Perfeitos

Roger Palmer, Pilha de asfalto, 1972
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Por VINÍCIUS SÃO PEDRO*

E foi assim que o perfeito casal acompanhou incrédulo a evacuação em massa de seus seguidores (sim, a vida pode ser ironicamente cruel)

“No entanto, não há nada \ que seja mais bonito \ que uma bela cagada.” (Paulo Leminski).

Eram o casal perfeito. Aliás, perfeitos já eram antes mesmo de formarem um casal. Foi trabalho fácil para os algoritmos cruzarem os caminhos de dois seres humanos de tão rara beleza. Seus rostos, tão simétricos e equilibrados, do tipo que, ao observador, era preciso superar antes certa intimidação para só então conseguir admirá-los devidamente. Os corpos? Bem, é melhor nem tentar descrevê-los, para não despertar nos nobres leitores recrimináveis pensamentos, pois não é a intenção deste relato.

Basta dizer que todas aquelas modalidades de exercícios físicos que praticavam serviam mais a fins pedagógicos, para estimular a prática de esportes entre a multidão de seguidores, do que exatamente para modelar suas naturalmente privilegiadas compleições físicas. Por capricho, apenas compensavam com tatuagens tribais e afropenteados os traços étnicos de que foram injustamente privados por seus nada miscigenados antepassados.

Tinham mentalidades muito à frente de seu tempo e estavam mesmo na vanguarda do pensamento em temas como fé, comportamento e sexo. Nesse último quesito, aliás, podiam ser considerados neoliberais. Haviam há muito se libertado do arcaico dualismo macho-e-fêmea. Experimentavam de tudo e faziam questão de compartilhar cada uma de suas experiências com seus seguidores, uma vez mais, com fins pedagógicos.

Afinal, quem tem tanto a ensinar para uma sociedade retrógrada não pode se dar ao luxo de ter intimidade. Haviam decidido não ter filhos biológicos, por motivos unicamente ecológicos. Planejavam adotar um casalzinho de crianças refugiadas, mas ainda não havia chegado o momento certo (pelo menos é o que afirmava a equipe que gerenciava suas contas nas redes sociais).

E por falar em ecologia, eram também ambientalmente irrecrimináveis. Conscientes da escassez crescente de recursos hídricos, buscavam economizar água das mais diversas formas. Adeptos a práticas como “xixi no banho”, economizavam água suficiente para compensar o que era gasto na fabricação de seus iPhones e assim podiam trocá-los anualmente, com a consciência tranquila. Deixavam tão poucas pegadas de carbono que nem o mais habilidoso dos caçadores conseguiria rastreá-los, ainda que fugissem pelas dunas do Erg Chebbi.

Seus inúmeros autorretratos em montanhas, cachoeiras, florestas e praias podiam inaugurar uma fase moderna da Renascença, pois captavam a perfeita integração da beleza humana com a natureza. Sem sombra de dúvidas, seriam o par ideal para protagonizar um remake do casal primordial da criação (e não lhes faltaria nem a maçã mordida!).

Faziam questão de uma alimentação saudável, equilibrada e socioambientalmente correta. Uma horta vertical na varanda do apartamento lhes servia uma boa variedade de condimentos e vegetais folhosos. Chegaram a tentar cultivar árvores frutíferas em grandes vasos no terraço, mas não é fácil encontrar jardineiros especializados em urban farming (além do transtorno de todas aquelas folhas entupindo o filtro da jacuzzi).

Tinham sua própria marca de kombucha, que usavam como uma espécie de carro chefe em sua missão de educar a sociedade para hábitos mais saudáveis e sustentáveis. Verdadeiros ativistas gastronômicos, se recusavam a consumir alimentos produzidos fora do raio de 200 km em torno do food mall onde faziam suas compras (sem radicalismos, abriam exceção para certas iguarias importadas, lamentavelmente ainda não apreciadas pelo consumidor médio local).

Não se importavam em gastar uma parte considerável de seu tempo lendo atentamente as embalagens dos alimentos antes de adquiri-los. Desse modo, evitavam corantes, edulcorantes, espessantes, aromatizantes, estabilizantes, conservantes, acidulantes, refrigerantes, umectantes, antiumectantes, antioxidantes e bisfenol A.

Todo esse cuidado com a saúde só reforçava um processo de retroalimentação positiva, tornando-os perfeitos não apenas por fora, mas também por dentro. Os resultados de seus exames de rotina eram de entediar os médicos. Chegaram a ouvir de um cirurgião plástico de Nova Iorque que invejava toda aquela saúde, que só mesmo o clima tropical podia proporcionar. Seus intestinos, por exemplo, funcionavam com uma pontualidade britânica e eram incrivelmente sincronizados.

Uma dieta vegana associada à ingestão regular de pré e probióticos, além da meditação diária para desbloqueio do Manipura Chakra, resultavam todas as manhãs nas mais perfeitas salsichas da escala de Bristol. Mas, por ironia ou injustiça, foi justamente esse invejável material fecal o motivo da reviravolta em suas vidas.

Em suas práticas de economia de água, convencionaram que, ao utilizarem o toilette subsequentemente (o que não era raro, dado a sincronia de suas fisiologias), apenas o segundo a usar é quem daria descarga. Um gesto simples, mas que consistia em uma verdadeira lição multidisciplinar de sustentabilidade, desprendimento e cumplicidade, especialmente quando envolvia a necessidade número 2.

Naquela fatídica manhã, revezaram o dejetório, como de costume. Foi quando ele, o segundo a ocupar o trono, percebeu algo curioso antes de dar a descarga. Chamou então a parceira para juntos admirarem aquele improvável acontecimento. Repousando juntos no fundo da louça, seus resíduos, idênticos em tamanho, cor e formato, haviam se posicionado de tal maneira e simetria a formar um perfeito coração.

Sim, o símbolo máximo do amor estava ali, mais perfeito e espontâneo do que qualquer casal jamais conseguira esboçar a canivete no tronco de uma árvore. Não havia dúvidas de que ali estava uma manifestação do Amor Universal, que se expressa em todos os lugares, a todo momento (mesmo nas etapas menos nobres do ciclo natural sem fim), basta ter olhos para ver.

A singularidade daquele momento tinha que ser compartilhada imediatamente com seus seguidores. Hesitaram por um instante, lembrando-se da regra imposta por sua equipe de social media, que proibia postagens espontâneas. Mas aquela era uma situação especial em que aguardar pelo crivo e edição dos profissionais estragaria toda a naturalidade do momento.

E parecia a chance perfeita de provar de uma vez por todas para os haters que havia uma harmonia legítima entre os dois. Então, munidos de seus espertofones, iniciaram uma intensa sessão de fotos da escultura excrementícia. Entre todas as opções de ângulos, luzes e filtros, não foi fácil escolher a imagem que melhor traduzia a beleza daquela cena. Tiveram menos trabalho para escolher a legenda.

Bastou uma rápida busca em um site de frases e pensamentos para descobrirem que um tal Lord Byron já havia dito tudo o que precisavam: “O amor nasce de pequenas coisas, vive delas e por elas às vezes morre”. No afã da postagem, nem se deram conta do sentido premonitório contido naquelas palavras…

Como já estavam acostumados, segundos após a postagem da foto teve início a chuva de likes, denunciando a multidão que se escondia do outro lado da tela, aguardando ansiosa por uma novidade do casal. Quase com a mesma rapidez, começaram a pipocar na tela os primeiros comentários, elogiosos a princípio. Chegaram a dar uma jocosa gargalhada quando a primeira manifestação negativa apareceu: um ícone de cocô seguido de uma carinha amarela vomitando.

Mas, a partir daí, os comentários negativos se tornaram cada vez mais frequentes, acompanhados por uma inacreditável debandada de seguidores. Isso, por sua vez, levou à fuga dos patrocinadores que, de modo quase instantâneo, publicavam em suas redes sociais notas de repúdio a “qualquer apologia a manifestações românticas insalubres e de gosto questionável”. Mensagens inbox chegavam seguidamente com pedidos de demissão de managers, fotógrafos,maquiadores, personal trainers,assessorese designers.

E foi assim que o perfeito casal acompanhou incrédulo a evacuação em massa de seus seguidores (sim, a vida pode ser ironicamente cruel). A mesma multidão que os seguiam há anos, agora dava unfollow, incapazes de compreender a mensagem de amor que eles propagavam. O cheiro da soja fermentada ainda impregnava o ar do banheiro quando tudo já estava acabado. Haviam sido brutalmente cancelados.

*Vinícius São Pedro é professor de biologia na Universidade Federal de São Carlos – campus Lagoa do Sino.


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