A teologia do domínio

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Por MAYRA GOULART & PAULO GRACINO*

Análise dos discursos de 25 de fevereiro e as fronteiras do que definimos pelo termo bolsonarismo

O objetivo deste texto é analisar os discursos proferidos durante a multitudinária manifestação de 25 de fevereiro, convocada por Jair Bolsonaro. No contexto de uma escalada de investigações levadas a cabo pela Polícia Federal (PF) em uma operação denominada Tempus Veritatis deflagrada a partir de indícios de que o então presidente participou diretamente do planejamento de um golpe de Estado para impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.

O planejamento foi orquestrado juntamente com militares de alta patente e resumido em uma minuta de um decreto. Além da própria minuta, entre os indícios recolhidos pela PF está a delação do ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente coronel Mauro Cid, e um vídeo de uma reunião entre o presidente, oficiais de alta patente das Forças Armadas e ex-ministros na qual se discutia abertamente o plano golpista.

O decreto previa a prisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes e do presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco. Durante a operação, foi encontrada na sede do partido do Partido Liberal (PL), ao qual Jair Bolsonaro é filiado, um segundo documento que continha a decretação do estado de sítio e, em seguida, a instituição de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). No texto, estas medidas são apresentadas como necessárias para a “restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil”.

Segundo o Monitor do Debate Político, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, a manifestação do último domingo reuniu em torno de 185 mil pessoas, indicando a força social e capacidade de mobilização do ex-presidente. Entre as lideranças presentes estão quatro governadores, deputados, senadores e vereadores de diferentes partidos, inclusive alguns da base do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Algumas ausências foram sentidas, como a do governador do Estado do Rio de Janeiro e dois dos filhos do ex-presidente.

Justificadas pela possibilidade de escalonamento das investigações judiciais, tais ausências também refletem um processo de desidratação do bolsonarismo entre as elites políticas, que remonta a sua derrocada eleitoral. Sem a perspectiva de mandato, o ex-presidente viu sua ascendência sobre os políticos diminuir consideravelmente. A preponderância dos interesses fisiológicos sobre os ideológicos aumenta a força de atração daqueles que estão no Executivo nacional, sobre boa parte dos setores políticos.

A manifestação acabou por cumprir seu papel para o campo bolsonarista. Arregimentou um público significativo que se aglomerou em uma das principais avenidas do país e, ainda que não tenha atingido níveis de outrora, foi um relativo sucesso, na medida em que deu ao bolsonarismo a tão alardeada foto: “Bolsonaro apoiado pelo povo”. Povo este que poderia parar o país em caso de prisão de seu líder.

Ela também foi útil para delinear de forma mais nítida as fronteiras do que definimos pelo termo bolsonarismo, utilizado para designar um movimento social e político deflagrado a partir dos discursos e da figura de Jair Bolsonaro, enquanto ator capaz de unificar grupos distintos porém articulados por alguns símbolos: ordem, família e deus. Tais símbolos compõem um movimento político social que se afirma como de direita, utilizando como elemento aglutinador o antagonismo com relação à esquerda que, se em seu componente social tem a crítica à ideologia de gênero e à ideia de direitos humanos, enquanto princípios norteadores de políticas públicas de segurança e educação, em seu componente político-econômico, se caracteriza por políticas de inclusão e mobilidade social.

Daí o componente elitista desse movimento, que atinge segmentos da população que de alguma forma se sentem ressentidos por estes processos de inclusão e mobilidade, como já defendemos em outras oportunidades (Gracino Junior, Goulart e Frias, 2021).

O ato foi marcado por discursos de importantes lideranças políticas e sociais do bolsonarismo como a ex-primeira dama Michelle Bolsonaro, o pastor e influenciador digital Silas Malafaia e o governador de São Paulo que foi ministro da Infraestrutura, durante o governo Jair Bolsonaro. As falas nos auxiliam a compreender essa aparente contradição de um movimento popular, uma vez que capaz de atrair milhares de pessoas inclusive de segmentos da classe trabalhadora, com feições antipopulares, que ecoam o medo das elites acerca da perda de seus privilégios econômicos e simbólicos em face de processos de ampliação da capacidade de consumo das classes populares, mas, também de seus acessos à educação e à cultura.

Neste texto, além da fala do próprio ex-presidente, analisaremos os discursos destas lideranças por compreendemos que elas apresentam orientações e argumentos dirigidas aos seus apoiadores para que sigam em defesa do ex-presidente, em um contexto no qual ele se encontra acuado jurídica e politicamente. Essas diretrizes recebem matizes diferentes para que atinjam bases sociais distintas. O objetivo é manter a coesão e capacidade de engajamento do movimento, a despeito de importantes defecções que se refletem na gradual elevação dos índices de aprovação do governo Lula.

Esta dinâmica resulta em parte da melhora no ambiente econômico, na redução da taxa de desemprego e na elevação do consumo, sobretudo dos segmentos da classe trabalhadora disputados pelo bolsonarismo. Em particular, cabe destacar o grupo formado por aqueles que recebem entre dois e cinco salários mínimos. Outrora chamados de nova classe média ou novo precariado, este conjunto é composto por segmentos heterogêneos entre si, mas que, de modo geral acabam sendo excluídos da maior parte das políticas de transferência de renda dirigidas aos mais pobres, sem, contudo, ser capaz de acessar serviços privados de qualidade que seguem sendo privilégio das classes médias e altas. Daí o ressentimento destes segmentos que acabam se percebendo ameaçados por discursos e programas governamentais de inclusão econômica, mas, também simbólica, voltados às minorias de raça e gênero.

O exército de deus

As lideranças do campo evangélico, notadamente Michelle Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia, discursaram buscando atingir os diferentes segmentos que compõem este grupo, acionando, contudo, uma gramática mais ampla, capaz de aglutinar outros religiosos que não comungam da fé evangélica, mas agem segundo sua gramática política.

Michelle, presidente do PL Mulher, dirigiu-se especificamente às mulheres e mães, mobilizando um léxico nativo cristão e chamando atenção para as dimensões do cuidado e da família. Falou em livrar crianças da morte, em levar alimento aos necessitados, em proteger as viúvas. Sua fala foi uma oração que traduz para a linguagem religiosa uma exortação ao povo brasileiro para que saia em defesa de seu marido. Ao mesmo tempo, Michelle aciona em seu texto elementos muito comuns à Teologia do Domínio: “Quem é este rei da glória? É o Senhor forte e poderoso. O senhor poderoso na guerra…Povo, povo brasileiro. Respondam. Quem é este rei da Glória? É o senhor dos exércitos.”

Neste ponto é necessária uma breve digressão. A Teologia do Domínio, vertente teológica que teve origem nos EUA, prega entre outras coisas, a submissão das mais diversas esferas sociais à lei Bíblica. Embora sua recepção no Brasil conte com muitos atravessamentos, existe um núcleo duro que podemos identificar, sendo umas das doutrinas mais difundidas aqui a do movimento 7M, ou o Mandato dos sete montes, que afirma que existem sete áreas da sociedade que são cruciais para a influência dos evangélicos e condição para segunda vinda de Cristo: família, religião, educação, mídia, entretenimento, negócios e governo. Esta interpretação teológica oriunda da década de 1970, com raízes no século XIX, veio ganhando força nos últimos anos, especialmente após a coletânea de livros Left Behind (Deixados Para Trás) de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins.

Lançada entre 1995 e 2000, a coletânea vendeu mais de 70 milhões de exemplares e ganhou uma série de cinco filmes, inclusive um estrelado por Nicolas Cage , intitulado Left Behind, e a publicação do livro Invading Babylon: The 7 Mountain Mandate (2013), de Wallnau e Bill Johnson, este pastor da mega-igreja Bethel Church da Califórnia. Com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, o movimento atingiu seu auge, ao contar com Paula White, uma de suas principais figuras, como uma espécie de conselheira espiritual de Donald Trump.

Neste sentido, eles creem que Donald Trump desempenhará um papel central no Armagedom, quando os EUA cerrarão fileira ao lado ao lado de Israel na batalha contra o Islã. Neste ponto, há outra doutrina que se entrelaça a esta, a de que Israel seria o relógio do mundo, uma vez que deus prometeu levar o povo de volta à Terra Santa no final dos tempos, pois é em Jerusalém que aconteceria a grande batalha do Armagedom e o triunfo do “senhor dos exércitos”. Desta forma, o destino de Israel está atrelado ao cumprimento das profecias bíblicas sendo peça central na narrativa escatológica. Fato que explica, em parte, a adesão dos evangélicos a símbolos do judaísmo, como abordaremos abaixo.

Voltando ao evento, segundo pesquisa de survey realizada durante o ato, 29% dos presentes se declararam evangélicos. A extrema direita se vale de dicotomias claras, de fácil assimilação, tal proposta elimina o adversário do jogo político colocando em seu lugar a metáfora do amigo (todo mundo que está do meu lado) X inimigo (quem não está do meu lado e pode ser eliminado, inclusive fisicamente). Ainda que os evangélicos tenham sido minoria no ato pró-bolsonaro, é importante lembrar que é deste grupo, especialmente, de suas principais lideranças como Silas Malafaia – eminência parda do bolsonarismo – que emanam os principais termos e símbolos da gramática política da extrema direita Brasileira. Em resumo, são os evangélicos e suas lideranças, responsáveis pelas palavras-chave da narrativa do bem contra o mal do bolsonarismo, muito presentes no discurso de Michelle.

Tanto Malafaia quanto Michele apelam para um antagonismo absoluto, bem aos moldes da Teologia do Domínio, operando uma simplificação de uma realidade complexa, criando um “nós” (uma macroidentidade cristã-moral) em oposição a um “eles”, vistos como demiurgos da desestabilização social, depositários das mazelas e dos medos que afligem boa parte da sociedade em momentos de convulsão social. Nesse caso, o ativismo gay, a ditadura do STF, os “petralhas”, as “feminazis” ou, simplesmente, o “mal”, o “capeta”. Ainda é interessante observar como o discurso do pastor Silas Malafaia tem um duplo papel funcional, que, ao mesmo tempo que coloca o pastor em um lugar privilegiado na disputa pela arena religiosa brasileira, amplifica seu discurso para além da população evangélica.

Ao contrário de outros líderes do segmento evangélico pentecostal, que se concentram em soluções biográficas – como Edir Macedo, que dá ênfase a questões pecuniárias, ou Waldemiro, que se concentra na cura–, Silas surge com um produto bastante requisitado nos dias atuais, principalmente no pós-Lava Jato. O discurso moral proferido por Malafaia e replicado por um sem-número de outras lideranças evangélicas, apresenta-se como um forte amálgama capaz de conectar ansiedades e medos pessoais, tributários de um momento histórico marcado por fortes transformações e emergência de pluralidades sociais, ao discurso moral de fundo religioso e a uma narrativa de longa duração.

O mal não está longe, não vem de só de fora nem do estrangeiro, ao contrário, senta-se ao seu lado na escola, almoça com você no refeitório do trabalho, enfim, tal operação é capaz de transformar a indeterminação gerada pelo contínuo processo de complexificação social em possibilidades determinadas e determináveis, produzindo interpretações do mundo através de generalizações simbólicas.

É neste exato contexto que entram as bandeiras de Israel. Mais que pronunciarem a aliança do cristianismo evangélico brasileiro ao sionismo (um sionismo cristão que realmente povoa as mentes de muitos agrupamentos evangélicos no Brasil, como mostrado acima), no ato do dia 25, composto de maioria católica 43%, as bandeiras de Israel pairavam como símbolos da dicotomia simplificadora do amigo x inimigo. As bandeiras de Israel com o pentagrama no lugar da estrela de Davi denunciavam a pouca familiaridade com os temas.

Há alguns anos Silas Malafaia afirmou, em entrevista concedida à BBC, a respeito do que chamou “Ato profético pelo fim da corrupção e da crise econômica no Brasil”, que teria como objetivo “declarar que a corrupção vai acabar, que toda a bandalheira vai ser exposta”. Ao ser indagado pelo jornalista sobre a complexidade da promessa, Malafaia argumenta: “Quando Israel vivia períodos de crise, levantava um profeta que dizia que viriam tempos de paz e prosperidade. E aquilo tudo mudava. Então nós conhecemos essa prática”. É, nesse caldo de cultura, que a gramática evangélica e o bolsonarismo se atraem, para lembrar Goethe no livro Afinidades eletivas, falando pela boca do Capitão Otto: “Aquelas naturezas que, ao se encontrarem, se ligam de imediato, determinando-se mutuamente, chamam-nos afins” (Goethe, 2008 , p. 45).

Voltando à Michelle, muitos analistas têm criticado a fala de Michele como sendo muito emocional. Porém boa parte ação política tem um grande componente emocional, separar emoção de razão é um grande equívoco da modernidade e só dificulta a compreensão dos fenômenos sociais. A ideia de dividir ação política em racional e informada (imagino que seja a que a que os não bolsonaristas fazem) versus ação irracional, emotiva e histérica, atribuída ao bolsonarismo, não nos parece uma boa imagem para se enfrentar os desafios impostos pelo campo de extrema direita.

Não é pelo fato de se fazer política com emoção que se é contra a democracia, a emoção é parte importante da atividade humana. Quantos leitores do Lula não se emocionam em seus comícios, em vitórias ou na imagem criada na última posse na subida da rampa com os “excluídos agora incluídos”? E na primeira, em 2003? Quando os presentes tomaram posse do ambiente estéril da Esplanada dos Ministérios e, no mais completo êxtase, banhavam-se nos espelhos d’água, para o desespero dos jornalistas da Rede Globo que cobriam o evento.

Os evangélicos não são alienados e não são irracionais, eles têm método e estratégia, souberam conduzir o jogo político aqui e nos EUA, não importa se a narrativa que organizou a ação é de fundo bíblico. A ideia de que sejam alienados, fala mais sobre o lugar dos analistas, que teimam em separar a razão de emoção, especialmente, em termos de ação política, não percebendo que tal pensamento leva o campo democrático para um terreno pantanoso difícil de lutar, pois pode isolar parte importante do eleitorado lulista, ou seja, as classes populares.

Assim, embora os pobres estivessem sub representadas no ato (segundo pesquisas a faixa que ganha até dois mínimos, na qual se concentram a maioria dos evangélicos era de 10% do público), estas, como dissemos, têm sido o fiel da balança para o lado petista desde a primeira eleição de Lula em 2002. Somado a isso, é bom lembrar que as classes populares decidem seu voto de maneira até mais pragmática do que os outros agrupamentos sociais.

Não obstante, os pobres também se engajam na política pela emoção, tal qual a maioria da sociedade brasileira, mas o fazem, especialmente, pela necessidade, pela pragmática vitalista, ou instinto de sobrevivência de curto prazo, que é bem racional. Ao contrário de outros agrupamentos sociais que tomam parte nas grandes clivagens políticas nacionais, a população periférica decide seu voto perto do pleito, muitas vezes, permeadas por relações próximas de confiança, como as de um pastor.

Golpe é tanque na rua

O bolsonarismo não é apenas religião. Ele também é o produto da junção de diferentes segmentos da direita tradicional. Na manifestação da paulista, a personalidade escolhida para representar estes grupos, foi o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Embora seja do Republicano – partido originalmente criado pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – e tenha mencionado elementos religiosos em sua fala, seu discurso foi emblemático na mobilização de temas caros ao liberalismo político e mesmo à social-democracia – ideais que durante mais de duas décadas foi representada pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), cujo reduto é o estado por ele governado. Durante a manifestação, sua defesa do Estado de Direito, da liberdade de expressão e do pensamento, veio acompanhada da menção à segurança jurídica, enquanto componente necessário à atração de investimentos, indicando a interseção entre os componentes econômicos e políticos do liberalismo.

Os componentes sociais, por sua vez, foram os mais enfatizados, Tarcísio de Freitas enalteceu os gastos em infraestrutura, a construção de pontes, rodovias; mencionou o Nordeste diretamente ao abordar o Marco do Saneamento e obras do setor híbrido; falou da concessão de títulos de terra entre outras políticas públicas atribuídas ao governo do ex-presidente. Até esse ponto, se não fossem as menções a Jair Bolsonaro, o discurso do governador poderia ser posicionado na centro-esquerda do espectro ideológico.

Mesmo quando resgatou a pandemia, Tarcísio de Freitas não remeteu ao negacionismo, mas à importância dos auxílios concedidos aos cidadãos e aos empresários. Ao final, demonstrando nossa hipótese de que é da gramática evangélica que saem as estruturas discursivas do bolsonarismo, Tarcísio de Freitas fez menções breves e superficiais à religiosidade em uma frase na qual diz que Bolsonaro chorou inúmeras vezes ao lidar com as agruras do povo brasileiro, dobrando o joelho a Deus diante da pobreza.

Não obstante, acreditamos que a passagem mais elucidativa em termos prospectivos é quando o governador afirma que Jair Bolsonaro não é mais um CPF, deixando de ser uma pessoa para se tornar um símbolo de um movimento que o transcende. Essa ideia é interessante na medida em que autoriza esse movimento a ser representado eleitoralmente por outra pessoa, mantendo o ex-presidente no altar sagrado, porém alijado de poder profano.

É ainda mais profético que essa fala tenha sido proferida por Tarcísio de Freitas, na medida em que seu nome foi apontado como possível substituto de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais por 61% dos entrevistados durante a manifestação. Nesta pesquisa, realizada pelo Monitor do Debate Político da Universidade de São Paulo (USP), a ex-primeira dama aparece em segundo lugar com menos de um terço das preferências (19%). O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, do Partido Novo, ficou com 7%. A senadora Damaris Alves, do Republicanos, e os filhos do presidente (Carlos, Eduardo e Flávio) obtiveram 1% das menções.

O resultado pode sugerir que os componentes religiosos e radicalizados do bolsonarismo são importantes, porém não majoritários. Essa evidência, todavia contrasta com o fato de que 78% dos entrevistados se declararam “muito conservadores” em temas como família, drogas e punição a criminosos, enquanto 18% se declararam “um pouco conservador”. Talvez a escolha de Tarcísio de Freitas não deva ser interpretada apenas à luz do binômio radicais x moderados, mas como indício da precedência da questão social, em particular, dos investimentos e auxílios concedidos à sociedade. Pode também ser um indício de que a misoginia não é apenas um componente marginal, mas um elemento estruturante das preferências políticas, se apresentando como um obstáculo intransponível para Michelle Bolsonaro.

Por fim, resta analisar a fala do próprio ex-presidente que, como ressaltado por Tarcísio de Freitas, funciona como símbolo capaz de dar unidade a grupos econômica e socialmente distintos. Isto porque, a despeito do caráter majoritariamente masculino (62%, segundo a pesquisa da USP); branco (65%); escolarizado (67% têm ensino superior) e elitizado dos manifestantes (25% declararam ganhar entre 5 e 10 salários mínimos e 26% entre 3 e 5), é inequívoca a capacidade do ex-presidente de conquistar também a simpatia e o voto de mulheres e indivíduos não brancos, não escolarizados e não elitizados.

No entanto, o fato de ser composto por vários grupos, não quer dizer que não seja possível hierarquizá-los no tocante ao seu caráter mais ou menos nuclear para conformação do bolsonarismo.

Logo no início do discurso, o ex-capitão afirma: “Quem sou eu? Eu sou igual a vocês. Só que do lado em direção a Curitiba, da pequena cidade de Eldorado paulista. Talvez 4.000 habitantes. Mas ali eu me criei. Ali, conheci a luta armada em 1970. Onde foi executado pela esquerda, a pauladas, o tenente da Força Pública de São Paulo Alberto Mendes Júnior. Quis o destino que eu entrasse na carreira das armas. Cursasse a Escola Preparatória de Cadetes em Campinas, a Academia Militar em Resende [RJ] e saísse mundo afora.”

A fala de Jair Bolsonaro é reveladora de um elemento ainda não mencionado neste texto, uma vez que deixa nítida a importância dos militares e da memória da ditadura militar para a configuração do seu movimento. Este não é um elemento marginal, mas estruturante para o antagonismo maniqueísta que divide o nós (a direita) do outro (a esquerda). Nessa chave, os militares são enaltecidos por terem feito parte da ditadura, são exaltados por terem combatido a esquerda, escolhida como inimigo a ser combatido.

Estas evidências, reforçam aquelas encontradas na análise da trajetória legislativa de Jair Bolsonaro (Silva, 2024), demonstrando que os militares são o núcleo duro do bolsonarismo, ao qual se somam os agentes de segurança pública (Policiais Militares, Civis e Guarda Metropolitana, também citados no discurso) e privada, responsáveis por combater outro inimigo do cidadão de bem: o crime. Este sim uma ameaça real que, contudo, confere dramaticidade e concretude à ameaça imaginária do comunismo, que, por sua vez é mencionado em um trecho do discurso do ex-presidente. Destacada abaixo, a passagem é interessante para ilustrar o entrelaçamento de diferentes fantasmas na configuração desse imaginário, mas, também, a orientação para que seus apoiadores atuem na disseminação do medo: “Nós não queremos o socialismo para o nosso Brasil. Nós não podemos admitir o comunismo em nosso meio. Nós não queremos ideologia de gênero para os nossos filhos. Nós queremos respeito à propriedade privada. Nós queremos o direito à defesa à própria vida. Nós queremos o respeito à vida desde a sua concepção. Nós não queremos a liberação das drogas em nosso país. Mas para isso nós devemos trabalhar todo dia dentro de casa, no trabalho, com os vizinhos e com os amigos.”

Após essa fala inicial, Jair Bolsonaro mostra que a despeito das defecções, não está sozinho, enaltecendo Tarcísio de Freitas e o ex-ministro Marcos Pontes, também presente na manifestação. Logo em seguida, menciona a senadora Tereza Cristina –que não compareceu alegando problemas de saúde e, por este motivo, foi alvo de críticas nas mídias bolsonaristas. A ex-ministra da Agricultura, foi elogiada no discurso em um aceno ao agronegócio, mas também aos produtores rurais que se percebem de algum modo ameaçados pelo Movimento Sem Terra (MST), também mencionado no discurso.

Em seguida, abordou temas econômicos e, nesse tocante, manteve a ambiguidade que caracteriza seus discursos sobre esse tema (Silva, 2024). Ao mencionar a Lei de Liberdade Econômica, Jair Bolsonaro acena aos fiscalistas adeptos à gramática neoliberal, porém, em seguida, menciona também os programas de transferência de renda como o Auxílio Emergencial e o Bolsa Família (referido como tal e não com o nome dado durante seu governo, quando foi renomeado como Auxílio Brasil), cujo impacto fiscal nas contas públicas contraria esta mesma gramática.

Jair Bolsonaro encerrou o discurso sendo didático nas orientações para aqueles que atuam em sua defesa: “O que é golpe? Golpe é tanque na rua (…) Golpe usando a Constituição. Deixo claro que estado de sítio começa com o presidente da República convocando os conselhos da República e da Defesa. Isso foi feito? Não. Apesar de não ser golpe o estado de sítio, não foi convocado.”

A estratégia de diferenciar golpe e estado de sítio é interessante, na medida em 88% dos participantes entrevistados pelo Monitor da USP durante a manifestação acreditam que Lula não ganhou a eleição e 94% pensam que vivem em um estado análogo à ditadura, haja vista as perseguições da Justiça a Jair Bolsonaro e seus apoiadores. Sob esta perspectiva, o estado de sítio seria um mecanismo legítimo e constitucional para combater uma ameaça ao Estado de Direito: a vitória de Lula nas eleições presidenciais.

Por fim, cabe ressaltar um segundo propósito, particularmente bem-sucedido, dessa estratégia. Ela retira o foco dos militares que, segundo as investigações da Polícia Federal, participaram ativamente na concepção e orquestração de um golpe de estado contra o presidente eleito. Quando Jair Bolsonaro diz que “golpe é tanque na rua”, indicando que estaríamos diante de uma articulação civil e republicana, organizada sob a égide da Constituição. A estratégia foi bem-sucedida. Se as semanas que antecederam a manifestação foram marcadas por uma ampla repercussão das acusações sobre o alto comando das Forças Armadas e demais oficiais envolvidos, depois de domingo, essa pauta esfriou.

Uma pena. Jair Bolsonaro atuou por 27 anos como um porta-voz das demandas mais pecuniárias e reacionárias das Forças Armadas. Expulso por vocalizá-las, foi veladamente sustentado e apoiado exatamente para que pudesse publicizá-las sem comprometer o alto comando. O ex-capitão, ao defender a ditadura, a tortura, o fuzilamento de adversários, falou aquilo que nenhum representante oficial das Forças Armadas poderia falar sem prejuízo do relacionamento com o poder civil.

Ele cumpriu o papel de manter o pensamento vivo e articulado, fazendo a ponte entre o que se diz dentro e fora da caserna. Com isso, pôde atrair aqueles que, não sendo militares ou mesmo não tendo vivido o Regime Militar, se identificam com a ideia patriarcal de ordem que definiu o período. Jair Bolsonaro, assim como aqueles que perpetuam esses ideais nas escolas militares e em outros espaços públicos recebendo salários pagos pelo erário precisam ser punidos. Mais do que isso, eles são o produto de uma anistia geral que gerou uma proto-república, na qual a falta nitidez acerca dos limites entre Estado de Direito e autoritarismo são o resultado de uma transição pactuada, que não propiciou os devidos processos de investigação e punição dos crimes cometidos durante a ditadura militar.

É preciso lembrar para que não se repita. É preciso punir para que não se perpetuem.

*Mayra Goulart é professora do Departamento de Ciência Política da UFRJ.

*Paulo Gracino é professor do Departamento de Sociologia da UnB.

Referências


GRACINO JUNIOR, P; SILVA, M. G. “Invenção do mito”. Projeto história (PUC-SP), v. 76, p. 11-37, 2023.

GRACINO JUNIOR, P.; SILVA, M. G.; FRIAS, P. “‘Os humilhados serão exaltados’: ressentimento e adesão evangélica ao bolsonarismo”. Cadernos Metrópole, v. 23, p. 547-80, 2021

SILVA, M. G.. Da diferença à equivalência: Hipóteses laclaunianas sobre a trajetória legislativa de Jair Bolsonaro. Dados – revista de ciências sociais, v. 67, p. 1-39, 2024.


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