A memória remoída

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EDSON TELES*

O desconhecimento dos fatos ou o voluntário arquivamento da história tem causado danos à democracia brasileira

Entre 2019 e 2022 o país viveu um governo que negou fatos e tentou subverter os sentidos da história ao glorificar a ditadura e homenagear torturadores, como o fez com o coronel Ustra (condenado como torturador da família Teles em todas as instâncias da Justiça). Um dos resultados mais impactantes do negacionismo estatizado foi a recente tentativa de golpe de Estado de nossa história: o de 8 de janeiro de 2023.

A mobilização da massa de apoiadores da extrema direita somente foi possível com a narrativa de que houve na Ditadura de 64 um momento de crescimento e de ordem, favorável às pessoas “de bem” e à “família”. Com essa fake news histórica somada a estratégias nacionais e globais da direita se criaram condições favoráveis à emergência das forças golpistas.

Claro que tudo isso somente sendo viabilizado pela presença e atuação direta das Forças Armadas, instituição historicamente envolvida com os ilegalismos e que saiu da Ditadura sem ser responsabilizada pelas graves violações de direitos cometidas pelos seus comandantes e subordinados. Não se apurou também o sequestro das instituições do Estado para promover o crescimento das grandes corporações do capital por meio da promoção de benefícios econômicos e promovendo processos repressivos contra os trabalhadores, os sindicatos e as populações tradicionais e originárias.

Conhecer essas histórias, diferentemente do que foi recentemente declarado pelo presidente Lula, não é remoer o passado. O desconhecimento dos fatos ou o voluntário arquivamento da história tem causado danos à democracia brasileira, a qual já era, antes mesmo do governo do inelegível, um regime de baixa qualidade. Prova eloquente disso foi a articulação da direita “amiga” tucanada que se aliou às outras direitas (inclusive à extrema direita) para dar o golpe “institucional” contra a presidente Dilma Rousseff. Inclusive utilizando do discurso das pessoas “de bem”, da “família” e do elogio aos torturadores. Parte desta direita se arrependeu da aliança. A outra parte faturou e segue faturando.

Isso indica o contexto no qual a entrevista do presidente se insere. Em seu terceiro mandato Lula evidentemente não tem nem mais o apoio popular que teve em outros momentos, nem um partido com a força de antes. Soma-se a isso o fato de que os militares galgaram lugares de poder nunca antes alcançados desde a Ditadura. Isso o obriga a aliar-se com boa parte daqueles que assinaram o golpe contra a única mulher presidente que tivemos e que estiveram no governo autoritário derrotado nas urnas em 2022.

Sem eles não se governa. O curioso é que com eles também não se governa. O cobertor da democracia é curto e o clima da quebra institucional castiga constantemente.

Nesse contexto, outro aspecto relevante salta aos olhos: a história. O poder dos militares nesse momento é tamanho que nem mesmo a recriação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (CEMDP), instituição criada pela Lei 9.140/95 (mediante projeto do governo FHC) pôde ser reconstruída.

Em um jogo desrespeitoso com a sociedade e com os movimentos familiares de desaparecidos políticos e de vítimas desse tal passado, o governo faz o jogo de empurrar a responsabilidade de recriação da Comissão de um ministério para outro e não restabelece o direito humanitário e constitucional de conhecer a história, encontrar os restos mortais e realizar o digno enterro que aquelas pessoas merecem.

Para não falar no devido julgamento dos agentes responsáveis (esse foi sempre um passo inaceitável para a nossa democracia, seja no contexto atual ou nos governos anteriores). Assim, a excelentíssima memória do presidente, ao procurar não remoer o passado, parece politicamente confluir narrativas várias: do Estado, de parte da sociedade, da esquerda, da democracia.

É preciso lembrar que a história hegemonicamente narrada fez o apagamento dos crimes da escravidão. Se construiu a falsa narrativa de que o país viveu uma “democracia racial” para diminuir ou anular os conflitos decorrentes da sociedade racista em que vivemos. Com o passado da Ditadura, o Estado brasileiro parece caminhar na mesma direção ao criar, ao menos até o governo do inelegível, a narrativa de que vivíamos em um regime com instituições consolidadas e que, gradativamente, o país iria crescer, sua economia se desenvolver e a miséria e as desigualdades diminuírem. Vimos que o que se consolidava era o modelo de uma democracia liberal, submissa ao capital das grandes corporações, às aristocracias regionais e ao processo de extração de nossas riquezas, da nossa terra e do nosso povo.

É fato que devemos concordar que o golpe de 1964 é história. Contudo, revivê-lo enquanto fatos significativos para a compreensão do presente parece fundamental. Lembro de um discurso do presidente Lula quando ele era deputado constituinte, se encontrava em outro contexto político e o Congresso estava prestes a aprovar a nova Constituição: “Os militares continuam intocáveis, como se fossem cidadãos de primeira classe, para, em nome da Lei e da Ordem, poderem repetir o que fizeram em 1964 (…). Votamos contra porque, mesmo havendo avanços na Constituinte, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta” (Brasília, 22 de setembro de 1988).

*Edson Teles é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Autor, entre outros livros, de O abismo na história: ensaios sobre o Brasil em tempos de comissão da verdade (Alameda). [https://amzn.to/48Esshj]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES