Por SILAS RAMOS*
O tempo não colabora com a classe trabalhadora e para enfrentar os desafios e contingências é necessária a inteligência, a disciplina e o entusiasmo dos lutadores populares
A relação com o tempo é intrigante, a cada escala que utilizados para auferi-lo, para, como uma câmera, capturá-lo, torna-se possível ter diante de nós novos elementos que constituem uma narrativa daquilo que se observa. Ao mesmo tempo, temos de saber que o controle do tempo escapa da nossa capacidade, que as grandes mudanças históricas, se por um lado, exigem nossa agência e nossa ousadia, por outro, a contingência, os desafios não esperam estarmos preparados para enfrentá-los, as guerras não esperam os exércitos estarem à postos para se iniciarem. O tempo certamente não colabora com a classe trabalhadora e para isso, é necessária a inteligência, a disciplina e o entusiasmo dos lutadores populares.
Se por um lado, ainda ressoam os ecos do 8 de janeiro e a extrema direita segue viva e operante no congresso, na mídia e mesmo nas ruas, atuando agora de forma muito mais planejada, calculada e fundamentada em uma estratégia para a tomada do poder, isso não deve ser colocado como uma justificativa para que as esquerdas, na sua pluralidade de partidos, movimentos sociais e organizações sindicais se afastem das suas responsabilidades históricas, em promover derrotas táticas ao neoliberalismo e pavimentar o caminho para conquistas estratégicas para a classe trabalhadora em sua pluralidade, tomando como ponto de partida, a construção de uma derrota tática aos militares e aos grupos dominantes do país, o que exige uma postura consequente e vontade política das forças políticas hegemônicas da esquerda.
Há cerca de um ano, citei como desafios emergenciais a serem enfrentados naquele momento, a carestia, a fome e o desemprego como elementos centrais da política do governo. Muito embora o governo não tenha feito aquilo que para mim seria o ideal, ou seja, a implementação de um programa radical de reforma agrária, temos de reconhecer importantes avanços, como o fortalecimento do Ministério do Desenvolvimento agrário, do Programa de Aquisição de Alimentos e outras inúmeras iniciativas que ligam o desafio de combate à insegurança alimentar com o fortalecimento da agricultura familiar e dos movimentos populares do campo, nesse sentido também é intransponível que destaquemos a importante contingência histórica que ainda é colocada.
Entretanto, é necessário observar que do ponto de vista estratégico, ainda há muito há ser feito, e ao que tudo indica, há notoriamente uma tendência muito grande entre conciliação e apaziguamento dentro do governo, que não poderia ser melhor sintetizada pelo seu slogan “União e Reconstrução”, para não dizer, entre a submissão e a permissividade, em permitir que os atores nefastos permeiam postos do governo e por que não, busquem implodi-lo, como tem ficado cada vez mais evidente com as investigações, relatos e depoimentos sobre o 8 de janeiro e seus desdobramentos.
Ainda assim, diversos setores do campo democrático-popular parecem engajar suas energias hoje na chamada “reconstrução” da malha institucional do país e assim buscarem reviver a política dos “pactos”, seja com o centrão, com os representantes da indústria ou com o capital financeiro. Ocorre que, ao passo que se por um lado, setores das elites demonstram-se dispostos a esses pactos, na mesma medida, operam sempre na lógica de seu programa máximo, pressionando para que este governo, representante das forças populares e dirigido por um partido que se gestou nas lutas do povo, implemente, em sua plenitude, a agenda neoliberal demarcada pela austeridade, pela contenção de gastos sociais e pelas privatizações contínuas.
Ressalte-se ainda que a lógica de fortalecimento da democracia e das instituições não toma em consideração o caráter estruturante da política brasileira, seu traço autocrático, como muito bem formulado pelo sociólogo e histórico militante fundador do Partido dos Trabalhadores, Florestan Fernandes. Na lógica autocrática, o domínio das elites forjadas pela transição do modo de produção escravista ao republicanismo, é incompatível com a plenitude da vida democrática, com a universalidade dos direitos humanos, trata-se, portanto, de um modelo de “democracia” extremamente restrito, e em que a estrutura institucional se volta, sobretudo, a transferência de capitais aos grandes monopólios oriundos dos centros capitalistas.
Em nossa análise a reivindicação pela reconstrução democrática pode indicar dois vícios das esquerdas, em primeiro momento, pela própria “ingenuidade”, resultante da ausência de um horizonte estratégico de conquista do poder pelas massas populares e que se reflete no oportunismo das grandes direções em firmar pactos momentâneos com as elites que as garantam posições privilegiadas na estrutura institucional e promover melhorias momentâneas, mas não estruturantes, ao subproletariado, e, em segundo plano, o próprio reflexo da presença do liberalismo dentro das esquerdas, que exige portanto, um combate político e ideológico incessante dentro do governo e das organizações de classe, fazendo assim que a luta de classes se dê em diversas arenas, inclusive no seio do movimento popular.
Como já temos discutido, a estratégia democrático popular precisa ter como eixo de gravitação da sua política o rompimento, ou ao menos, a prática política intencionada à romper com os três complexos de contradição que caracterizam a posição dependente e subordinada do Brasil na economia política mundial, o monopólio da terra, ligado intimamente ao caráter racial da formação social brasileira, que só pode ser superado com uma radical reforma agrária; a superexploração do trabalho, que tem como ponto de partida para sua superação e a redução da jornada de trabalho e por último, a crise urbana como síntese que tem a cidade do capitalismo, concentrando todas as suas contradições – riqueza e espoliação – em sua manifestação física e que também encontra como seu caminho para superação uma reforma urbana radical que supere o altíssimo déficit habitacional.
Sem clareza desses polos gravitacionais do capitalismo dependente brasileiro, não é possível sequer cogitar transformações no longo prazo na estrutura econômica brasileira, e sem o rompimento com a tutela militar que também sustenta o caráter autocrático da malha institucional, nenhuma dessas mudanças poderão de fato se materializar.
O encabeçamento de um programa radical exige tanto a firmeza ideológica, quanto a própria vontade política dos governantes em implantá-las, assim como, é parte essencial de um processo de transformações sociais consequentes, a capacidade das direções em estabelecerem análises corretas da realidade, que melhor serão feitas colocando em cena a luta de classes como termômetro do avanço das forças progressistas, bem como o caráter autocrático do Estado brasileiro e seus limites para a processualidade dessas transformações.
Do contrário, os erros significam derrotas estratégicas, não somente para as organizações, mas para todo o povo trabalhador, os povos originários, a juventude e as mulheres, são esses os grupos que ainda “pagam a conta” e sustentam diariamente o peso da derrota e dos retrocessos que sucederam o golpe de 2016, que certamente não foram remediados pelo tempo e que, caso a esperteza dos dirigentes não sirva para capturar o tempo e nessa janela que é oferecida, promover um salto qualitativo na luta de classes, permaneceremos no dilema que o século XXI tem imposto à esquerda : vitórias simbólicas, derrotas estratégicas.
Silas Ramos é graduado em direito pela Universidade de São Paulo (USP).
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