Leon Trótski e a literatura

Oltsen Gripshi, Kurban MCMXCVII, 2015
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Por MICHEL GOULART DA SILVA*

Trótski afirmava que a política dos primeiros anos após a revolução apontava para a necessidade de conceder aos artistas “completa liberdade de autodeterminação no domínio da arte

Em julho de 1924, Leon Trótski lançou um de seus livros mais lidos e conhecidos, chamado Literatura e revolução. Escrito durante os últimos anos de vida de Vladímir Lênin e publicado pouco após a sua morte, a obra era parte do combate trotskista contra o crescente domínio de Joseph Stálin e de seus aliados sobre o aparato do partido.

Entre outras discussões apresentadas no livro, Leon Trótski critica a ingerência do partido sobre as questões artísticas e que cabe ao Estado soviético apoiar quaisquer manifestações artísticas que não se coloquem abertamente como hostis ao poder do proletariado então em construção. Por outro lado, Leon Trótski combate como a ideia de “cultura proletária” e faz críticas aos elementos ainda embrionários do que posteriormente foi sistematizado como “realismo socialista”.

Da revolução na arte ao “realismo socialista”

Leon Trótski afirmava que a política dos primeiros anos depois da revolução apontava para a necessidade de conceder aos artistas “completa liberdade de autodeterminação no domínio da arte, após colocá-los sob o crivo categórico: a favor ou contra a revolução”.[i] Em 1917, a Revolução Russa havia derrubado o poder dos czares, derrotado a débil burguesia do país e levado operários e camponeses ao poder, transformando a realidade econômica, social e política do país.

Esse processo provocou grandes mudanças também nas artes. Nas artes plásticas, na literatura e no cinema floresceram variadas e divergentes expressões estéticas. Nos primeiros anos o poder dos sovietes garantiu à arte condições materiais e liberdade para o fortalecimento de novas expressões artísticas. Isso era garantido pelo Comissariado Popular de Educação (Narkomprost), que elaborava políticas para educação e cultura, sob responsabilidade de Anatoli Lunatcharsky.

Ele afirmava sobre esse órgão: “deve ser imparcial no que respeita às orientações particulares da vida artística. No que se refere às formas, o gosto do comissário do povo e de todos os representantes do regime não deve ser tomado em consideração. Há que facilitar o livre desenvolvimento de todos os indivíduos e grupos artísticos. Não se deve permitir que uma tendência artística elimine a outra valendo-se quer da glória tradicional adquirida, quer da moda”.[ii]

Essa liberdade garantida no campo artístico possibilitou o florescimento de várias organizações culturais autônomas e de uma série de editoras independentes, enquanto a postura do Narkomprost encorajava todas as formas de arte que não fossem abertamente hostis à revolução. O calor da insurreição de operários e camponeses havia contagiado a vida artística, abrindo novas perspectivas políticas e estéticas.Contudo, uma significativa parcela da intelectualidade recebeu com hostilidade a ascensão dos bolcheviques ao poder, muitos dos quais foram para o exílio.

Nesse cenário, uma parcela significativa de intelectuais e artistas apoiaram as medidas assumidas pelo governo soviético, destacando-se nomes como Wassily Kandisky, Maximo Gorki, Kazimir Malevich, Alexandre Blok, Marc Shagall, Victor Serge, Vladimir Maiakovski e Serguei Iessienin. Essa presença de escritores ligados às vanguardas europeias mostra o espaço para a liberdade artística e o incentivo às experimentações estéticas em curso nas primeiras décadas do século XX.

Contudo, também é nesse cenário em que se veio a se fortalecer aos poucos o embrião do que viria a ser o chamado “realismo socialista”. Em parte, sua história está ligada ao Movimento Cultura Proletária (Proletkult). Esse grupo tinha como perspectiva a formação de uma nova cultura a partir do contato com as ideias e sentimentos do proletariado. A ideia da “cultura proletária” tinha simpatia de Georgi Plekhanov e de importantes dirigentes bolcheviques e do governo, como Nikolai Bukharin e o próprio Lunatcharsky. No seu início, o Proletkult contava com a participação de artistas como Maiakovski, Vsevolod Meyerhold e Eisenstein, sob a direção teórica de Aleksandr Bogdánov.

Para Aleksandr Bogdánov, a arte deveria ser uma arma da classe operária contra a cultura burguesa, rejeitando completamente a arte produzida sob o capitalismo. Essas teses defendidas por Aleksandr Bogdánov faziam uma simplificação grosseira da compreensão da arte enquanto um dos pilares para a construção do socialismo, transformando-a em refém de interesses políticos e ideológicos mais estreitos.

Aleksandr Bogdánov afirmava que o proletariado tem a necessidade de uma “pura poesia de classe”.[iii] Nesse sentido, para Aleksandr Bogdánov, a formação de uma nova arte não seria a síntese de embates, discussões, convergências, enfim, das plurais experiências dos diferentes grupos então existentes. Aleksandr Bogdánov entendia que a arte produzida no socialismo seria a expressão mecânica de uma cultura específica de classe. Em contraposição, Leon Trótski afirmava: “Seria pueril pensar que cada classe por si mesma pode criar, completa e plenamente, sua própria arte; em particular que o proletariado seja capaz de elaborar uma nova arte por meio de círculos artísticos fechados”.[iv]

Na década de 1920, paulatinamente, o autoritarismo estatal e a ascensão de uma camada social burocrática ao poder levaram ao processo de consolidação do realismo como estética oficial imposta pelo Estado. Esse processo tem aspectos econômicos e políticos. Em 1928, em âmbito econômico, o governo stalinista executou para uma industrialização aventureira, colocando em segundo plano o interesse das classes trabalhadoras e a situação concreta da economia. Uma das razões da política de Stalin era a necessidade de responder ao crescente poder dos kulaks (camponeses ricos), que ocupavam lugar relevante na economia do país e exerciam influência em setores do partido e do poder estatal. O governo realizou a “coletivização forçada”, reprimindo os kulaks, antigos aliados da burocracia. Em âmbito político, foi derrotada a Oposição Unificada, da qual faziam parte Leon Trótski e outros dirigentes da revolução de 1917.

Esse cenário de repressão foi sentido também no campo artístico, na medida em que os setores ligados à burocracia aproveitaram o contexto para homogeneizar a vida artística. Uma das ações relacionadas a isso foi a demissão de Lunatcharsky do Narkomprost, em 1929. Zdhanov, pessoal de confiança de Stálin, passou a ser o porta-voz do governo no que se referia às artes.

Em 23 de abril de 1932, o Comitê Central do Partido tomou a decisão de dissolver todas as associações literárias e fundar a União dos Escritores Soviéticos. Pouco depois, em agosto de 1934, no Congresso dos Escritores Soviéticos, Zdhanov, se referindo aos escritores como “engenheiros das almas”, afirmava: “Ser um engenheiro das almas humanas significa ficar com os dois pés plantados na vida real. E isto por sua vez, indica uma ruptura com o romantismo de velho tipo, que retratava uma vida não-existente e heróis não-existentes, afastando o leitor dos antagonismos e opressão da vida real e o levando a um mundo do impossível, para um mundo de sonhos utópicos”.[v]

Essa literatura criticada por Zdhanov, deveria ser substituída por uma literatura na perspectiva do realismo socialista: “Dizemos que o realismo socialista é o método básico da belles lettres soviético e criticismo literário, e isso pressupõe que o romantismo revolucionário deva entrar na criação literária como uma parte componente, de toda a vida de nosso Partido, de toda a vida da classe operária e sua luta consiste em uma combinação do trabalho prático mais austero e sóbrio com o espírito superior de feitos heroicos e magníficas perspectivas futuras”.[vi]

Portanto, a literatura, ou mesmo a arte em geral, deveria expor os feitos de seus “heróis”, servindo como uma ferramenta direcionada pelas ações do Estado. Zdhanov afirmava: “A literatura soviética deve ser capaz de retratar nossos heróis; deve ser capaz em vislumbrar o nosso amanhã. Isso não será nenhum sonho utópico, pelo nosso amanhã já estar sendo preparado hoje pôr à custa de um trabalho planejado consciente”.[vii]

Na década de 1920, o incentivo aos influxos criativos proporcionado nos primeiros anos da Revolução Russa foi paulatinamente esmagado pela burocracia stalinista. Se os primeiros anos depois da revolução foram marcados pela política de liberdades e incentivos materiais às mais diversas correntes artísticas, sob o stalinismo a arte se viu tolhida pela imposição estatal da estética realista socialista e pela arte voltada a propagandear e enaltecer os líderes políticos e as ações da burocracia governante. Essas ideias foram combatidas por Leon Trótski ainda na época de fortalecimento da burocracia encabeçada por Stalin.

A literatura e a “arte da revolução”

O livro Literatura e revolução de Leon Trótski é uma obra riquíssima que apresenta os mais diversos temas relacionados a arte e cultura e sua relação com a revolução e a construção do socialismo. Nas primeiras partes do livro, Leon Trótski faz uma longa análise da literatura da Rússia e destaca em especial aos “amigos de viagem”, entendida como “arte de transição, que se liga mais ou menos organicamente à Revolução, embora não represente a arte da Revolução”.[viii] Leon Trótski discute autores diversos, como Aleksandr Blok, Serguei Iessienin e Vladimir Maiakovski, e grupos, como os formalistas, ao qual dedica um denso capítulo discutindo a visão marxista da arte, e os futuristas.

Em suas várias edições, nas diferentes línguas, pode-se encontrar diferentes textos, ainda que a estrutura principal de capítulos seja a mesma. Por exemplo, a edição em espanhol, publicada em dois tomos, contém textos como “A intelligentsia e o socialismo” e “Radio, ciência, técnica e sociedade”, que não estão na edição brasileira, por exemplo. Outro destaca é que se tornou bem comum que as diferentes tragam, no capítulo sobre o futurismo, como complemento, uma carta de Antonio Gramsci onde o marxista italiano comenta a manifestação dessa corrente na Itália.

Os capítulos seguintes trazem discussões sobre a arte e cultura na construção do socialismo, a relação com o partido e o papel dos revolucionários diante da arte. Leon Trótski parte da premissa de que a arte não é “[…] indiferente às convulsões da época atual. Os homens preparam os acontecimentos, realizam-nos, sofrem os efeitos e se modificam sob o impacto de suas reações. A arte, direta ou indiretamente, reflete a vida dos homens que fazem ou vivem os acontecimentos. Isso é verdadeiro para todas as artes, da mais monumental à mais íntima”.[ix]

Parte da discussão levantada por Leon Trótski tem relação com a crença de que o proletariado deveria criar sua própria cultura. Contudo, segundo Leon Trótski, “é fundamentalmente falso opor a cultura e a arte burguesas à cultura e à arte proletárias. Estas últimas jamais existirão, porque o regime proletário é temporário e transitório”.[x] Segundo Leon Trótski, “entre a arte burguesa que agoniza em repetições ou em silêncio e a nova arte que ainda não nasceu criou-se uma arte de transição, que se liga mais ou menos organicamente à Revolução, embora não represente a arte da Revolução”.[xi]

Nessa perspectiva, Leon Trótski procura definir um conceito de cultura, enquanto um fenômeno que “representa a soma orgânica de conhecimentos e informações que caracteriza toda sociedade ou ao menos sua classe dirigente. Ela abarca e penetra todos os domínios da criação humana e unifica-os num sistema”.[xii]

Leon Trótski também não deixou de polemizar com os segmentos que se aproximavam da perspectiva das vanguardas europeias, especialmente a corrente formalista. O centro de sua discussão com essa corrente passava pela compreensão de como o marxismo deve enxergar a arte. Segundo Leon Trótski, para o marxismo, “[…] a arte, do ponto de vista do processo histórico objetivo, é sempre um servo social, historicamente utilitário. Encontra o ritmo da palavra necessário para exprimir humores obscuros e vagos, aproxima o pensamento do sentimento, ou opõe um ao outro, enriquece a experiência espiritual do indivíduo e da coletividade, apura o sentimento, torna-o flexível, mais sensível, dá-lhe maior ressonância, aumenta o volume do pensamento graças à acumulação de uma experiência que ultrapassa a escala pessoal, educa o indivíduo, o grupo social, a classe e a nação”.[xiii]

Leon Trótski aponta que, mesmo que se leve em conta o condicionamento da arte dentro de uma realidade concreta e de uma sociedade, “não significa, quando traduzida para a linguagem política, o desejo de dominar a arte por meio de decretos ou prescrições. É falso que só consideramos nova e revolucionária a arte que fala do operário. Não passa de absurdo dizer que exigimos dos poetas apenas obras sobre chaminés de fábricas ou sobre uma insurreição contra o capital”.[xiv]

Leon Trótski, nesse sentido, defende a independência da forma da arte, ponderando que “o artista que a cria e o espectador que a aprecia não são máquinas ocas: uma feita para criá-la e a outra para apreciá-la. São seres vivos cuja psicologia cristalizada apresenta certa unidade, ainda que nem sempre harmoniosa. Essa psicologia resulta de condições sociais. A criação e a percepção das formas artísticas constituem uma de suas funções”.[xv]

Embora ainda não estivesse consolidada a ideia de realismo socialista, Leon Trótski já aponta elementos de crítica a essa ideia. Contra a ideia da arte como uma cópia da realidade, afirma que a criação artística é “[…] uma alteração, uma deformação, uma transformação da realidade segundo as leis particulares da arte. A arte, por mais fantástica que seja, não dispõe de outro material além daquele que lhe fornecem o mundo de três dimensões e o mundo mais estrito da sociedade de classes. Mesmo quando o artista cria o céu ou cria o inferno, ele simplesmente transforma a experiência de sua própria vida em fantasmagoria, até e inclusive a conta não paga de seu aluguel”.[xvi]

Leon Trótski também aponta a postura do crítico e do teórico em relação à arte, chamando a atenção para o fato de que a arte é um fenômeno diferente dos processos econômicos ou políticos. Ele afirma: “Nem sempre se podem seguir somente os princípios marxistas para julgar, rejeitar ou aceitar uma obra de arte. Esta deve ser julgada, em primeiro lugar, segundo suas próprias leis, isto é, segundo as leis da arte. Mas só o marxismo pode explicar por que e como, num determinado período histórico, aparece tal tendência artística; em outras palavras, quem expressou a necessidade de certa forma artística, e não de outra, e por quê”.[xvii]

Considerando esses elementos, apontando para a defesa da autodeterminação da arte e para a liberdade do artista, conclui Leon Trótski sobre a postura que os revolucionários deveriam ter: “O marxismo oferece diversas possibilidades: avalia o desenvolvimento da nova arte, acompanha todas as suas mudanças e variações por meio da crítica, encoraja as correntes progressistas, porém não faz mais do que isso. A arte deve abrir por si mesma seu próprio caminho. Os métodos do marxismo não são os mesmos da arte”.[xviii]

Essas ideias permitem refletir sobre alguns aspectos na atualidade. Primeiro, sobre a perspectiva marxista da arte e qual o papel da crítica marxista diante dessas obras. Segundo, como Leon Trótski demonstrou antes mesmo da sistematização do “realismo socialista” a falência teórica e os equívocos desse tipo de perspectiva. E, terceiro, a importância da liberdade em arte e a necessidade de garantir aos artistas a possibilidade de expressar sua subjetividade, seja derrubando as amarras econômicas do capitalismo, seja garantindo condições materiais em uma futura sociedade socialista.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 37. [https://amzn.to/3A3yMmO]

[ii] Anatoli Lunatcharky. Um pouco de antídoto. In: As artes plásticas e a política na URSS. Lisboa: Estampa, 1975, p. 39-40.

[iii] Alexander Bogdanov. El arte y la cultura proletária. Madrid: Alberto Corazón Editor, 1979, p. 30.

[iv] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 144.

[v] Andrei Zhdanov, Literatura Soviética: a mais rica em ideias, a literatura mais avançada. In: Escritos. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultura, 2020, p. 102.

[vi] Andrei Zhdanov, Literatura Soviética: a mais rica em ideias, a literatura mais avançada. In: Escritos. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultura, 2020, p. 102.

[vii] Andrei Zhdanov, Literatura Soviética: a mais rica em ideias, a literatura mais avançada. In: Escritos. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultura, 2020, p. 103.

[viii] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 63.

[ix] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 35.

[x] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 37.

[xi] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 83.

[xii] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 159.

[xiii] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 137.

[xiv] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 138.

[xv] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 139.

[xvi] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 142.

[xvii] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 143-4.

[xviii] Leon Trótski. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 173.


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