Por CAIO HENRIQUE DE ALMEIDA*
A constituição de uma nova categoria de trabalhadores é resultado direto do projeto social e político conforme aos fundamentos da “nova razão do mundo”
Esse artigo se propõe a discutir o modo de funcionamento do neoliberalismo como uma nova razão. O modelo neoliberal pode ser compreendido, como sendo uma racionalidade que procura influenciar o comportamento de indivíduos e sociedades a seguir um determinado projeto político e econômico.
A disciplina da força de trabalho ocupa um papel importante dentro de um modo de produção capitalista. Seu principal interesse é a exploração do trabalho, orientada para a maximização do lucro. A partir disso, buscamos pensar como esta disciplina respeita uma concepção ideológica que procura adaptar o indivíduo a uma estrutura social. Essa adaptação dos indivíduos é uma forma de controlar a força de trabalho, direcionando-a, conforme as demandas de mercado.
Pierre Dardot e Christian Laval, em A nova razão do mundo discutem o projeto de sociedade defendido pelo neoliberalismo a partir dos impactos nas atividades produtivas, nas as modificações no mundo do trabalho e as consequências para os seres humano.
Para entender a emergência do precariado utilizaremos a obra sociólogo inglês Guy Standing, O precariado: a nova classe perigosa.
A partir da crise econômica de 2008, assistimos o desmantelamento dos direitos sociais por todo o mundo. Onde a classe trabalhadora está sendo penalizada com medidas políticas que tem deteriorado a renda salarial, precarizando suas condições de trabalho e modo de vida. A sociedade foi vítima de uma preocupante ofensiva neoliberal, que tem atuado a favor do interesse privado. O que tem gerado uma inquietação social em vários setores afetados pela crise e pelos ajustes fiscais.
No Brasil, em 2016, com a aprovação Emenda Constitucional nº 95, conhecida por “PEC do teto dos gastos”, instituiu um novo regime fiscal que congela por 20 anos aos gastos sociais em áreas como Saúde e Educação e, da reforma trabalhista, sancionada por Michel Temer, em 17 de julho de 2017. Acompanhamos a flexibilização das leis trabalhista e a instituição do trabalho intermitente.
Pensar os fundamentos que estruturam a discurso neoliberal é uma oportunidade de compreender seu funcionamento e efeitos práticos que atingem diretamente o cotidiano da classe trabalhadora. Pierre Dardot & Christian Laval (2016) oferecem algumas ferramentas analíticas que nos ajudam na tarefa de tentar a compreender politicamente a racionalidade neoliberal, assim como, a sua natureza como projeto social e político.
Segundo Dardot & Laval (2016) o neoliberalismo funcionaria como uma forma de gestão. Ele seria uma a racionalidade aplicada à gestão da empresa, desemprego, à precariedade, a dívida e a avaliação. Buscando sempre incentivar à concorrência interindividual. Além disso, teria um papel importante na definição de novos modos de subjetivação nos indivíduos. Os autores afirmam que o “neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos”, ele teria por objetivo prático produzir “certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades”.
Isso significa que até a nossa existência pode ser gerenciada, no sentido, de sermos “levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos” conforme o que é imposto pela racionalidade. Assim, essa forma de gerir o mundo social, além de atingir as relações sociais de produção, engloba a nossa existência humana dentro de um modelo de organização social que tem por objetivo, transformar a vida em mercadoria.
O neoliberalismo precisa ser entendido não só como uma reposta à crise de acumulação. Ele é também uma resposta a uma crise de “governamentabilidade”. A govermentabilidade é usada para adaptar os modos de vida e das mentalidades ao projeto. A adaptação deve ser permanente, uma vez que, o “neoliberalismo repousa sobre uma dupla constatação”. A primeira é que “o capitalismo criou um período de revolução permanente na ordem econômica”. A segunda acredita que os indivíduos “não se adaptam espontaneamente a essa ordem de mercado cambiante”. Será preciso convencê-los.
A adaptação é um dos elementos-chave para compreender o funcionamento deste convencimento. A racionalidade busca permanentemente a adaptação do indivíduo ao mercado. O indivíduo que não se adapta é um fracassado para o sistema. No fundo, a governamentalidade neoliberal tem por objetivo convencer que “cada indivíduo deve funcionar como uma pequena empresa”. Assim, o indivíduo adaptado passa a organizar sua vida como se fosse uma “empresa permanente e múltipla”. O indivíduo empresa tem à concorrência como um valor estruturante na sua socialização e na relação com outros indivíduos.
Dentro da lógica da governamentalidade e da adaptação do indivíduo o modo de gestão empresarial da vida, Dardot & Laval (2016) mostram que o mercado funciona “como um processo de autoformação do sujeito econômico”. Este processo é “subjetivo autoeducador e autodisciplinardor”, de modo que “o indivíduo aprende a se conduzir”. Dessa forma, o sujeito é construído pelo mercado de forma atomizada e individualizada. Podemos assim, compreender que esse sujeito socializado pelo neoliberalismo é o precariado. Onde, a sua adaptação a racionalidade revela-se na imagem do empreendedor que governa a si mesmo. Ele tem a liberdade para se “autogovernar”.
Na visão neoliberal, a liberdade de ação é o que cada pessoa possui para desenvolver suas faculdades, apreender, corrigir-se e adaptar-se. Aqui, apresenta-se a sutileza do mercado. Caracterizado como um processo de formação de si para si mesmo, o mercado, diante os indivíduos, pode ser compreendido como um processo de aprendizado onde “nós educamos a nos governar como empreendedores” para ver a sociedade “como um livre espaço para os empreendedores”, assim, “todas as relações humanas podem ser afetadas por essa dimensão empresarial”. Em outras palavras, a humanidade do sujeito é construída com base no modelo de uma empresa privada (DARDOT & LAVAL, 2016).
A grande virada do neoliberalismo foi “obrigar os indivíduos a governar a si mesmos sob a pressão da competição”, obedecendo “os princípios do cálculo maximizador” realizando seu último mandamento: a “valorização do capital.”. A estratégia neoliberal é clara nos seus interesses. Foi a partir de discursos, práticas e dispositivos de poder que ela consolidou as condições políticas que conseguiram pôr em prática seu projeto político e econômico, ao ponto de modificar as regras econômicas e as relações sociais. (Dardot & Laval).
A adaptação dos indivíduos à racionalidade do mercado não passa de uma tentativa de disciplinar a mão de obra. Procurando baixar o custo do trabalho e aumentando sua produtividade. Foi a partir dessas condições sociais que se dá a emergência do precariado. Ele representa o novo sujeito produzido pela flexibilização do mercado de trabalho e as mudanças na esfera da política e econômica.
A formação do precariado é resultado de mudanças estruturais que ocorreram no mundo do trabalho ao longo do século XX e que, se aprofundaram no início do XXI. O seu aumento significa um retrocesso civilizacional que, tem deteriorado as condições de vida dos trabalhadores.
David Harvey (1992) percebe a atual tendência de passagem dos empregos para o setor de serviços poderia contribuir para o aumento na desigualdade de renda entre os trabalhadores e incentivar uma “nova aristocracia do trabalho” e a “emergência de uma subclasse” social de trabalhadores e trabalhadoras “mal remunerada e totalmente sem poder”. Isso ajuda a perceber que a constituição de uma nova categoria de trabalhadores é resultado direto do projeto social e político conforme aos fundamentos da “nova razão do mundo”.
A referência de David Harvey nos leva a pensar nesta subclasse como sendo o precariado. Uma maneira de perceber esse grupo social de acordo com Guy Standing (2017) seria perceber como as pessoas realizam cada vez mais, formas inseguras de trabalho, de modo que provavelmente não ajudaram elas a elaborarem uma identidade social desejável ou construir uma carreira. Assim, o sujeito que experiência uma vida produtiva flexível e precária carrega algumas marcadas sociais, manifestadas através da raiva, anomia, ansiedade e alienação.
As condições sociais dos indivíduos precários são marcadas pela insegurança do emprego, pois, vivem com ansiedade e com medo de perder o que tem. O que os transformam em pessoas com “a mente insegura”, que estão “estressadas, e ao mesmo tempo “subempregadas” e “sobrempregadas””. Além disso, “são alienadas de seu emprego e de seu trabalho, e seu comportamento é anômico, incerto e desesperado.” Assim, os indivíduos, que temem perder o que têm estão constantemente frustradas. Essa frustração, leva à raiva e ao medo.
A mente do precariado é configurada e motivada pelo medo. Guy Standing (2017) complementa, a partir da análise dos fundamentos sociais e morais da racionalidade neoliberal, que seria possível afirmar que a “mistura de raiva, anomia, ansiedade e alienação crescentes abrange o inevitável lado insolente de uma sociedade que tem feito da “flexibilidade” e da insegurança as pedras fundamentais do sistema econômico.” Somado a isso, encontramos as bases social de um sistema social que promove à competitividade, meritocracia e a flexibilidade.
O precariado deve ser visto com um grupo social que se organiza aos poucos em torno de um projeto político neoliberal. Mesmo que Dardot & Laval (2016) tenham notado que a ação coletiva se tornou mais difícil porque os indivíduos estão submetidos a um regime de concorrência que atinge a praticamente todos nos níveis da sua vida. A rebeldia do precariado busca movimentar por outras bases de organizações políticas e entidades de classes.
O neosujeito pode ser pensando como um trabalhador precário também chamado de precariado por alguns sociólogos do trabalho. Na verdade, o termo, como demonstra Guy Standing (2017), é um neologismo que combina o adjetivo “precário” com o substantivo direcionado ao “proletariado”. Este grupo social, de acordo com o autor, ainda não pode ser compreendido como classe-para-si, ou seja, no sentido de possuir um projeto político para o grupo. Pois, ainda seria uma classe-em-formação que se mobiliza timidamente.
Segundo Guy Standing, um dos principais problemas para a formação de laços de solidariedade indispensáveis à ação coletiva, deriva do fato de que “o precariado não se sente parte de uma comunidade trabalhista solidária”. Este elemento, “intensifica um sentimento de alienação e instrumentalidade” nas práticas sociais, o que acaba abrindo espaço para que as “ações e atitudes derivadas da precariedade” tenderam ao “oportunismo”. Porém, “não é correto ver a precariedade estritamente pelos seus dissabores.”. Na maioria dos casos, os “indivíduos atraídos por ela estão procurando algo melhor do que foi oferecido na sociedade industrial”. São pessoas que “merecem mais o nome de vítima do que de herói”. Mas, alguns movimentos estão “começando a mostrar por que o precariado pode ser um prenúncio de uma boa sociedade do século XXI.”.
Contudo, para essas relações sociais se materializam será preciso que as pessoas tenham empatia, isto é, a capacidade de se projetar na situação da outra. Isto não é algo menor, uma vez que os sentimentos de empatia e competição estão em constante conflito dentro da ordem neoliberal. A competição entre trabalhadores é uma forma de negar a empatia porque o sentimento de concorrência produz o “medo do fracasso” ou de alcançar “apenas um status limitado” (STANDING, 2017). Assim, a empatia será um fator importante para a constituição do precariado com um grupo social politicamente organizado.
Situação que já ocorreu no passado quando as comunidades profissionais eram encorajadas pela empatia, “sendo que a aprendizagem representava um mecanismo primário para a construção de uma avaliação de reciprocidade” criando o contexto favorável para reforçar as “regras de autorregulação.” Quando o sentimento de empatia enfraquece os laços de solidariedade, as possibilidades de se construir uma memória social também será comprometida.
É uma característica da nossa humanidade se definirmos pelo que fazemos e pelo o que somos. De modo que, “a memória social surge do pertencimento a uma comunidade reproduzida ao longo de gerações. Numa sociedade marcada pela flexibilização do emprego e precarização do trabalho, fica cada vez mais complexo construir uma “memória social” necessária a construção da identidade social. Em outras palavras, a memória social “na melhor das hipóteses […] fornece um código de ética e um senso de significado e estabilidade emocional e social (STANDING, 2017).
A emergência do precariado é inerente as contradições da relação entre o capital e o trabalho. Por conta disso, a sua mobilização política é uma etapa importante no processo de enfrentamento às ações de espoliações de direitos sociais e rebaixamento dos salários.
Os processos de resistência às mudanças estruturais causadas pelo capitalismo resultam de suas próprias contradições. Com isso, o precariado surge como uma categoria de análise que ajuda a pensar a situação da classe trabalhadora no atual momento de desenvolvimento das forças produtivas. A sua emergência enquanto grupo social, impõe novos desafios a organização e a ação coletiva em defesa de seus interesses dentro da relação entre capital e trabalho.
Deste modo, o precariado representa uma classe trabalhadora (des)mobilizada e (des)politizada, mas que se movimenta que apesar da “corrosão dos laços sociais” que se traduzem no “questionamento da generosidade, da fidelidade, da lealdade, da solidariedade, de tudo o que faz parte da reciprocidade social e simbólico nos locais de trabalho.” (Dardot & Laval, 2016).
Em resumo, vimos que Dardot e Laval (2016), nos ensinam que é preciso pensar o neoliberalismo como uma racionalidade. Dessa forma, compreendê-lo politicamente, ou melhor, sociologicamente, pressupõem compreender a natureza do seu projeto social e político. Em Guy Standing (2017), procuramos mostrar que a nova razão do mundo, usa a competitividade do mercado para buscar crescimento e desenvolvimento com base na precarização do trabalho e flexibilização do emprego. A consequência disso é o aumento da insegurança e instabilidade para a vida das pessoas. Do modo que, tudo deve “ser feito para maximizar a concorrência e a competitividade” e para “permitir que os princípios de mercado permeassem todos os aspectos da vida”.
Em outras palavras, a funcionalidade da racionalidade neoliberal por meio da sua instituição – mercado – tem por objetivo transferir os riscos e custos do trabalho aos trabalhadores. Dessa forma, “gerenciar o risco em vez de construir carreira” (STANDING, 2017), talvez, essa seja uma das características marcantes do precariado e da transformação do mundo do trabalho no século XXI.
No momento, os jovens são uma parcela significativa do precariado, que vêm sofrendo sistematicamente com as mudanças no mundo do trabalho. Situação “agravada por sua alienação do principal mecanismo para o desabafo da frustração e o exercício da voz na negociação de um futuro menos precarizado” (STANDING, 2017).
“Quanto o precariado vai protestar?” Uma pergunta que ao mesmo tempo em que nos remete à esperança, também produz dúvidas em relação ao futuro. No livro Comum (2017) Dardot e Laval apontam para o caminho da instituição de uma nova razão política para substituir à razão neoliberal. De modo que, “podemos dizer com certeza” que “está se abrindo diante de nós um longo período de convulsões, confrontos e reviravoltas.” (DARDOT; LAVAL, 2017). O comum poderá ser o princípio político que orientará as mobilizações do precariado ao longo do século XXI.
*Caio Henrique de Almeida é professor de sociologia na rede pública do estado de Minas Gerais.
Referências
DARDOT, P; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DARDOT, P; LAVAL C. “Post-scriptum sobre a revolução no século XXI”. In: Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2016.
HARVEY, D. “A transformação político-econômica do capitalismo no final do século XX”. In: A condição pós-moderna; uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992.
STANDING, G. O Precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica.
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