Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o livro de Marcílio Godoi
A capa e o título insólito flertam com o surrealismo, à primeira vista. A leitura dos 43 contos curtos do volume, porém, vai expandir as possibilidades estéticas e formais, não se enquadrando em um gênero específico. Há textos mais densos, que colocam o leitor em frente aos dilemas e angústias do ser humano, e outros mais rarefeitos, que requerem a sensibilidade de quem sabe apreciar a beleza das nuvens.
Assim é o livro Como escovar os dentes num incêndio, de Marcílio Godoi. Cada conto é o nome de um ou uma personagem (Carmen, Renata, Augusto, Wesley, etc.), que podem ter raízes concretas e atitudes abstratas, ou vice versa. Uma mulher que tem um pé maior que o outro. Um homem que escreve epitáfios gongóricos. Um outro que perde coisas. A mulher atravessada por setas. A jovem que leva as cinzas do pai pra passear de bicicleta.
Algumas referências a personagens reais ganham relevo, na paisagem fantasmagórica. O conto Getúlio remete a Getúlio Vargas, mas tem um narrador surpreendente. O craque da sinuca Carne Frita é personagem principal de um causo. O narrador cujo pai vai se transformando em árvore remete a Guimarães Rosa, certamente. É provável que outros personagens, que para nós parecem ser produto de pura ficção, façam parte da galeria pessoal do autor. Não importa.
Estamos diante de um mosaico de retratos, ou esboços de retratos, costurados pela linguagem refinada de Marcílio Godoi. Mestre em crítica literária e doutor em letras, o polígrafo mineiro já publicou romances (Etelvina), literatura infanto-juvenil e poesia. Jamais utiliza a brutalidade das ações ou a crueza descritiva, tão ao gosto de alguns ficcionistas contemporâneos, para compor suas narrativas.
Prefere a linguagem poética, pontilhada de metonímias e imagens inusitadas, e se delicia com palavras inusuais e pitadas de humor extravagante. Bebe na fonte de expressões populares, distorce chavões e inventa significados. Há algo de cortazariano impregnando a leitura.
Ao final, não temos certeza se lemos uma coletânea de crônicas poéticas, um conjunto de esquetes biográficos ou especulações sobre os caminhos tortuosos da loucura que, em maior ou menor grau, afeta toda a humanidade. A variedade de ritmos, as mudanças de tom e as alternâncias de linguagem contribuem para o resultado polifônico do volume. E o mais surpreendente é que esta indeterminação estilística parece ser algo muito planejado e bem executado, incluindo a capa, que também é criação do autor. Coisa de quem domina o ofício narrativo e sabe onde quer chegar.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência
Marcílio Godoi. Como escovar os dentes num incêndio. São Paulo, Patuá, 2023, 218 págs. [https://amzn.to/49s9nQq]
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