Por DANIEL AFONSO DA SILVA*
Desde o debate da Band ficou bem claro que Pablo Marçal deseja mais desmoralizar Nunes e barrar Boulos que vencer o pleito
Era previsível: a cadeirada, a impunidade e a hipocrisia. O fator Pablo Marçal incomoda e o seu efeito, entorpece. A sua presença física e espiritual na paisagem política brasileira está desmascarando a integralidade da inapetência moral, intelectual, cultural e emocional de parcelas inteiras da sociedade. O bom-mocismo dos bien-pensants voltou a ser o que sempre foi: uma quimera. Reafirmou-se evidente – inclusive para os mais incautos – que não existem santos no serralho.
Pois política, como tantas vezes ensinou Cicero, é território de brutos e Brutus. Um mundo de traições, safanões e imposições. Um espaço concreto e real. Onde os fracos não têm vez. E, portanto, No country for old men. Onde os desavisados e admiradores inveterados de Barbie e Chimamanda precisam tomar cuidado. Sobretudo quando Hannibal, sedento de sangue alheio, está desperto, faminto e a soltas. A política como ela é não aceita moralismos nem moralistas. Nunca aceitou. Qualquer leitor de Maquiavel sabe disso. Qualquer agente político real também. Mas precisou a presença de Marçal para trazer tudo isso à superfície.
Não faz tanto tempo assim que tabuleiros eleitorais Brasil afora eram disputados a bala, assassinatos, intimidações. Ignorar isso é ignorar a história política do país.
Quem retornar com calma ao noticiário político dos últimos vinte, trinta ou cinquenta anos vai notar uma quantidade extraordinária de força bruta – muita vez, também física – nos processos eleitorais. O clima nunca foi ameno. E sempre tendeu a piorar. Tanto que quando os constituintes reclamavam com o dr. Ulysses Guimarães sobre a qualidade média da classe política e da sua propensão a brutalizar interações, ele simplesmente advertia: “aguarde a próxima eleição e legislatura. Nelas os políticos serão ainda piores”.
Fazer política e disputar a preferência popular majoritária no Brasil nunca foi um passeio no parque. Ulysses Guimarães sabia e qualquer pessoa minimamente lúcida também. O desejo de poder entorpece a todos. Candidatos, eleitores e observadores. Como numa arena romana. Feito num espetáculo para gregos e troianos. Com bestas-feras, gigantes e leões. Abaixo às ilusões. Salve-se quem puder. Império de tensões. Que gente sensível não suporta. Pois é selva selvagem. Mas sem Dante nem Virgílio tampouco Beatriz para acalentar.
Getúlio Vargas, que foi um dos políticos mais aguerridos do país – quem sabe, o único verdadeiramente homo politicus que merece a condição de homem de estado – era sereno, competente e consistente e, mesmo assim, não suportou. Suicidou-se.
Veja-se o caso do presidente Jânio Quadros. Fale-se o que se quiser falar. Goste-se ou não dele. Mas ninguém sai de interior do Mato Grosso, migra para São Paulo, torna-se político, fica conhecido nacionalmente em instantâneo, vira presidenciável e vai eleito presidente da República em menos de vinte anos sem ser um outlier. Um animal político extraordinário. Uma personagem humana, em si, hors norme e sem par. E, mesmo assim, com todos esses feitos superlativos, ele também não suportou. Pediu pra sair, pegou o boné e partiu. Não é fácil.
O muito digno presidente Itamar Franco, como todos sabem, devoto de Santa Terezinha, assumiu o poder naquele momentum horribilis da vida nacional que todos sabem. Quando do processo de afastamento e impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. Lá por fins de 1992. Um período crítico, exigente, complexo. Onde muitos militares salivaram para reabilitar o mando de suas corporações sobre o país. Não foi nada simples. O presidente Itamar Franco participara da primeira chapa presidencial eleita diretamente depois de 1960.
Os militares já haviam confirmado, na força do coturno, depois da morte de Tancredo de Almeida Neves, a presidência de José Sarney e, logo adiante, haviam também decidido que, para as eleições de 1989, Lionel Brizola, não. Em 1992, portanto, os homens em farda seguiam mais onipresentes que nunca e bem a postos para eventualmente reabilitar a aventura de 1964. Entretanto, em contraponto, as frentes civis e populares que encheram as ruas desde o início da redemocratização, avançando nas Greves do ABC, nas Diretas Já!, no féretro do presidente Tancredo de Almeida Neves, nas eleições de 1989 e no movimento dos caras-pintadas pelo impeachment do presidente Collor ainda estavam bem vivas em apoio à democracia e, bem ou mal, à sustentação do presidente Itamar Franco.
Mas, note-se, era preciso, de parte a parte, do lado dos militares e do lado dos civis, ter-se nervos de aço. E eis aí, quem sabe, o maior predicado do presidente Itamar Franco. Que, como Tancredo, era mineiro. E, como todo bom mineiro, agia com a retidão dos mineiros. Hoje em dia virou um presidente, um governador de estado e um político quase esquecido. Mas um agente político extraordinário. Com nervos de aço. Que só não caiu devido aos seus nervos de aço auxiliados por uma maré a seu favor. Eis a grandeza do presidente Itamar.
Não caberia aqui uma avaliação detalhada sobre o Escândalo do Mensalão. Mas, pense-se: se o presidente Lula da Silva não tivesse uma couraça política verdadeiramente consistente, ele teria sido estraçalhado à luz do dia, com o seu corpo salgado em praça pública e vandalizado nos quatro cantos do país. A violência simbólica e moral de tudo aquilo foi sem limites. Tanto que o sempre discreto presidente José Sarney veio a público para lembrar que Lula da Silva era um patrimônio nacional e não deveria ser tocado.
Da mesma sorte, quando frações inteiras da classe política brasileira desejava o impeachment do primeiro metalúrgico e homem do povo tornado presidente da República, o presidente Fernando Henrique Cardoso também veio a público para acentuar que ele nem o seu PSDB mancharia as próprias mãos com sangue.
No mesmo contexto, se não fosse um quadro, servo bom e fiel, da envergadura de José Dirceu pedir a responsabilidade pra si próprio, a integralidade de um dos maiores partidos de massas do planeta teria virado farelos. Seguindo o exemplo, sem a hombridade de gente – para citar apenas mais um – como o digníssimo José Genuíno, toda a aventura iniciada no Colégio Sion em 1980 não passaria de um pesadelo ambientado num trem fantasma desgovernado com seus condutores embriagados.
Reconheça-se: essa gente – do presidente Lula da Silva aos seus correligionários principais – suportou pressão política, psicológica e moral que quase ninguém suportaria.
No sentido oposto, veja-se o caso da presidente Dilma Rousseff. Goste-se ou não, ela foi presidente da República entre 2011 e 2016. Mas, em algum momento desse percurso e por variadas razões, ela foi, pelos seus, abandonada à própria sorte. Como consequência, após as noites de junho de 2013, ela entrou numa entropia sem fim nem limites. Que produziria o sangramento inclemente e arrebatador. Que, por sua vez, serviria para galvanizar o impeachment de 2016 e sepultar a carreira política da presidente.
No seu contrapelo, veja-se o caso do presidente Fernando Collor de Mello. Gosta-se ou não, aprecie-se ou não, ele sempre foi um outlier. Chegou à presidência da República do Brasil com 40 anos de idade. Transitou destemido pelo vale da sombra da morte durante os seus mil e poucos dias que permaneceu no poder. Foi esmagado pela classe política, pela opinião pública e pelas pressões sociais. E, se isso não bastasse, ainda foi ejetado da vida pública mediante expedientes, no mínimo, discutíveis.
E, diferente do presidente Getúlio Vargas, o maior de todos, não abdicou da vida. Bem ao contrário. Seguiu vivo e vivendo. E não tardou retornar ao seu habitat: a arena política. Renascendo das cinzas. Coisas de fênix. Ressignificando passados. Coisas de gente do ramo. Tudo para reencontrar a melhor versão de si mesmo. Despindo-se das ilusões. E abdicando de sonhar como Ícaro.
Tudo isso para dizer coisas simples. Que todos sabem ou deveriam saber: a política não admite amadores. Como dizia o general De Gaulle, a política é um métier. Não adianta chorar nem se desesperar.
De maneira que, sim: era previsível: a cadeirada, a impunidade e a hipocrisia anotadas nos fatos recentes do pleito de São Paulo.
A média dos concorrentes não passa de gente amadora e estranha ao métier. Gente que numa realidade política saudável jamais existiria. E não existiria porque um sistema normal jamais permitiria a amadores descer à arena para dançar com lobos. As razões são simples. Gente amadora, com toda a vênia, queima-se na chuva. Não suporta pressão. Apela. Troca os pés pelas mãos. Bate abaixo da cintura. Põe dedo nos olhos. Puxa o cabelo. Dá carrinho por trás. Manda, sem muitas explicações, derrubar redes sociais. Pega a bola pra levar embora. Faz de tudo pela impugnação da candidatura de concorrente. E, não conseguindo, aumenta a violência. Parte pra força bruta. Arremessa tudo aquilo que está ao alcance das mãos. No caso em questão, foi uma cadeira.
Pergunta singela: onde está o árbitro?
E o árbitro, nesse caso, deveria ser a higidez da democracia, do estado de direito e da redemocratização. Onde ele está?
Venho argumentando, e não é de hoje, que o movimento inaugurado na abertura “lenta, gradual e segura” do presidente Geisel em 1974 e confirmada pela eleição do dr. Tancredo Neves em 1985, em algum momento do século XXI, se apagou. Ou, no mínimo, perdeu sua força e vigor. Ficou flácido e desforme. Feito um corpo agonizando na UTI.
Nesse sentido e diferente de muitos, tenho pra mim que o impeachment de 2016 e a prisão do presidente Lula da Silva em 2018 foram graves demais para se esquecer para não lembrar. Foram crimes hediondos de lesa à pátria. Onde o país foi violentando. Perdendo a face, descendo aos infernos e perdendo a honra. 2016 e 2018, entre junho de 2013 e 8 de janeiro de 2023. Anos de tormentas. Tempos de desamor. Cujo trauma causado foi gigantesco. Como a desgraça da alegoria Absalão versus Tamar. Uma desgraça sem tamanho. Uma tragédia. Que nada nem ninguém consegue conter nem aplacar.[i]
Dito de modo bem direto, o impeachment de 2016 e a prisão do presidente Lula da Silva em 2018 desfizeram todos os pactos pela redemocratização e feriram a democracia brasileira de morte. Os pactos eram sensíveis, mas profundos e honestos. Cosidos a mão. Trançados no fio do bigode por duas ou três gerações de verdadeiros amantes do Brasil que esmaeceram sem conseguir passar o bastão para sucessores minimamente à altura.
De maneira que as novas gerações – incluindo gente velha, mas que ingressou na política depois – devassaram a herança da transição para a democracia, vandalizaram a sua honra e destruíram os fundamentos do interesse nacional brasileiro.
Como resultado, o nível de tudo caiu. Os idiotas, como dizia Nelson Rodrigues, perderam a modéstia. E, se isso não bastasse, abdicaram do anonimato e começaram a requerer um lugar ao sol. De modo que a restrita picada de acesso à política virou um oceano onde qualquer um, mesmo sem colete nem boia, pode entrar.
A primeira grande mostra desse cenário de filme de terror ocorreu nas municipais de 2016. Quando o pleito da cidade de São Paulo deu o tom do sinistro. Pois, em verdade, quem poderia imaginar que João Dória venceria a disputa em primeiro turno impondo uma humilhação política e histórica sem precedentes ao PT, ao presidente Lula da Silva e ao sempre gentil Fernando Haddad?
Mas João Dória – depois, João Trabalhador – não foi caso isolado.
Quem tiver paciência que retome a composição das prefeituras e das vereanças por todo o Brasil naquele pleito. Ali, em 2016, as serpentes já estavam bem graúdas. Não dormiam mais em ovos. Eram cobras criadas. O gênio – ou o asno – já tinha saído da lâmpada. O leite estava derramado. Não havia mais o que se fazer senão construir esforços para se recompor os pactos pela redemocratização.
Mas, não: dobrou-se a aposta e prendeu-se o presidente Lula da Silva em 2018. Aquilo não foi só horroroso. Foi a pá de cal do adeus à redemocratização, à segurança jurídica, ao sistema político.
Pode não parecer e pouca gente se permite ver, mas a redenção de Lula da Silva com o seu terceiro mandato não redimiu o sistema político brasileiro. A avaria segue total. Do contrário, como se entender a ascensão e a queda de um Silvio Almeida?[ii]
Note-se bem, sem a razia generalizada do sistema político e dos pactos profundos pela redemocratização, gente da qualidade do capitão Jair Messias Bolsonaro jamais subiria a rampa do Planalto na condição de presidente da República e gente da qualidade de Boulos, Datena, Marçal, Marina, Nunes, Tabata e afins jamais se apresentaria como aspirante à prefeitura da cidade mais importante do país.[iii]
A política, como se disse, é terra de brutos. E, sendo assim, não suporta amadores. Amadores, aí, não se criam.
Mas, por incrível que possa parecer, desde, ao menos, junho de 2013, inomináveis amadores passaram a crescer, prosperar e se multiplicar na política. A qualidade média dos elementos que aceitaram o pedido de impeachment em 2016 foi uma mostra eloquente e assustadora de tudo isso. O que veio depois deixou tudo ainda mais horroroso. E, nesse sentido e contrário a todas as aparências, a presença de Pablo Marçal no cenário político de 2024 pode ser um dos fatores mais positivos de todos os pleitos eleitorais dos últimos dez ou quinze anos.
A razão é muito simples: Pablo Marçal encarna últimos espasmos da redemocratização. Depois dele, não vai ter jeito: melhora ou esmorece de vez a democracia brasileira. O que se vê na disputa por São Paulo é o empilhamento de pressão. Marçal aumenta a pressão e suporta a reação. Mas os seus adversários, não. E a cadeirada do domingo, 15/09, foi apenas a mostra mais recente, evidente e eloquente disso.
É desnecessário redizer que, num sistema político saudável, José Luiz Datena jamais seria candidato a qualquer cargo político eletivo. Os deuses o impediram de sê-lo em numerosas ocasiões anteriores. Mas, agora, por alguma razão, os seus guias o abandonaram e ele entrou na disputa.
E pior: entrou de salto alto e cheio de si, mas nitidamente desidratado em convicção. Tanto que em sua primeira grande aparição, no debate inaugural da Band, ele foi, simplesmente, esterilizado publicamente. Todos sabem e todos viram. O homem encolheu, desminlinguiu, sumiu. Feito magia negra. Coisa pesada pra valer.
Pois, de véspera, a situação era bem outra. A fotografia do embate eleitoral indicava Ricardo Nunes e Guilherme Boulos empatados na liderança e ele, José Luiz Datena, logo atrás, em terceira colocação. Nada mal. Aquele terceiro lugar, bem trabalhado, poderia virar primeiro. Mas foi Datena entrar no estúdio e sua pontuação começar despencar. Feito chuva em torrente. Tempestade. E quando ele abriu a boca, aí que tudo desabou mesmo. Ele ficou irreconhecível. Definhou tanto a ponto de namorar a morte política. Foi incrível. Espetacular. E o que veio depois apenas piorou a situação.
Ele – por mais turrão que eventualmente seja – deveria ter resignado ali, na estreia. Mas, não. Preferiu, natimorto, seguir. E seguiu pelo pior caminho: aliando-se a Boulos, Nunes e Tabata para sangrar Marçal. Deu tudo errado e conduziu à cadeirada. Do contrário, veja-se.
Desde o debate da Band ficou bem claro que Pablo Marçal deseja mais desmoralizar Nunes e barrar Boulos que vencer o pleito. O término do pleito depende da abertura das urnas. Mas a brutalização da relação com Nunes e Boulos está bem contratada. Tanto que um e outro, Boulos e Nunes, deram muitos sinais de fadiga e desespero. Sinalizando claramente a precisão do arpão de Pablo Marçal. Que ainda não os feriu de morte. Mas os tem feito sangrar.
E foi nesse contexto que Datena se solidarizou com Nunes e Boulos. Fazendo uma aliança triangular de cavalheiros para acoimar Marçal. A primeira mostra dessa manobra ficou bem explícita na ausência dos três ao debate da FAAP. O propósito era descreditar Pablo Marçal. Mas, como se viu, não foi eficaz. Bem do contrário.
E, por ter sido assim, nos debates seguintes, eles três, Boulos, Datena e Nunes, voltaram à arena determinados seguir agindo em bando para enquadrar Marçal. Mas, novamente, não deu. Ou melhor, foi pior: Marçal entendeu o movimento deles três e passou a viver o arquétipo de Davi. Davi versus Golias. Marçal versus “o sistema”. Marçal/Davi versus “todos”. Uma imagem perfeita para quem tem por hobby lacrar.
Nesse ínterim, Nunes e Boulos (e Tabata) perceberam a armadilha. E começaram a recuar. Datena, por sua vez, não entendeu nada e seguiu avançando. Candidamente. Como Quixote. Frente à fornalha. Rumo ao patíbulo. Sem nenhuma armadura tampouco algum armamento. Até perder totalmente a razão.
Quanto desespero! Veio a cadeirada. Mas o pior ainda estava por vir. Não da parte de Datena, claramente desmemoriado pelo processo. Mas da parte de parcelas inteiras da bien-pensance que chegaram a aplaudir e louvar o gesto de Datena. Não pelo espírito panis et circenses típico de toda corrida eleitoral. Mas por – como Datena, Nunes e Boulos – não entender nem suportar o fator Marçal e, agora, desejar eliminá-lo a qualquer custo.
Do contrário, feche os olhos, respire fundo e medite.
Agora imagine um cidadão incandescido. Bravo, muito bravo. Fora de si. Com o semblante transfigurado pelo ódio. Envolvido por um ímpeto implacável. Salivando desejos de vingança. Fitando outro cidadão como um animal sondando sua presa. Aguardando a melhor ocasião. Quando ela chega, apanha o primeiro objeto ao alcance das mãos – no caso, uma cadeira. Cruza todas as linhas vermelhas da decência, da coerência e da dignidade humana. Fere todos os decoros do espaço público. E, mais diretamente, de uma arena eleitoral.
Vai ao encontro do outro cidadão com o nítido interesse de tocaia. Dá-lhe uma cadeirada na maldade. Que só não acerta em cheio – e, quem sabe, de modo fatal – porque a vítima teve bom reflexo. Saiu do ângulo de mira. Protegeu-se. Até que o “deixa disso” entrou em cena. Apartando os rixosos. Dando fim da partida para um e convocando o departamento médico para outro. Tudo sob o olhar atento de testemunhas. Dezenas in loco. Milhões a distância. Sem contar outros milhões/bilhões que verão ad infinitum esse espetáculo. Que não foi de ficção. Nem entre atores. Pois vale lembrar: a cadeira não era de festim.
Sendo assim, por favor, respire, novamente, bem fundo. Volte a si. Abra os olhos. E, por favor, ajude-nos a entender o que justifica um elemento, tido por cidadão e cidadão brasileiro e candidato ao honroso posto de prefeito da cidade de São Paulo, cometer uma ignomínia como essa e seguir andando tranquilamente por aí como se nada tivesse acontecido e, pior, sendo louvado e saudado como herói?
Nem as mentes mais imaginativas de todos os tempos conseguiriam projetar uma situação dessas. Simplesmente não dá para acreditar.
Hipocrisia tem limites. Que, por certo, não emana de Datena. Mas do conjunto de uma sociedade doente, lobotomizada e curiosamente datenizada.
Do contrário, veja-se. Tem algum tempo que não se fala mais nisso. E não se fala porque, em verdade, o “efeito Datena” – leia-se: a datenização – deixou de ser algo peculiar.
Na senda aberta por Luiz Carlos Alborghetti, seguida por Ratinho, matizada por Gil Gomes e afiançada pelo saudoso Marcelo Rezende, José Luiz Datena ressignificou excelência a crueza cotidiana daquilo que Nelson Rodrigues chamava de “a vida como ela é.” E, por isso, caiu no gosto do povo. Ou, como se diz, do “povão”.
Quem voltar no tempo vai notar que, desde o início deste século, o alcance de seus programas, de sua voz e de suas aparições virou, de súbito, algo simplesmente extraordinário. Conseguindo audiência sem par. Algo impressionante.
Em contraponto, os bien-pensants de inclinação identitária consideravam tudo isso horroroso. Tanto que para eles, Datena era um monstro. Um bugre, estulto. Um elemento nefasto que, através de seus programas, alienava as pessoas e sequestrava o “senso crítico” da “família brasileira”.
Pois, note-se bem, é justamente essa gente bien-pensants que, agora, engrossa os segmentos que aplaudem a agressão de Datena contra Marçal.
Como entender? Mudaria o natal ou mudei eu? Mas, voltando à cadeirada, tudo segue sendo muito curioso. Datena, fazendo o que fez, virou ele próprio produto de sua datenização sendo, então, engolido pela sua própria sombra.
Veja-se, a tônica da atuação de Datena na televisão sempre foi a sua explosão de sentimentos e a sua catarse de emoções. Não restam dúvidas: Datena era sincero. Era o típico “falo mesmo”. “Falo o que penso”. “Sou autêntico”. O que gerou para ele, Datena, multidões de admiradores verdadeiros. Pessoas como ele. Que se identificavam/identificam com esse estilo. Meio brutão. Sem travas na língua. Meio justiceiro. Doa a quem doer.
Por tudo isso, Datena foi, indubitavelmente, um dos jornalistas mais importantes de sua geração. Um jornalista “autêntico”. Que comunicava com o coração.
Para a televisão, excelente. Para a política, uma tragédia.
A política não admite gente assim. Jorge Cajuru – amigo de Datena e que também fez a transição para a política – que o diga.
A política é, sim, uma selva selvagem, que requer de seus transeuntes, homo politicus, maestria. Em contrário, não se sobrevive. Vai imperativo, portanto, na arena política, ser-se racional. Preferencialmente um monstro de gelo. Despido de emoções. Doutor em fingimento e herói em dissimulação. Pois como já dizia um sábio grego antigo amante da política: sobretudo na arena política, “quem não sabe fingir não sabe viver”. Datena parece que ingressou na política cândido em tudo isso.
E pior, à força de historicamente tratar todo mundo como bandido, vagabundo e meliante, ele entrou na disputa eleitoral por São Paulo aplicando esse tratamento e esse linguajar ao encontro de seus adversários. Ou seja, tentando datenizar a disputa. Mas não teve êxito. E, aí, talvez, a sua fúria contra Pablo Marçal que, por sua vez, marçalizou tudo.
O fator Marçal imprimiu outro tom à disputa. Um tom que Datena não aceitou nem suportou e fez o que fez. Algo, em política, imperdoável. Pois, não está escrito, mas todos sabem: quem se permite descer para a arena política precisa suportar a pressão e ponto final. Quem não suporta, pede pra sair. Datena não suportou, não saiu e fez o que fez.
Mas, como já se viu, o mais grave não foi o que ele fez. Mas o endosso generalizado do que ele fez. Como justificar esse endosso? São muitas as razões.
No plano político, a evidente agonia da redemocratização. Mas no plano societal, não dá pra fugir: o grande responsável segue sendo o descaso de todos pela educação.
Sim: educação conta e educação de qualidade conta ainda mais. Ninguém minimamente sério – na política ou fora dela – nutre dúvidas sobre isso.
Hannah Arendt – que no ano que vem completa 50 anos de ausência física entre nós – nos legou ensinamentos extraordinários sobre uma miríade de assuntos. Notadamente sobre política. Mas, essencialmente, sobre a importância da Educação.
Lastreada no antigo Políbio, ela afirmava que “educar” é “fazer-vos ver que sois inteiramente dignos de vossos antepassados”. E, com isso, ela queria dizer que educação é antes de tudo transmissão e, sendo assim, não existe transmissão – e, portanto, educação – sem tradição.
Nesse sentido, o educador/professor sempre deve figurar, no ideário de Hannah Arendt, como um mediador sincero entre o velho e o novo, entre o passado e o futuro. Quando isso não acontece, a crise vira geral.
Nesses termos, notou Hannah Arendt, a agonia/crise política nada mais é que a agonia/crise da Educação. Sendo a crise da Educação uma crise da transmissão. E a crise da transmissão uma crise profunda no reconhecimento da autoridade do peso do passado e do peso da tradição. Não existe vida sem passado nem sociedade sem tradição.
Movendo o cursor de tudo isso para a realidade brasileira, parece ser justamente disso que se trata: agonia/crise de nossa política decorrente da agonia/crise de nossa educação. Tal e qual a democracia brasileira segue agonizando na UTI, a educação brasileira figura, simplesmente, no quarto ao lado, respirando por instrumentos e vivenciando martírios finais. As implicações negativas de tudo isso, todos sabem, são gigantes.
Não se sabe onde tudo começou. Darcy Ribeiro e tantos outros dizem que no regime militar. Quem sabe, lá por 1968, com o AI-5. Mas o curioso foi que depois do regime militar não se fez muita coisa para a mudança do quadro. Houve uma ampliação de números em sacrifício da qualidade. O número de pessoas escolarizadas subiu de modo espetacular após 1985. As taxas de analfabetismo caíram perto de zerar. O percentual de pessoas com formação em nível superior – inclusive com mestrados e doutorados – aumentou de modo significativo. Mas o número de analfabetos funcionais também. E, hoje em dia, frente à Quarta Revolução Industrial, o número de analfabetos digitais só faz aumentar.
Em termos de educação, a sociedade brasileira avançou muito. Mas o balanço geral ainda segue muito ruim. O que transmite externalidades negativas consideráveis ao espaço da política. Conduzindo gente tecnicamente escolarizada como Boulos e Marçal, por exemplo, a encontrar “comunistas” e “fascistas” em todas as esquinas 30 anos depois do fim do mundo soviético e 80 anos depois de Hitler.
Mas se isso não bastasse, parcelas importantes dessa indigência educacional brasileira também justificam o endosso do feito ignominioso de Datena sobre Marçal, simplesmente por ter sido contra Marçal.
Mas quem é Marçal? Marçal, goste-se ou não, é um sujeito ancorado em tradições. Em seu caso, tradições cristãs. E, portanto, é alguém naturalmente conservador. Que reivindica o peso de algum passado e do peso de alguma tradição. Justamente o que o bom-mocismo bien-pensant identitário, por princípio, condena.
Perceba-se bem, o presidente Jair Bolsonaro perdeu as eleições em 2022 conquistando “apenas” 45% da preferência popular e mantém, até hoje, esses “apenas” 45% da preferência popular intactos porque ele, como Marçal, reivindica o peso de algum passado e do peso de alguma tradição comuns a parcelas inteiras da sociedade brasileira.
Marçal não é Jair Bolsonaro. Mas, goste-se ou não, participa do mesmo universo cultural. Que, ao fim das contas, segue muito mais complexo e consistente que as fragmentações propostas pelos identitários.
É curioso. Mas também é trágico.
A bien-pensance brasileira, sem analisar em profundidade o fenômeno, continua querendo colar a pecha de “extrema direita” em Marçal – e também em Jair Bolsonaro –, mas não percebe que tudo é muito mais complexo, profundo e letal. E, pior, também não nota que sem uma recomposição dos pactos pela redemocratização, todo esse pandemônio veio pra ficar. Independentemente do resultado do pleito de São Paulo.
E, com toda a vênia, caso se queira algo disso eliminar, precisar-se-á de muito mais que uma cadeirada.
*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]
Notas
[i] Veja, especialmente, “Razão bolsonarista é uma clara reação ao mal-estar intensificado pela pasmaceira do século XXI”. Entrevista especial com Daniel Afonso da Silva. Disponível em : https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/625711-razao-bolsonarista-e-uma-clara-reacao-ao-mal-estar-intensificado-pela-pasmaceira-do-seculo-xxi-entrevista-especial-com-daniel-afonso-da-silva
[ii] Sobre o assunto, vide, “O triste fim de Silvio Almeida”. A terra é redonda, 8/9/2024. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-triste-fim-de-silvio-almeida/
[iii] Veja, especialmente, “O fator Marçal”. GGN – O Jornal de todos os Brasis, 26/8/2024. Disponível em: https://jornalggn.com.br/politica/o-efeito-marcal-por-daniel-afonso-da-silva/ e “O efeito Marçal”. GGN – O Jornal de todos os Brasis, 4/9/2024. Disponível em: https://jornalggn.com.br/politica/o-efeito-marcal-por-daniel-afonso-da-silva/ .
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