Por JEAN MARC VON DER WEID*
Sem ampliar, e muito, a produção diversificada de alimentos, a fome aberta (desnutrição), oculta (subnutrição) ou leve (desequilíbrios nutricionais) não vão ser eliminadas
1.
O Governo Lula anunciou, por várias formas, inclusive um artigo do Ministro do Desenvolvimento Social, Welington Dias, a retirada de 24,3 milhões de brasileiros e brasileiras do mapa da fome em apenas um ano de governo! Como explicou este sucesso espetacular?
Foram citadas várias medidas governamentais que teriam tido este efeito maciço: aumento do Bolsa Família, atualização dos valores da merenda escolar, mais emprego, aumento real do salário-mínimo, retomada do Programa de Aquisição de Alimentos. As explicações se dirigem, essencialmente, ao aumento do poder de compra de alimentos destes milhões de famintos. Nada foi dito sobre a oferta de alimentos e dos seus preços.
O número é tão espantoso que poderia ser levado diretamente para o Guiness Book of Records. E ele faz sombra ao milagre bíblico (Novo Testamento) em que Cristo multiplica pães e peixes (uma boa dupla do ponto de vista nutricional), alimentando uma multidão de cinco mil fiéis durante um sermão famoso. A enxurrada de números gloriosos deixa ouvintes e leitores atônitos, mas o bom senso indica que alguma coisa está errada.
Para começar, se tantos deixaram de passar fome, o que é que eles passaram a comer? Se consideramos a dieta básica clássica do povo brasileiro, centrada no arroz com feijão e derivados do milho ou da mandioca, este aumento de demanda representaria uma enorme pressão sobre o mercado de alimentos, já que não houve um aumento da produção de arroz, de feijão e de milho (para consumo humano) ou mandioca no ano de 2023. Também não existem informações indicando a sua importação.
Ao contrário, uma porcentagem pequena, mas significativa, de arroz foi exportada. Como o arroz com feijão e a broa ou o fubá já não fazem parte da dieta corrente sequer das classes mais abastadas, o aumento da demanda de alimentos pode ter sido dirigido para derivados do trigo, como pão, massas e bolachas. Mas também não houve aumento significativo na produção ou na importação de trigo.
Outras pesquisas vêm apontando para a adoção de uma dieta muito insuficiente, do tipo “encher barriga”, pela população mais pobre e faminta. São ultraprocessados como miojo e salsicha, símbolo desta alimentação inadequada, mas que podem fornecer suficientes calorias para que as estatísticas os retirem do mapa da fome. Não tenho a menor ideia sobre o comportamento deste setor do sistema agroalimentar, mas não me consta que tenha havido uma explosão na demanda e na oferta destes produtos.
Se não houve aumento de produção e teria havido um enorme aumento de demanda, o efeito seria uma forte inflação de alimentos que corroeria o aumento de renda destes famintos e não permitiria romper o ciclo vicioso da fome, pelo menos para uma boa parte destes 24,7 milhões. A inflação de alimentos, de fato, continuou forte durante o ano de 2023, quase sempre o dobro da inflação geral, mas não parece alta o suficiente para indicar o pesado desbalanço que o hipotético milagre provocaria.
Há outros fatores a considerar nesta equação: os pobres não gastam toda a sua renda em alimentos, pois são obrigados a fazer outros gastos, ditos incompressíveis: moradia, transporte, saúde, educação, comunicação, vestuário, outros. E ainda deve ser levado em conta o fato de que perto de 60 milhões de pessoas estavam inadimplentes no começo do ano passado e mesmo o ótimo e bem-sucedido programa Desenrola implica em regularizar o pagamento (facilitado e diminuído, é verdade) de dívidas. Ou seja, nem toda a melhoria de renda foi dirigida para a compra de alimentos.
Finalmente, não se pode esquecer que o aumento de renda não foi tão forte como afirma o governo. Houve um aumento do emprego, mas com ênfase na informalidade e as pesquisas indicam que, mesmo com o aumento real (bem modesto) do salário-mínimo, a renda dos mais pobres não recuperou os níveis (que já eram insuficientes) de 2014.
E o Bolsa Família? Os valores distribuídos no ano passado apenas mantiveram o valor nominal do Auxílio Brasil de Bolsonaro, com um acréscimo para famílias com muitos filhos. Não houve um salto espetacular na renda dos mais pobres em relação aos auxílios anteriores, seja o emergencial seja o de Jair Bolsonaro (entre agosto e dezembro de 2022) em sua tentativa de ganhar o voto deste setor popular.
2.
E então? Como explicar o “milagre”?
O governo usou duas pesquisas diferentes para chegar a este resultado “milagroso”. A primeira é da Rede PENSAN, datada de 2022, indicando a existência de 33 milhões de famintos (insegurança alimentar grave), 60 milhões de pessoas subnutridas (insegurança alimentar moderada) e 32 milhões de com diferentes tipos de desequilíbrios alimentares (insegurança alimentar leve).
A segunda é do IBGE, indicando a existência de 8,7 milhões de famintos. Mas ao comparar uma e outra pesquisas, o governo fez o que minha tia avó chamava de juntar as galinhas com os leitões. A comparação correta seria com a pesquisa do IBGE em 2017/18 e nesta, o número de famintos era de 10,3 milhões, enquanto a pesquisa anterior, de 2013, contava 7,25 milhões. Ou seja, pelo IBGE, o número de famintos que saiu do mapa da fome entre 2017 e 2023 foi de 3,05 milhões.
Não é um número nada desprezível, mas não se pode afirmar que este efeito tenha ocorrido apenas neste último ano. No entanto, é bem provável que uma boa parte dos beneficiários tenha sido favorecida depois da partida do inominável.
Os dados da pesquisa da Rede PENSAN já tinham sido questionados por outros, divulgados pela FAO em relação a 2021. A entidade das Nações Unidas para a alimentação e nutrição indicou a presença de 20,5 milhões de famintos. Embora haja uma diferença de um ano entre as pesquisas, a diferença com a pesquisa da Rede não pode ser explicada pela data de cada uma. Afinal de contas, é de todo improvável que o número de famintos tenha crescido em12,5 milhões (61% a mais) em apenas um ano.
As diferenças entre estas duas pesquisas podem ser explicadas por abordagens metodológicas diferentes, sendo que a FAO faz, essencialmente, a contagem de calorias ingeridas, eliminando do mapa da fome todos os que conseguem acessar mais de 1200 calorias na sua dieta. Já a Rede registrou, na sua pesquisa, a regularidade do acesso a três refeições por dia, independente do que vem para o prato. A questão é que os números de cada uma dessas pesquisas se referem a situações distintas e não podem ser comparadas. Esperemos para ver o que a próxima pesquisa da Rede vai indicar.
Para completar quero apenas reforçar argumentos já esmiuçados em outro artigo, cuja leitura recomendo. Primeiro: sem ampliar, e muito, a produção diversificada de alimentos, a fome aberta (desnutrição), oculta (subnutrição) ou leve (desequilíbrios nutricionais) não vão ser eliminadas. Segundo: sem uma renda mínima mais robusta não vai ser possível a adoção de uma dieta adequada. Terceiro: sem mobilizar os produtores médios e grandes do agronegócio esta ampliação da oferta de alimentos não vai ser possível.
Quarto: a agricultura familiar não tem como responder (no curto prazo) ao aumento da demanda de alimentos que uma política consequente de nutrição vai acarretar. Ela terá uma contribuição a dar, mas não será suficiente, a não ser que o governo acelerasse muito a reforma agrária. Quinto: vai ser preciso uma política de educação alimentar maciça combinada com o aumento da oferta de alimentos para uma dieta correta, ou o povo vai continuar se alimentando de ultraprocessados. Sexto: apesar de não ser possível, no prazo curto, oferecer “alimentos saudáveis no campo e na cidade” através da conversão para a agroecologia, é possível estimular o aumento de produção com o uso de técnicas menos agressivas ao consumidor e ao meio ambiente.
Finalmente, temos que discutir o impacto da crise climática no Rio Grande do Sul na oferta de alimentos básicos para todo o Brasil.
3.
Com a comoditização da agricultura brasileira e a sua integração nos mercados globais, a produção de alimentos no país não só vem caindo como vem se concentrando em determinados territórios e produtores. O caso mais dramático é o do arroz.
O Rio Grande do Sul concentra algo entre 70 e 80% da oferta de arroz no Brasil. Mais ainda, esta produção está concentrada em um número limitado de municípios, envolvendo produtores de porte médio e grande, com uma parte menor sob a responsabilidade de agricultores familiares. O arroz já foi uma cultura espalhada por todo o país, mas a produção capitalizada, empregando o uso de agroquímicos, sementes melhoradas por empresas (hoje centrada nas privadas) e maquinário foi concentrando a oferta na área hoje alagada pelas chuvas torrenciais das últimas semanas. E hoje em dia esta produção também está cada vez mais articulada com o mercado internacional, com volumes crescentes sendo exportados.
O preço desta concentração está sendo cobrado agora, com a perda de (segundo empresas do mercado) 11% da safra. Este número deve estar bem subestimado, já que informações dos produtores indicam que 20% da safra ainda não tinha sido colhida e deve ser perdida na sua quase totalidade. Por outro lado, o arroz estocado nas propriedades pode ter sido afetado pelas inundações e isto ainda não foi avaliado.
Em situações normais, governos e produtores fazem estoques de segurança para eventuais crises. Nos países desenvolvidos esses estoques respondem pelo consumo de dois a três meses ou 16 a 25% da produção. Mas os estoques de arroz da CONAB estão zerados desde o governo de Michel Temer e não foram recompostos no ano passado, primeiro ano do governo Lula. Aliás, não foram apenas os estoques de arroz que estavam e estão zerados.
Por que será que o governo deixou esta política de lado? Em primeiro lugar porque os preços do arroz estavam aquecidos e o governo preferiu deixar para recompor o estoque com os preços na baixa. É um raciocínio voltado para um conceito diferente, o da regulação do mercado e não o da segurança do consumidor. Ao usar o conceito de regulação, faz sentido o adiamento das compras para recomposição do estoque, compra-se na baixa de preços para sustentá-los, beneficiando os produtores, e vende-se na alta de preços, para beneficiar os consumidores, estabilizando o mercado. Mas regulação não é a mesma coisa que segurança, como o desastre do Rio Grande do Sul demonstra.
O governo preferiu adiar o gasto na reposição dos estoques, o que exigiria a importação de arroz, fortemente combatida pelo agronegócio, pelo seu efeito inevitável de segurar os preços. Não tenho dúvida que o agronegócio rizicultor vai se opor à decisão de importar um milhão de toneladas, anunciada hoje por Lula. períodos de carência de oferta, como o atual, são uma ótima oportunidade de lucro para quem tem arroz para vender. E se as perdas estimadas estiverem subavaliadas, a importação talvez tenha que ser o dobro da anunciada.
Finalmente, é preciso pensar no médio e longo prazo. A crise climática, negada sempre pelo agronegócio e seus representantes no Congresso, em governos estaduais (inclusive o do Rio Grande do Sul), assembleias legislativas e prefeituras, veio para ficar. Não só isso, mas a tendência de eventos climáticos extremos está anunciada pelo IPCC há décadas. Uma rápida olhada nas notícias internacionais comprova a globalização da crise climática, com chuvas torrenciais ocorrendo na Ásia, enquanto na África é a seca que vem afetando a produção em vários países.
O clima faz estragos espantosos, mas não é uma fatalidade. A instabilidade climática tem origem no aquecimento global e os grandes emissores de gases de efeito estufa são os combustíveis fósseis, o desmatamento e queimadas e as emissões da agricultura empresarial. Não é um privilégio deste governo a proposta de aumentar a extração e o consumo de derivados do petróleo, mas estamos entre os maiores emissores de GEE por desmatamento (que diminuiu ano passado na Amazônia, mas aumentou muito no Cerrado) e, sobretudo, pelas queimadas, que bateram recordes em todos os biomas. Controlar as emissões de GEE é um imperativo para enfrentar a instabilidade climática e temos que cumprir a nossa parte no esforço mundial pela sobrevivência do planeta.
Finalmente, as inundações do Rio Grande do Sul não se deveram apenas às chuvas torrenciais, mas também a ações do agronegócio gaúcho e do seu governo, alterando normas e leis ambientais do Estado para eliminar as matas ciliares que poderiam ter tido um papel de tampão natural para as inundações, pelo menos em parte. O mesmo se pode dizer do desleixo do governo gaúcho com o sistema de controle de enchentes já implantado no Estado há décadas e um dos mais bem concebidos do mundo. Comportas, barreiras e diques ficaram sem manutenção e desabaram com a pressão das águas.
*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
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