O construtivismo relacional chinês

Shanghai, China. Imagem de Vineet Pal
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Por JOYCE CIPRIANO VICTURINO*

A dinâmica da geopolítica mundial está em constante mutação e evolução, e os eventos que levam a China a se afirmar cada vez mais na liderança mundial nos revelam muito sobre essa mudança

A teoria Construtivista das Relações Internacionais, como parte integrante das teorias contemporâneas da área, contesta primariamente o paradigma Realista dominante nos estudos de Relações Internacionais, bem como sua perspectiva de imutabilidade da condição anárquica do sistema internacional e a primazia epistêmica dispensada à dicotomia essencial de guerra versus paz.

Além dessas críticas, a teoria construtivista oferece uma mudança de parâmetros ao colocar as relações como unidade básica da análise, inaugurando um novo campo metateórico que nega a antecedência ontológica de qualquer um dos atores do sistema internacional, argumentando que todos se implicam, criam e influenciam de maneira mútua e concomitante, repensando assim, a própria produção do conhecimento internacionalista.

O estabelecimento dessa relação dialética expande nosso horizonte de observação e nos faz perceber o comportamento dos Estados para além do cálculo custo-benefício, incorporando o fator espaço-tempo à análise e nos mostrando que os interesses nacionais não são dados, mas se modificam para se adaptarem às novas condições do sistema internacional.

Apoiado nessa teoria, o cientista político e teórico chinês, Qin Yaqing, constrói sua própria vertente construtivista, baseando-se no conceito de sociedade internacional ou sociedade de Estados, proveniente da Escola inglesa. Contudo, ao entender as práticas dessa sociedade a partir do ponto de vista chinês, acaba por diferenciar sua teoria da própria escola inglesa e da visão ocidental. A essa teoria construtivista com características chinesas o autor dá o nome de Teoria Relacional, Teoria Integrativa ou Teoria Interativa.

O entendimento chinês sobre a interatividade dos Estados dentro da sociedade internacional é definido como um processo em constante movimento, uma construção. Inspirado na ideia de complementaridade da filosofia confuciana, que parte do pressuposto da harmonia intrínseca à todas as coisas, e no ying-yang, onde os opostos vivem em equilíbrio e dão condições de vida um ao outro, o construtivismo de Qin Yaqing estabelece o caráter integrativo e relacional das interações dentro da sociedade de Estados.

Ou seja, a síntese da relação entre os opostos não seria o resultado da contraposição de uma tese e de uma antítese, que culmina na homogeneização através da eliminação ou absorção do outro, conforme o pensamento ocidental; mas sim, seria o resultado da criação de um ambiente não excludente, que agrega um pouco de todas as partes e incrementa a existência de todos, visto que só é possível existir em relação ao outro. Assim, podemos observar como as relações dos atores são definidas e alteradas pelo contexto em um cenário de conexões complexas, contrapondo à tendência ocidental que busca definir a sociedade internacional como uma entidade homogênea e universal.

A visão chinesa combina múltiplas entidades e identidades em uma rede comunicativa, que busca adaptar-se aos desafios e as oportunidades do mundo moderno, conferindo maior possibilidade de diálogo ao complexo xadrez geopolítico.

O construtivismo oferece uma perspectiva distinta das teorias clássicas para entendermos as Relações Internacionais e, ainda mais em sua vertente chinesa, para entendermos a esfera contratual da Nova Rota da Seda, pois se concentra em como as estruturas sociais e as interações moldam os interesses e ações dos Estados. Este método nos permite também, examinar não apenas os objetivos concretos da iniciativa, mas também como ela reflete e busca remodelar normas, valores e percepções a nível mundial.

A nova rota da seda em construção

A Belt and Road Initiative (BRI), Iniciativa Cinturão e Rota, ou Nova Rota da Seda, é uma das mais ambiciosas iniciativas de desenvolvimento e integração econômica do século XXI. Lançada pela China em 2013, a Belt and Road Initiative se estende por continentes e envolve uma extensa rede de projetos de infraestrutura e investimentos em mais de 60 países, com o objetivo inicial de recriar as antigas rotas comerciais da tradicional Rota da Seda, contudo, os substanciais investimentos chineses para a sua concepção e as promessas de desenvolvimento local após a sua consolidação, aguçaram o interesse de vários outros países fora do eixo Euro-Afro-Asiático, o que maximizou seu alcance para além das antigas rotas e estendeu seus empreendimentos inclusive para na América Latina.

Considerando a Belt and Road Initiative uma iniciativa de grande esforço para redefinir as interações econômicas e geopolíticas nesse século, a China posiciona o projeto como um modelo inovador de cooperação internacional por seus objetivos de desenvolvimento e conectividade infraestrutural, feito por meio de “seis corredores, seis rotas”, que criam uma rede multidimensional de diversos níveis, com a construção de ferrovias, rodovias, portos marítimos e redes de comunicação digital, com a instalação de redes 5G; integração e crescimento econômico sustentável, com potencial para criar novas oportunidades e fortalecer os laços entre as nações ao considerar as disparidades de desenvolvimento de cada uma delas, além de promover a cooperação econômica regional e transcender ideologias e fronteiras geográficas, através do intercâmbio cultural e da livre circulação de pessoas, bens e capital.

Ao analisarmos os relatórios chineses publicados a partir de 2012 e endossados tanto pelo ex- secretário-geral do Partido Comunista da China, Hu Jintao, como pelo atual secretário-geral, Xi Jinping, em seus discursos, podemos, enfim, compreender e resumir os objetivos acima em um único e específico: Formar uma “comunidade global de futuro compartilhado”, baseada em valores como mutualismo, inclusão e benefícios partilhados, buscando construir um futuro mais interconectado e próspero para todos.

A força das relações em rota

Ao pensarmos a viabilização de um projeto dessa magnitude, em termos contratuais, prontamente supomos a elaboração de contratos extensos e intrincados; com cláusulas definitivas que determinam distintamente deveres de fazer e de não fazer, condições rígidas para concessão de empréstimos para fomento dos empreendimentos, bem como prazos, metas e valores para liquidação deles; além da previsão de sanções a ambas as partes em caso de descumprimento ou quebra de quaisquer dos termos do acordo. Porém, utilizando os contratos de maneira diversa aos modelos usualmente utilizados pelos países dentro do sistema internacional, está a China.

A exigência da assinatura de um simples Memorando de Entendimento bilateral para a entrada na Nova Rota da Seda desafia os parâmetros pré-concebidos dos acordos internacionais, que frequentemente impõem condições uniformes, sem levar em consideração as particularidades locais, e enseja a modificação da ordem econômica neoliberal a partir da perspectiva construtivista relacional de Qin Yaqing.

A elaboração deste memorando de entrada, dotado de pouquíssimos parágrafos, (apenas seis), e com cláusulas de teor abrangente voltadas, quase que em sua completude, para a integração e cooperação, (a palavra cooperação aparece 41 vezes em um documento de apenas nove páginas), em muito converge com a perspectiva construtivista chinesa e com a visão de governança global de Qin Yaqing, que considera de suma importância a construção de uma relação de confiança entre as partes, não sendo necessário, portanto, o estabelecimento de regras e normas rígidas que, de forma ordinária, tem como foco controlar o comportamento individual dos atores (Estados), que, em contrapartida, aderem a essas regras conforme os seus interesses.

A governança global sob a ótica construtivista-relacional enxerga as regras, normas, e a própria formação das instituições como o resultado de processos que estão em constante movimento e de diretrizes que são ininterruptamente definidas e redefinidas de acordo com as relações que os atores constroem reciprocamente, trocando a lógica do controle pela lógica da negociação.

Partindo dessa premissa, podemos compreender outra das principais características dos acordos e contratos da Belt and Road Initiative, sua abordagem flexível. A defesa de memorandos de entendimento adaptáveis, permite ajustes conforme as condições nacionais e suas necessidades particulares, sendo esse processo essencial para acomodar a diversidade política, econômica e jurídica dos países envolvidos. As relações constroem o comportamento dos atores dentro do acordo (atores em movimento) e os atores constituem os processos e estabelecem regras entre si (relações em movimento). Essa flexibilidade mostra uma compreensão pragmática da geopolítica e da economia, ao enxergar situações de conflito não como determinantes, mas com oposições transitórias resolvidas através da interação entre as partes, facilitando a cooperação e a execução de projetos em um mundo multiforme.

A iniciativa é uma alternativa proposta para substituir o desenvolvimento individual e competitivo que o ocidente incita; há muito a se ganhar buscando um desenvolvimento integrado com outros países, numa mentalidade de benefício mútuo e bem comum. A Belt and Road Initiative é, na prática, o que a teoria construtivista de Qin propõe como alternativa à abordagem ocidental, ao propor integração e intercâmbio em um conjunto variado de agendas. Paz, prosperidade, abertura, inovação e progresso social são áreas contornadas na elaboração do documento, e nessas agendas, a formulação do policy making é uma carta aberta, onde todos os países membros são convidados a participar.

A concepção de normas e regras é demarcada, nesse documento recente, como uma atividade conjunta dos países com a China, fator que gera grandes críticas à Belt and Road Initiative, e é uma atividade que está, também, em processamento contínuo. Todas essas criações de normas, regras e procedimentos são feitas através de acordos bilaterais, reforçando mais uma vez a característica construtivista de atuação dos atores de forma relacional.

Também em processo contínuo está a construção dos corredores econômicos que traçam a Belt and Road Initiative e a estrutura necessária para sustentá-los. Sua função e finalidade estão em acordo com a natureza das relações entre os países contemplados nestes respectivos corredores. Palavras como facilitação e “não impedimento” surgem apontando para característica construtivista chinesa de não exclusão de diferentes ou antagônicos. Por fim, o documento posiciona em várias oportunidades, a integração e cooperação como fundamentais para a paz e o bem estar das civilizações, onde desenvolvimento, prosperidade econômica, erradicação da pobreza, entre outros, são colocados como objetivos globais e não como objetivos de apenas alguns.

Ao analisarmos todas essas características evidencia-se o profundo alinhamento existente entre a abordagem proposta pela Belt and Road Initiative e as características teorizadas por Qin Yaqing em seu construtivismo chinês.

Futuro compartilhado ou projeto imperialista?

A Nova Rota da Seda é o empreendimento mais profundamente ligado a ideia chinesa de “comunidade global de futuro compartilhado”, conceito que, para muitos autores, resume a essência da civilização chinesa e visa valorizar, através das relações diplomáticas, as realizações extraordinárias de todas as civilizações, cristalizando valores compartilhados por todos, apesar de partirem de diferentes regiões com culturas e crenças diversas. Porém, quando o conceito e o pensamento filosófico se materializam em ações práticas, principalmente no âmbito econômico, com a China fazendo investimentos milionários em países extremamente pobres, outros aspectos geopolíticos começam a ser observados e questionados pela comunidade internacional.

Preliminarmente, é preciso compreender que dois terços do comércio mundial têm a China como principal parceiro, segundo pesquisa do Banco Mundial. Adicionalmente a isso, a China é um dos maiores fornecedores de empréstimos do mundo, tendo ultrapassado a cifra do trilhão de dólares em 2020 segundo o Instituto de Pesquisa AidData. O Banco Mundial também estima que a nova Rota da Seda representará uma redução acentuada nos custos do comércio internacional e, para além dos indicadores econômicos, a concretização da iniciativa estenderá a influência de Beijing por quase todo o globo.É nesse panorama que vemos a instauração de discussões sobre as verdadeiras intenções chinesas, que questionam se sua busca é verdadeiramente por parcerias comerciais e crescimento compartilhado ou se o país estaria utilizando a iniciativa como estratégia de dominação pelo endividamento dos países.

Durante a Guerra Fria as dimensões ideológica e securitária foram amplamente enfatizadas pelos Estados Unidos da América, principal representante do capitalismo e do neoliberalismo no mundo, e essas ideologias se disseminaram rapidamente pelo globo, incentivadas pelo “fim da história”, com a queda do socialismo nos países do Leste Europeu, dando razões ainda mais contundentes aos defensores do neoliberalismo para colocá-lo como única via possível para promoção do desenvolvimento.

Os empréstimos concedidos aos países por instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, eram aprovados se cumpridas certas condições ou “requisitos de ajuste estrutural”, que incluíam programas de austeridade, envolvendo cortes nos gastos do governo, cortes em programas sociais e redução do tamanho da máquina pública; desregulamentações governamentais sobre a economia, facilitando a entrada de empresas estrangeiras e promovendo a livre competição; privatizações respaldadas pelo argumento de aumento da eficiência e competitividade; abertura da economia ao comércio internacional, reduzindo tarifas e barreiras comerciais, permitindo também a entrada e saída de investimentos estrangeiros mais livremente e a adesão de uma política monetária restritiva para controle da inflação, com o aumento das taxas de juros, por exemplo.

Todas essas políticas implantadas sem ter em conta as particularidades, principalmente dos países mais pobres, como propõe a teoria relacional de Qin, exacerbou os problemas existentes e criou novos desafios, como a dependência econômica, instabilidade social, econômica e política, e o aumento do desemprego e da pobreza, principalmente após o choque do petróleo. O sistema neoliberal ainda permaneceu mostrando sua vulnerabilidade ao sofrer sucessivas crises após essa, deixando os países mais pobres sem qualquer margem de manobra. Além disso, outros alinhamentos na linha ideológica se mostravam necessários apesar de não serem exigências concretas, como o país ter um governo republicano democrático, respeitar as liberdades individuais e estar alinhado com práticas de direitos humanos.

É nessa lacuna do enfraquecimento dos mecanismos de cooperação multilateral e da incapacidade relativa dos Estados Unidos em fornecer soluções para demandas locais, que a China se coloca como alternativa capaz de prover a demanda, tanto por mercados de matérias-primas, quanto por investimentos em infraestrutura, contribuindo para a superação de um gargalo histórico que se coloca desde a Guerra Fria, não cobrando dos países que queiram a parceria nenhum tipo de ajuste econômico-estrutural, mudança na forma de governo, execução de qualquer giro político-ideológico, ou o alinhamento automático a sua ideologia comunista, privilegiando o âmbito econômico das relações através dos contratos bilaterais que podem ser renegociados de acordo com tempo, com os acontecimentos, e com as vontades de ambas as partes, alinhando suas práticas comerciais a teoria integrativa desenvolvida por Qin.

Exatamente por seu caráter flexível e sem muitas exigências, os contratos da Belt and Road Initiative são duramente criticados por analistas internacionais que alegam que empréstimos tão substanciais feitos a países com situações financeiras tão dramáticas, se tornarão impagáveis, fazendo com que os países caiam na chamada “armadilha da dívida”, conceito descrito pelo geoestrategista, colunista e autor indiano Brahma Chellaney, que descreve como tais débitos tornarão esses países vulneráveis às exigências de Pequim, visto que, na impossibilidade de pagar suas dívidas, terão que ceder à China o controle de ativos-chave ou a gestão de projetos sob seu financiamento, fazendo com que o país credor absorva uma gigantesca rede de infraestrutura espalhada por todo o mundo, levando a cabo suas pretensões imperialistas.

Tais suposições são embasadas, em grande medida, nas cláusulas de confidencialidade dos contratos chineses, que os tornam não publicáveis, mas sigilosos entre as partes contratantes, o que, para os países ocidentais, de imediato, inviabiliza a análise detalhada de sua espécie, levantando dúvidas sobre a sua legalidade, veracidade e transparência, mas que, para a China, garante a segurança das partes e o caráter reajustável dos contratos.

A contradição no caso concreto

Quanto a armadilha da dívida, analistas críticos a China citam o exemplo do Sri Lanka, pequeno país insular, que após adquirir empréstimos entre os anos de 2007, antes do lançamento da BRI, e 2014, no montante de mais de US$ 1,5 bilhão, utilizado para a construção de um porto na cidade de Hambantota, cedeu uma participação de controle de 70% do empreendimento à estatal chinesa China Merchants, em um arrendamento de 99 anos em troca de uma redução signativa da dívida além de novos investimentos chineses.

À época, se apossando politicamente do conceito de “armadilha da dívida”, o então secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, em visita ao Sri Lanka em 2020, acusou a China de estar agindo ilegalmente, violando a soberania do país, e declarou ainda que “os Estados Unidos agem diferente, como um amigo e parceiro, promovendo a liberdade, a independência e o apoio ao desenvolvimento sustentável do Sri Lanka”. A China respondeu que não comentaria as falas, pois estava ocupada promovendo a amizade, o relacionamento e a cooperação China-Sri Lanka e o Sri Lanka, por sua vez, se manifestou dizendo não ser estranho aos jogos geopolíticos e ratificando sua política de não alinhamento.

Três anos depois, os dois países divulgaram uma declaração conjunta concordando em assinar o Memorando de Entendimento, com o Sri Lanka reiterando a parceria integral com a China, que, em contrapartida, confirmou a disposição de chegar a um acordo para tratamento da dívida, bem como a disposição de continuar a investir no desenvolvimento sustentável do país.

Análises conflitantes da situação interna do Sri Lanka, também fomentam a desconfiança dos países. Há verificações em que as dívidas de mercado, somadas às do Banco Mundial, representam metade da dívida do país, além de representarem valores totais mais elevados por serem indexadas em euro, ou em dólar, não sendo a China seu maior credor nessas condições. Já outras análises, dão conta de que a dívida bilateral do país com a China chega a 51% do seu montante total, tornando a China seu maior credor. Essa incongruência é muitas vezes gerada pela incomunicabilidade de alguns contratos firmados entre os países, o que dificulta a averiguação exata dos valores emprestados.

Apesar do desencontro de informações e da consumação da cessão do porto à estatal chinesa, outros fatores indicam que a “armadilha da dívida” pode ser uma falácia utilizada pelo ocidente para evocar novamente dimensões político-ideológicas na recriação do mundo bipolar.

Após a análise de viabilidade do porto em Hambantota, realizada pelo Canadá, o projeto para a sua construção foi oferecido a diversos países, como o próprio Canadá, Estados Unidos e Índia, que o recusaram. Sendo a China a única interessada, as obras foram iniciadas. Finalizado, o desempenho do empreendimento ficou muito aquém do projetado, se tornando um “elefante branco” e gerando enormes prejuízos à pequena nação, sendo recomendado seu arrendamento, também pelo Canadá, para mitigação dos custos.

A administração do porto foi novamente ofertada a diversos países, sendo as duas únicas ofertas, também vindas da China, através das empresas China Merchants e da China Harbour. O Sri Lanka escolheu a primeira, que se tornou acionista majoritária, e utilizou a remessa de US$1,12 bilhão para reforçar suas reservas de dólares, não para pagar o financiador chinês.

Outra característica, apontada pelo presidente do Sri Lanka e negociador do acordo de cessão, Maithripala Sirisena, é que não houve inadimplência, mas sim a negociação entre as partes, para que o arrendamento abarcasse também a redução da dívida, evocando a essência relacional dos contratos.

Ademais, as empresas chinesas não são as únicas a se beneficiarem do projeto. A Índia juntou-se ao Reino Unido, por meio de empresas de engenharia, para escrever um projeto de longo prazo para o Porto em Hambantota, além do desenvolvimento de uma nova zona de negócios. Empresas francesas firmaram parceria com a China Merchants e a China Harbour para o desenvolvimento de portos na Nigéria, Camarões e outros países da África, nos mostrando como projetos da BRI podem agregar inúmeros atores estatais e não estatais em torno de objetivos compartilhados.

Saindo do Sri Lanka e partindo para uma análise em maior escala, estatísticas do Banco Mundial e do FMI mostram que quase três quartos da dívida externa total da África está contida em instituições financeiras multilaterais e credores comerciais, ou seja, os empréstimos ainda são realizados dentro da estrutura neoliberal, enquanto, em contrapartida, a China perdoou pelo menos 3, 4 bilhões em dívidas de países africanos até 2019, sendo a Zâmbia a maior beneficiada durante esse período.

A China confirmou que continuará a apoiar os países da África na melhora de suas condições de infraestrutura por meio de projetos de financiamento, investimento e assistência, reforçando mais uma vez o valor das relações e seu empenho em alcançar a “comunidade global de futuro compartilhado”.

Redefinições geopolíticas em movimento

A dinâmica da geopolítica mundial está em constante mutação e evolução, e os eventos que levam a China a se afirmar cada vez mais na liderança mundial nos revelam muito sobre essa mudança. Ela e outros países têm se tornando cada vez mais sofisticados nas negociações entre si, além de mais independentes no cenário internacional com a China demonstrando ser uma superpotência que “entende” o mundo em desenvolvimento.

A abordagem construtivista de Qin Yaqing nos fornece o aparato para compreender a natureza flexível da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), destacando em termos teóricos, como as ideias, normas e identidades moldam a formação das políticas internacionais, as decisões e estratégias dos atores envolvidos na Belt and Road Initiative.

Qin Yaqing argumenta que a Belt and Road Initiative não é apenas um projeto econômico, mas também um projeto de construção de identidade e poder, onde Estados e atores não estatais buscam afirmar sua posição e influência no cenário global não apenas motivados por interesses materiais, sugerindo que as políticas globais não são meramente ditadas pela lógica do mercado, mas também são influenciadas por narrativas, percepções e valores compartilhados.

Nesse cenário a flexibilidade dos contratos da Belt and Road Initiative pode ser compreendida como uma resposta às dinâmicas relacionais, refletindo a capacidade dos atores envolvidos de se adaptar e negociar diferentes interesses e valores, em contraste as práticas neoliberais que tendem a simplificar as relações internacionais, enfatizando a primazia do mercado e a racionalidade dos atores individuais.

Essa compreensão mais ampla das relações internacionais tem implicações importantes para a prática da política global, assumindo que essa não é ou está necessariamente pré-determinada, mas pode ser moldada e transformada por meio de esforços de diplomacia pública, construção de coalizões e formação de consenso através do diálogo aberto e ativo.

*Joyce Cipriano Victurino é graduanda em Ciência e Humanidades e Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

Referências


QIN, Yaqing. International Society as a Process: Institutions, Identities, and China’s Peaceful Rise. The Chinese Journal of International Politics, Vol. 3, 2010.

QIN, Yaqing. International Society as a Process: Institutions, Identities, and China’s Peaceful Rise. The Chinese Journal of International Politics, Vol. 3, 2010.

THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA; The State Council Information Office. The Belt and Road Initiative: A Key Pillar of the Global Community of Shared Future. Disponível em: https://english.www.gov.cn/archive/whitepaper/202310/10/content_WS6524b55fc6d0868f4e8e014c.html

FARINHAS, Giselle. Análise da nova rota da seda chinesa – One belt and road initiative. Migalhas, 06 set. 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/351165/analise-da-nova-rota-da-seda-chinesa–one-belt-and-road-initiative

WU, Lunting. China’s Transition From the Belt and Road to the Global Development Initiative. The Diplomat, 11 jul. 2023. Disponível em: <https://thediplomat.com/2023/07/chinas-switch-from-the-belt-and-road-to-the-global-development-initiative/

Memorando de Entendimento entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Popular da China sobre Cooperação no Âmbito da Iniciativa da Faixa Econômica da Rota da Seda e da Rota Marítima da Seda do Século XXI. Obtido em: https://www.gpp.pt/images/gam/bilateral/CHN_MdE_FaixaRotaSeda.pdf

BRAUTIGAM, D.; RITHMIRE, M. A ‘armadilha da dívida’ chinesa é um mito. Traduzindo, 9 fev. 2021. Disponível em: <https://traduagindo.com/2021/02/09/a-armadilha-da-divida-chinesa-e-um-mito/

Os pagamentos do serviço da dívida vem exercendo enorme pressão sobre os países pobres desde 2000. Obtido em https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2022/12/06/debt-service-payments-put-biggest-squeeze-on-poor-countries-since-2000

Conjunto de dados globais de financiamento do desenvolvimento chinês, versão 3.0. Obtido em: https://www.aiddata.org/data/aiddatas-global-chinese-development-finance-dataset-version-3-0

How China Lends A Rare Look into 100 Debt Contracts with Foreign Governments. Obtido em: https://pdf.usaid.gov/pdf_docs/PA00XF2H.pdf


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