Antonio Cicero (1945-2024)

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Por JALDES MENESES*

Antonio Cicero, delicado e atencioso poeta e filósofo, deixa saudades, mas não morre, pois sua obra terrestre terá a duração da própria existência humana, não a do cosmos transcendente e inefável, mas da cultura

“Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por/ Admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado”
(Antonio Cicero, Guardar).

Antonio Cicero, o grande artista e intelectual que nos deixou nesta semana, foi um polímata de seu tempo, um grego antigo em estado de catarse, ou um racional cartesiano e iluminista. Numa de luta corporal agonística, fazia questão separar na unidade de seu corpo e intelecto as vestes contraditórias do filósofo e do poeta. Nesta encarnação viva da contradição, resplandeceu também, em seu belo tempo de vida, um caso especial de fusão da mais fina erudição com música popular. De sorte que, Antonio Cicero foi o sofisticado parceiro letrista da cantora Marina Lima, sua irmã, e de compositores como João Bosco, Lulu Santos e Adriana Calcanhoto e, ao mesmo tempo, na outra veste, filósofo.

Por seu turno, no outro diapasão, são dois os grandes temas coligados na obra filosófica de Antonio Cicero: o conceito de modernidade e, por extensão, a estética ou, melhor dizendo, as presumíveis configurações de uma estética da modernidade. No tocante à modernidade, ele operou uma tentativa de formular um conceito rigoroso, trans-histórico, teórico, desbordando do meramente descritivo, o que não chega a ser precisamente um ineditismo, pois assim agindo, na verdade, ele estava querendo resgatar as melhores tradições ilustradas do iluminismo do século XVIII. A obra em que ele dedica à modernidade chama-se O mundo desde o fim.[i]

Alguns pensam que modernidade-conceito significa o culto ao novo – esta definição caberia melhor aposto ao conceito de vanguarda. A modernidade veio a constituir um tempo histórico que incorporou, efetuando recortes e atualizações (incorporamos o espírito trágico, mas abrimos mão dos rituais sagrados de sacrifício), elementos arcaicos e do cânon clássico ocidental, sem problemas nem preconceitos, à maneira de uma grande válvula de sucção.

Queremos ser modernos e helênicos e não anacronicamente helênicos. Sabe-se que poética de Homero ou a teoria da graça de Santo Agostinho podem conter elementos de modernidade e, através de um saudável revisionismo histórico, serem trazidos ao terreno do contemporâneo e valorizados como criações de um espírito universal.

A questão central, no que tange à modernidade, para Antonio Cicero, estava longe de residir em um basbaque culto ao novo, ela foi levantada, na letra de Kant, em seus ensaios finais sobre o iluminismo[ii]: a modernidade estabelece uma relação horizontal, sagital, em seta, entre tempo e cultura, ao passo que em outros tempos históricos a relação tempo-cultural era hierarquicamente vertical, no sentido passado-presente. O dado realmente novo da modernidade consistiria, a partir da lição de Kant, em não conceber mais a relação ao presente em termos de relação de valor (estamos em um período de “decadência” ou de “prosperidade”, como nos autores da crise das civilizações, como A. Toynbee), não longitudinalmente, mas como uma relação sagital à própria atualidade. Dessa maneira, a originalidade do espírito de tempo estaria no reconhecimento da modernidade como um agora permanente, ou seja, um ethos calcado na transitoriedade das coisas como a essência do mundo.

Por isso, aliás, que o primeiro iluminismo nomeou a si mesmo, mais que um acontecimento histórico, como um evento na história do pensamento. Não é à toa que o novo livro de filosofia no prelo, segundo o editor Luiz Schwarcz chama-se “O eterno agora”. Antonio Cicero até cunhou uma expressão para designar esse “tempo de eterno agora” – a “agoralidade”.

A propósito de uma glosa sobre a especificidade dos tempos modernos, na conceituação de Hegel, Jürgen Habermas afirma que “a modernidade não pode e não quer tomar dos modelos de outra época os seus critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade.”[iii] É verdade que nos encontramos diante de um paradoxo – a efemeridade como o absoluto. Ser moderno seria admitir a priori a transitoriedade das coisas e o subjetivismo das interpretações, a consciência do caráter subjetivo e negativo da sociedade. Rigorosamente, a modernidade sempre é um processo em aberto, devir.

Antonio Cicero parte de uma fundamentação parecida com a de Habermas visando indagar o que intitula de “concepção de mundo” da modernidade. Buscando apoio em Hegel, e na contramão do senso comum dominante neste século XXI, ele vai afirmar que os fundamentos das concepções do mundo anteriores à modernidade eram objetos exteriores e positivos, como nação, raça, Deus, internalizados no processo de socialização de fora para dentro do indivíduo. Em suma, objetos de domínio em vez de objetos de liberdade. Na visão de mundo do autor, não deve haver mais lugar, na concepção de mundo da modernidade, para “utopias positivas” – no sentido de exteriores ao indivíduo.

Ora, ao admitir o absoluto, mesmo sob a forma do transitório, o filósofo escapa das tentações relativistas e nominalistas dos cultores da pós-modernidade, que adotam a posição do agora, porém – e esta diferença é fundamental, divisora de campos – como a ausência do absoluto. Nada disso: em Antonio Cicero, o absoluto é a transitoriedade. Operação demarcadora de campos, como se vê: conceituar a modernidade como o fundamento de um absoluto vislumbra a possibilidade de pensar uma ética da modernidade, inclusive em seus aspectos normativos.

Neste aspecto, ao postular na continuidade da racionalidade (na acepção de Kant), a razão no começo dos tempos revelou-se privada, como, digamos, uma (proto)modernidade, e depois se espraiou para a vida pública o caráter trans-histórico da modernidade, Antonio Cicero assesta o alvo contra os vários relativismos e historicismos. Recordo, aqui, da polêmica de Thomas Paine (Os direitos do homem)[iv] contra Edmund Burke (Reflexões sobre a revolução em França),[v] no alvorecer da Revolução Francesa de 1789, no manifesto Os direitos do homem, no qual o primeiro afirma, contra o segundo, que o fundamento do direito não é o costume ou a história pretérita da nação, mas o absoluto.

Conforme o filósofo piauiense-carioca, conceitos historicistas como nação, raça, costumes – ou mesmo a ideia ancestral de Deus –, embora vigentes, não devem ser aceitos como modernos, posto que desloque a formação da subjetividade da consciência de si (Hegel) ou do, paradoxalmente, aparentado cuidado de si (Foucault), do autocontrole, da autonomia, para objetos exteriores e positivos, fixados na força opressora do passado e da norma imposta.

Por outro lado, em sendo o agora um absoluto, não somente nos tempos modernos esta percepção se manifestou, daí a postulação trans-histórica de Antonio Cicero: podem-se encontrar elementos de modernidade em tempos remotos. Para ele, de alguma maneira, modernidade significa processo de racionalização (Max Weber e Jürgen Habermas, entre muitos, também pensaram a modernidade como racionalização), autorizando o sentido mais abrangente dado ao termo, posto que racionalização, em ultima instância, constitui uma característica ontopsíquica do homem. Vem daí a distinção, tornada célebre por Max Horkheimer e Theodor Adorno, em nota pessimista (discrepante do otimismo trágico que imputamos à démarche de Antonio Cicero), entre esclarecimento (processo geral de racionalização) e iluminismo (movimento intelectual do século XVIII).[vi]

O pensamento mágico racionaliza, por dentro do mito há um núcleo duro racional, eis a dialética do esclarecimento. Nem sempre ocorre o desvelamento do “núcleo duro” do mito, fenômeno histórico ocorrido somente nas sociedades que lograram possuir o que estou chamando, neste momento, de relação de abertura diante do mito. Os gregos tiveram este tipo de relação, por isso, dali saiu a filosofia e a história, discursos que em linhas gerais tratavam da mesma temática do mito – a natureza e a épica.

A diferença fundamental entre o mito, a filosofia e a história, contudo, dizia respeito ao registro do verdadeiro em contraponto ao especulativo puro e simples, ou ao simbólico expressivo, tão somente. Tome-se o exemplo de Heródoto, o chamado “pai da história”: preocupado com a verdade, descontente com a parcialidade heroica das epopeias, ele foi verificar os resíduos culturais dos adversários dos gregos nas guerras médicas (os persas) e também valorizar um adversário à altura dos gregos. Ou seja, na medida em que procurou narrar o verdadeiro, o estor encontrou-se com a possibilidade de reconhecimento do outro. Assim, houve, com certeza, uma “modernidade grega”, expresso na história realmente existente dos fatos,[vii] e não do desregramento dionisíaco, como no Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche.[viii]

Decerto, somente a atual fase histórica é realmente de modernidade, significando o tempo histórico no qual a percepção do agora se generalizou. Obviamente, se deduz que Antonio Cicero, embora lhe dando o crédito da originalidade, não é primeiro a pensar nestes termos, conquanto ele tenha a virtude de assentar no debate contemporâneo brasileiro, em tempos de maré montante conservadora (até disfarçado, em alguns casos, com vestes de esquerda) um racionalismo crítico legatário das melhores tradições do iluminismo, lembrando que a razão crítica não é anacrônica, nem de direita e muito acima de uma mera racionalização do domínio (histórico e epistemológico) do Ocidente Capitalista ou o Imperialismo Coletivo contra a culturas que foram alvo de práticas escravistas, genocidárias ou de subordinação dependente.

No desdobramento de buscar um conceito rigoroso de modernidade, estão as preocupações estéticas do nosso autor, privilegiadas no segundo livro de ensaios Finalidades sem fim. O título remete à estética kantiana, expressa no clássico da terceira das três críticas, a famosa Crítica da faculdade do juízo.[ix] Kant afirmou que o juízo estético-expressivo se desliga, por um momento, de qualquer determinação prévia de utilidade ou moralidade, instaurando uma esfera particular de julgamento, e busca apreender subjetivamente o belo.

Escreve Antonio Cicero, resumindo Kant e a motivação do título do livro: “Ora, para considerarmos bela uma flor, não sabemos nem precisamos saber que tipo de coisa ela deve ser objetivamente, de modo que não a julgamos segundo a sua relativa aproximação a qualquer fim dado: não a consideramos enquanto técnica. Embora, quando a julgamos bela, a flor nos pareça dotada da forma da finalidade, ou, em outras palavras, ela nos pareça ter sido feita de propósito, tal finalidade ou propósito nada tem a ver com qualquer fim extrínseco ao próprio juízo estético: trata-se justamente por isso de uma finalidade sem fim”.[x]

Ou seja, a capacidade da obra de arte comunicar sem basear-se em conceitos pelo fato de constituir um juízo singular. Rios de tintas já foram derramados sobre a estética kantiana, ademais ainda muito influente, por exemplo, na teoria social da ação comunicativa de Jürgen Habermas, não sendo caso de enveredar em seu comentário, desde a ampliação da estética do belo para outros elementos, como a fealdade, até a crítica do acento da estética na esfera do espectador, em lugar do objeto artístico. Poucos dos problemas desentranhados a partir da estética kantiana são abordados por Antonio Cicero – ele já a descreve e a toma no exame de seus objetos de estudo, ficando a dever um ensaio específico sobre o assunto e, principalmente, a evolução de sua fortuna crítica, impasses, problemas e soluções, ao menos ao longo do século XX.

Leitor consciencioso, o autor tinha erudição para uma obra desse fôlego. De pronto, é curioso observar, de passagem, que embora tenha como uma de suas principais preocupações a relação entre filosofia e poesia, sugerindo uma demarcação rigorosa de campos entre as duas formas de conhecimento. No fundo, o autor toma partido do partido kantiano em um debate clássico da filosofia alemã: o partido de Kant versos o de figuras românticas, como Schelling e Schlegel, filósofos que propuseram uma “nova mitologia” que introduzia a poesia como nova educadora da humanidade, em contraponto à filosofia. Nada disso, à filosofia o que é da filosofia; à poesia o que é da poesia.

Finalidades sem fim consta múltiplos ensaios, mantendo uma unidade conceitual. O ensaio de abertura, Paisagens urbanas, e ou outro do miolo, Poesia e filosofia, discorrem principalmente sobre as relações entre poesia e filosofia (e o novelo de questões daí desentranhadas). Talvez aí esteja o núcleo teórico do livro, somado ao ensaio sobre o crítico de arte norte-americano, bastante conhecido na área, Clement Greenberg (A época da crítica: Kant, Greenberg e o modernismo).

Três poetas são dissecados em ensaios específicos: Waly Salomão (A falange de máscaras de Waly Salomão), Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto (Drummond e a modernidade). Há ainda um importante ensaio sobre o tropicalismo (O tropicalismo e a MPB) e uma nota crítica sobre o conceito (paradoxalmente e brasileiramente antimoderno) de modernidade em Mário de Andrade. Por último, dois ensaios sobre a poética grega (Proteu e Epos e mythos em Homero, respectivamente).

Antes de ser poeta, Antonio Cicero foi um leitor fino de poesia. É sempre um risco escrever sobre autores consagrados como Drummond e João Cabral, de larga fortuna crítica. Contudo, Cícero saiu-se muito bem na abordagem do universo desses três grandes poetas. Importa ressaltar que, em Drummond, Cabral e Salomão, o tema privilegiado dos ensaios é o da modernidade.

Trata-se quase um truísmo afirmar que Carlos Drummond de Andrade constitui o mais moderno de nossos grandes poetas, o criador de um personagem simples do mundo (o poeta mesmo) às voltas com os dilemas contemporâneos. Curiosa é a escolha de Antonio Cicero: um dos poemas da chamada, por certo consenso crítico, como a “segunda fase” de Drummond, considerada mais mística, introspectiva, menos participativa engajada – A máquina do mundo, 32 tercetos em decassílabos (96 versos) – o que já desborda uma diferença formal com o verso livre modernista.[xi]

Dá-se no poema a seguinte narrativa visionária: uma “máquina do mundo” topa diante do poeta, prometendo uma espécie de nirvana, na fruição de uma “ciência sublime e formidável, mas hermética”, a “total explicação da vida”, o “nexo primeiro e singular” das coisas. O poeta recusa. Começa a análise do poeta carioca sobre o mineiro: “O que a máquina do mundo oferecia ao poeta era o equivalente moderno do que se oferecia a Dante, na ‘Selva obscura’: ‘essa total explicação da vida’ (…) O poeta recusa esse dom e prossegue, como ele dizia no começo do poema, na escuridão do seu próprio ser desenganado. Desenganado, é claro, porque sem mais engano (…) Só os mundos pré-modernos nos podiam pretender uma ‘total explicação da vida’”.[xii]

Elucida-se, com isso, a recusa de Drummond aos dons da “máquina do mundo”. Mas Antonio Cicero crítica também Carlos Drummond, condenando o tom de “resignação e luto” com o qual o poeta aceita o mundo moderno, vendo uma atitude parecida ao estoicismo de Max Weber, na passagem em que ele disse que é preciso ser “viril” para saber suportar a modernidade. Enfim, Antonio Cícero confronta Drummond contra Drumonnd flagrando outros versos mais ativos e menos resignados. De todo modo, o autor desmonta alguns equívocos de leitura do Drummond da chamada “segunda fase”: não há ali “misticismo”, pode haver descrença e somente, como resíduo, uma discreta nostalgia dos tempos místicos.

Imerso no corpo do ensaio sobre Drummond por meio de um rápido comentário, vale a pena dar um crédito às digressões de Antonio Cicero a propósito de João Cabral de Melo Neto, entre outros motivos, porque revela elementos do pensamento do autor de Finalidades sem fim, a propósito das vanguardas artísticas do século XX. Conforme ele, o trabalho das vanguardas foi o de realizar a modernidade artística, desmistificar os lugares e as formas convencionais, acadêmicas, nos quais o senso comum espera encontrar as obras de arte. Contudo o programa já se completou. Sempre houve uma contradição imanente ao trabalho das vanguardas: ela foi salutar quando abriu o leque das possibilidades formais e ruim quando as fechou, dogmatizando o programa da busca incessante do novo.

Ora, posto que o programa das vanguardas já se cumprisse, a questão de hoje já não é precisamente a da novidade, mas a da permanência. Em síntese, sobre a poética de João Cabral, especialmente o texto de testemunho teórico-analítico do poeta pernambucano, o conhecido ensaio cabralino, chamado Poesia e composição.[xiii]

Escreve Antonio Cicero: “aplica-se às teses de Cabral o que se pode dizer das teses da vanguarda em geral: que são verdadeiras na medida em que abrem caminhos, e falsas na medida em que os fecham. Assim, ele julga inferior a ‘poesia que fale das coisas já poéticas’, pois crê que a poesia deve procurar ‘elevar o não-poético à categoria do poético’. Essas teses se tornaram dogmas entre muitos jovens poetas. Ora, já, in limine, é questionável a tentativa de tomar a temática de uma obra de arte como base para pronunciar juízos estéticos sobre ela. É, portanto, evidente que tais teses não são verdadeiras senão pela metade, isto é, que são verdadeiras na medida em significam que a poesia não precisa falar de coisas já poéticas; por outro lado, na medida em que implicam proibir a poesia de falar de coisas já poéticas, são falsas (…) E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo que muitos outros poetas já tenham falado”.[xiv]

Evidentemente, as baterias de Antonio Cicero não se dirigem ao poeta de o Cão sem plumas, mas à generalização novidadeira de certa dicção cabralina, a uma recepção equívoca, da parte de muitos, de questões internas da poesia e da conjuntura poética que João Cabral de Melo Neto viveu, figurando uma vanguarda sem prumo.

Por seu turno, o desafio de enfrentar a poesia de Waly Salomão, um poeta brasileiro contemporâneo recém-falecido (1943-2003), é totalmente diverso do relativo aos poetas consagrados. Trata-se de percorrer terreno quase virgem, assentar para o futuro balizas críticas. Antonio Cicero realiza, em minha opinião, uma crítica sintomal, quase genealógica, pelas margens, do texto de Salomão, visando explicitar o feixe de suas intenções cifradas (a falange de máscaras), donde que conclui pela complexidade da escritura do antigo tropicalista baiano, para mim dono de alguns dos mais belos e versos sonoros da língua portuguesa contemporânea (um exemplo, em Mel: “provo do favo do teu mel/ cavo a direta claridade do céu”).

Circula muita mitologia e pouca crítica em torno da polêmica figura de Waly Salomão. Cicero, de pronto, rebate versões estereotipadas, que também não eram do agrado do poeta criticado, do tipo “poeta marginal” e “carnavalização”. Nada disso, a poesia de Waly Salomão, era muito pensada, elaborada, resultando numa reescrita intensiva, aliás, destoando do improviso prosaísta dos ditos marginais; e quanto à “carnavalização” (Bakthin), também não se aplica, porque o falecido poeta baiano negava visar o grotesco ou o paródico, ou mesmo trazer o registro do popular para o erudito, atributos da “carnavalização”.

O ensaísta carioca, em contraponto, sugere um movimento de “teatralização” na poesia de Waly Salomão. O que significa isto? O simples fato social de que somos todos, de alguma maneira, teatro. Explica o autor: “se tudo já é teatro, se até o fato é teatro, qual o sentido da teatralização? É que o ‘fato’ social é o teatro que desconhece o seu caráter social”.[xv]

O poeta e ensaísta observa que Waly Salomão cismou com os princípios de identidade e contradição, nas figuras de uma identidade fixa, que não conduz senão ao si próprio, que não se modifica. Por seu turno, a radicalização da ideia de identidade fixa resulta, em consequência, na negação da contradição. Penso que, ao questionar os princípios da identidade e da contradição, Waly Salomão talvez tenha se aproximado da dialética negativa, no sentido de que de buscar uma, digamos, não- identidade. Porém, é claro, a busca da não-identidade, era mais intuitiva no poeta baiano, configurando um projeto mais viável, pois se dava do terreno da linguagem poética, ao passo que a dialética negativa de Theodor Adorno visava surpreender a não-identidade por meio da própria identidade, através de um paciente trabalho por dentro da razão.

Gostaria de comentar, ainda, um dos versos mais conhecidos de Waly Salomão, analisado pelo ensaísta carioca: “a memória é uma ilha de edição” (Carta aberta a John Ashbery).[xvi] Conquanto a análise não cite, creio que Antonio Cicero não deve discordar que encontramo-nos diante de um poeta, neste caso, aproximado também, talvez involuntariamente (não é exigido à poesia pensar teoricamente suas intuições), da matriz benjaminiana: a memória não é um processo simplesmente unilinear e apaziguado de trazer à tona o passado, mas um complexo trabalho de seleção e montagem, aparecimento e desaparecimento.

Antonio Cicero, delicado e atencioso poeta e filósofo, deixa saudades, mas não morre, pois sua obra terrestre terá a duração da própria existência humana, não a do cosmos transcendente e inefável, mas da cultura. Não se encanta, nem vira estrela, embora esta seja uma bela metáfora. Transformou-se em história na vertigem incessante do agora.

*Jaldes Meneses é professor titular do Departamento de História da UFPB.

Notas


[i] CICERO, Antonio. O mundo desde o fim. Lisboa: Quasi (2ª ed.), 2009.

[ii] KANT, Immanuel. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974.

[iii] HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 12.

[iv] PAINE, Thomas. Os direitos do homem. Petrópolis: Vozes, 1989.

[v] BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. Brasília: UnB, 1997.

[vi] HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1986

[vii] HEDÓDOTO. História. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

[viii] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[ix] KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

[x] CICERO, Antonio. Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 198.

[xi] DRUMMOND de Andrade, Carlos. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003, p. 301-305.

[xii] CICERO, Antonio.  Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, p. 87-89.

[xiii] CABRAL de Melo Neto, João. “Poesia e composição”. In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 103-116.

[xiv] CICERO, Antonio.  Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 75.

[xv] CICERO, Antonio.  Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 15.

[xvi] SALOMÃO, Waly. Algaravias. São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 43.


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