal. Uma personagem estudara na antiga UEG (“que ficava no Catete e era de graça”). Um certo saudosismo ronda a narrativa; os trilhos do bonde eram cobertos pelo asfalto (“bondes… conseguiram sobreviver até o final dos anos sessenta (…) depois foram vendidos como ferro-velho para sucata”). As máquinas de escrever do Itamaraty eram pesadas, precisavam de uma carriola quando iam para as oficinas, faziam barulho. As máquinas novas, elétricas, estavam em Brasília…
Há um jantar num certo restaurante Alvaro’s. Será o clássico da Ataulfo de Paiva, 500, que ainda deveria ter a porta de madeira e as paredes escuras? Só pode ser. No caminho do jantar que define o livro, Gilda e o narrador observavam as lojas do Leblon, “que desfilavam a sua direita pela Ataulfo de Paiva”.
A descrição de ambientes urbanos reais comprova que as cidades mudam e que as memórias ficam. Imagino que, em alguns anos, o leitor precisará de um mapa do Rio da época da narrativa, exatamente com hoje lemos Quincas Borba com um prévio detalhamento topográfico do Rio de Janeiro do tempo de Rubião, de Palha, de Sofia, de Camacho e de D. Tonica: o largo da Carioca (que nenhum deles reconheceria), as ruas do Rosário, do Hospício, do Ouvidor, e tantas outras.
Machado de Assis também não as reconheceria, exatamente como Sérgio Rodrigues fixou em outro impactante romance brasileiro contemporâneo, que é A vida futura. Nesse sentido, Uma mulher transparente, além disso é um romance de cidade. Tem (a propósito) cena na calçada da Siqueira Campos, a par de uma aliciante perspectiva do autor, no sentido de que as Ruas de Lisboa têm nomes evocativos (Salitre, Prata, Arsenal, Moinho de Vento) enquanto nossas ruas têm nomes de quem não sabemos de quem se trata, como a rua Cupertino Durão, no Leblon. Descobri que foi um engenheiro civil, secretário de obras e viação, no tempo do Prefeito Carlos Sampaio, cujo mandato ocorreu de 1920 a 1922. Está na placa azul.
Uma mulher transparente mesmeriza o leitor com momentos de chuva fina e de névoa rala. Parece que a intimidade dos personagens esfria o “calor próprio da vida”, na indefinível significação de Astrojildo Pereira. Essa tensão, entre o calor externo da rua e a frieza interna das personagens, que o autor inverte nos momentos mais fortes do livro, é que encanta e que, na leitura da última frase, faz o leitor sentir-se mais elevado, milímetros antes do ponto final.
*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).Foi Consultor-Geral da União.
Referência
Edgard Telles Ribeiro. Uma mulher transparente. São Paulo, Todavia, 2018, 128 págs. [https://amzn.to/3SZVBie]
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