Sistema alimentar

Imagem: Emre Can Acer
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Por RICARDO ABRAMOVAY*

O fim do desmatamento é apenas o ponto de partida para a redução das emissões agroalimentares

O sistema que nos alimenta está também alimentando a crise climática global. A frase inicial do excelente relatório que o Banco Mundial acaba de lançar (Recipe for a Liveable Planet) reflete um avanço científico que marca cada vez mais a abordagem dos problemas contemporâneos pelas organizações multilaterais.

Muito mais que estudar o setor agropecuário, a indústria de máquinas e insumos, a transformação industrial e o consumo, o trabalho do Banco Mundial faz uma apreciação valorativa, um julgamento de natureza ético-normativa sobre a maneira como a humanidade está usando os recursos materiais, energéticos e bióticos para preencher suas necessidades alimentares. Este é o sentido e a ambição embutida no uso da expressão “sistema agroalimentar”, ao longo do texto.

Logo em sua introdução o trabalho reconhece que o “sistema alimentar mundial teve sucesso em alimentar uma população crescente”, mas acrescenta, a seguir, que ele “não conseguiu promover objetivos ótimos no que se refere à nutrição e à saúde”. A atenção com a oferta de calorias e proteínas fez-se em detrimento da produção de alimentos saudáveis. As consequências sobre a saúde humana exprimem-se no fato de que, no século XXI, seis dos dez mais importantes determinantes de morte e doença estão ligados à alimentação.

Na origem destes produtos estão práticas produtivas cujos custos ecossistêmicos (estimados em US$ 20 trilhões, no relatório), caso incorporados ao sistema de preços, superariam de longe o próprio valor da alimentação global. Em outras palavras, o mundo está destruindo serviços ecossistêmicos dos quais depende a própria vida para obter um conjunto de bens que, cada vez mais, são vetores das doenças que mais matam na atualidade.

O trabalho do Banco Mundial parte da diferença, no interior do sistema agroalimentar, entre países de renda alta, de renda média e os de renda baixa. Dos dez países com as maiores emissões agroalimentares, sete são de renda média (China, Brasil, Índia, Indonésia, Rússia, Paquistão e Argentina), dois de alta renda (EUA e Canadá) e um de baixa renda (Congo). A maior parte das emissões do sistema agroalimentar vem dos países de renda média (68% do total). Os países de alta renda respondem por 21% das emissões agroalimentares, mas são os maiores emissores per capita. E os de baixa renda contribuem com apenas 11% do total, mas são aqueles em que as emissões mais crescem.

Por volta de 82% das emissões dos países de baixa renda vêm do sistema agroalimentar. Metade deste total se origina na destruição florestal. Nos países de renda média o desmatamento entra com 17% das emissões agroalimentares. China e Índia quase não têm emissões vindas de desmatamento. As exceções, nos países de renda média, são Brasil e Indonésia que, ao início da terceira década do milênio tinham no desmatamento mais de 50% de suas emissões totais, padrão semelhante aos países de baixa renda.

Na Indonésia, o desmatamento caiu drasticamente. No balanço entre a recente redução da devastação na Amazônia, contrabalançada pelo aumento da destruição do Cerrado, ainda não é possível saber se permanece este padrão em que o Brasil se tornou o único, entre os países de renda média, em que metade das emissões vem de desmatamento.

O desmatamento sozinho corresponde a 11% das emissões globais. 90% da terra anteriormente florestada converte-se em lavouras ou pastagens. Entre um quarto e um terço deste desmatamento liga-se a apenas sete atividades: gado, óleo de palma, soja, cacau, borracha, café e plantios madeireiros. Se o grande desafio do sistema agroalimentar fosse a produção crescente de calorias e proteínas, talvez este desmatamento fosse incontornável.

Não sendo este o caso, o desmatamento zero é condição necessária e oportunidade inigualável para um sistema agroalimentar que reduza suas emissões e contribua para regenerar a biodiversidade. Segundo o Banco Mundial um terço das oportunidades para reduzir as emissões do setor agroalimentar concentra-se em proteção, manejo e regeneração florestal. E não há país, com mais favoráveis condições para aproveitar esta oportunidade que o Brasil, segundo o Banco Mundial.

Mas o fim do desmatamento é apenas o ponto de partida para a redução das emissões agroalimentares. Uma das revelações mais importantes do relatório do Banco Mundial é o crescimento das emissões alimentares geradas fora da atividade especificamente agropecuária. Fertilizantes químicos, uso de combustíveis fósseis em máquinas agrícolas, mas também industrialização, transportes e energia usada para cozinhar dobraram suas emissões nos últimos trinta anos.

O peso das emissões alimentares não agrícolas já supera globalmente o das emissões da agricultura. Quando o Brasil zerar o desmatamento este será um importante desafio, como já o é para a China. E é bom lembrar que parte crescente desta industrialização alimentar se converte em produtos ultraprocessados, vetores da pandemia global de obesidade.

Outro desafio fundamental está nas emissões vinculadas ao consumo de carne bovina e de leite, que representam um quarto das emissões do setor agroalimentar e recebem um terço dos subsídios agrícolas globais. Boa parte do mundo (inclusive nos países de renda média) tem um consumo de carne bovina que vai além do necessário à saúde humana.

A presidência brasileira do G20 colocou a luta contra as desigualdades e contra a fome (junto com o combate à crise climática e a reforma da governança global) como seus objetivos centrais. O trabalho do Banco Mundial mostra que atingir estas finalidades não supõe apenas ampliar a produção de alimentos.

É no Brasil que o setor agroalimentar reúne as melhores condições para oferecer à sociedade produtos que beneficiem a saúde e contribuam para o fortalecimento dos serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos. É em torno deste desafio que se reúnem on line, em 12 de junho, um grupo de especialistas brasileiros e internacionais no âmbito do G20 [Inscrições: aqui].

*Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. Autor, entre outros livros, de Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável (Elefante). [https://amzn.to/3QcqWM3]

Publicado originalmente no jornal Valor econômico.


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