Liberdade antes do liberalismo

Imagem: Rubem Grilo (Jornal de Resenhas)
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Por ALCIR PÉCORA*

Comentário sobre o livro do historiador inglês Quentin Skinner

Nos tempos obscuros que correm, quando as pessoas se embrulham na bandeira nacional, trombeteando hinos à liberdade e, no mesmo instante, sem ver contradição alguma nisso, exigem golpe contra as instituições democráticas e a favor da ditadura militar, avançando ameaçadoramente contra todos os que não participam do mesmo ímpeto furioso, pode ser elucidativa a leitura de Liberdade antes do liberalismo (Unesp), de Quentin Skinner (https://amzn.to/44gGraV).

Trata-se de um conjunto de textos do historiador inglês que tem como núcleo a aula magna que ele ministrou, em 1997, na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Elucidativa, eu disse, claro, para os que ainda veem sentido em ler e estudar, obviamente não para os adoradores dos símbolos patrióticos, ou pior ainda, desse vomitivo Mito que os ensaia com meia-dúzia de comandos toscos, pois já não precisam senão disso mesmo: palavras-de-ordem para obedecer, repetir e pirar.

Concentremo-nos, portanto, no livro de Skinner. Ele trata basicamente das ideias veiculadas por um grupo de autores ingleses, do século XVII, que formulou as teses de uma teoria política que ficou conhecida historicamente como “neoromana”. Chamou-se assim porque os autores que a propugnaram se inspiravam em discursos de autores latinos, como Salústio, Tito Lívio, Sêneca e Tácito, principalmente. Claro que as leituras que faziam também alimentavam discussões e interesses contemporâneos deles, o que torna os seus comentários bem mais do que glosas dos escritos antigos.

Para entrar de uma vez na questão fundamental formulada por autores como James Harrington e Marchamond Nedham, trata-se de entender que só é possível ser livre num Estado livre. A tese, na época, foi duramente criticada, entre outros, por Thomas Hobbes. Deixo de lado, porém, esse debate importante do período para me concentrar nos pontos básicos do programa neoromano, muito menos conhecidos do que os do Leviatã.

Segundo Skinner, a inspiração central da teoria veio de Salústio, quando este afirma, por exemplo, que, “para os reis, bons cidadãos, são objetos de maior suspeita que os maus, e o virtus de outros parece sempre alarmante” (p.57). Aplicando a teoria à história que viviam, os defensores da teoria neoromana identificaram Oliver Cromwell – especialmente após as conquistas da Escócia e da Irlanda, e mais ainda depois da dissolução do Parlamento, em 1653 – como a perfeita imagem do tirano Sula, tal como ela foi esboçada no Bellum Catilinae.

O passo seguinte foi deduzir que o mérito dos regimes republicanos não residiria em sua capacidade de obter grandeza ou riqueza, mas na de assegurar e promover a liberdade de seus cidadãos. O máximo valor das “comunidades livres” decorreria do fato de que as suas leis fossem modeladas “por todo homem privado” para proteger a liberdade de “todo homem privado”, fórmula que identificaria o conceito decisivo de “liberdade da comunidade”. Portanto, nessa perspectiva, um cidadão só poderia gozar de liberdade civil plena quando vivesse sob um Estado livre.

De acordo ainda com esse raciocínio de base, haveria duas maneiras pelas quais a liberdade poderia ser perdida. A primeira delas ocorreria quando o poder do Estado, ou de um governo que respondesse por ele, fosse usado para coagir o cidadão a fazer alguma ação não prescrita por lei, o que caracterizaria evidentemente abuso ou tirania.

A segunda se daria quando, mesmo sem sofrer coerção aberta, o cidadão permanecesse numa condição de sujeição ou de dependência política, ficando exposto ao perigo de ser privado de sua vida e liberdade. Neste último caso, o fato de um governante optar por exercer ou não a coerção não mudaria em nada o risco tirânico, já que o mero fato de existir essa opção para o governante já implicaria em submeter a liberdade civil à boa vontade dele: uma situação paradoxal equivalente já a “viver em servidão”.

Marchamond Nedham, por exemplo, afirma cabalmente que qualquer sistema de poder na qual o direito de um homem está depositado na vontade de outro já implica em tirania, com todo o seu potencial de escravização das vontades. Algernon Sidney opina também que a possibilidade de sujeição à coerção arbitrária é suficiente para se cumprir a sua consequência lógica, vale dizer, a perda de liberdade do cidadão.

Os poderes discricionários dos governantes são, por si mesmos, ainda que não sejam exercidos, uma ameaça constante aos súditos. Dito de outra maneira, o cidadão apenas admite obediência a leis, nunca a governos ou a homens; a não ser assim, ele acabará irremediavelmente por viver como “escravo”.

Ao considerar que a condição de dependência é “fonte” e “forma” de constrangimento constante, os teóricos neoromanos são levados a repudiar frontalmente a formulação do liberalismo clássico de que a força é a única forma de interferência na liberdade individual. “Ser escravo” não é condição apenas de quem trabalha sem direito a pagamento ou de quem sofre algum tipo de coerção brutal, mas, antes de mais nada, é estar em dependência da vontade de outro. A condição dependente, por si mesma, já implica numa limitação drástica da noção de cidadania.

Para Sidney, quando essa condição de dependência se instala na sociedade civil, a principal “arte” desse cidadão diminuído (que talvez pudéssemos traduzir mais corretamente por artimanha, desfaçatez ou malandragem) passa a operar dentro de um paradigma de subserviência e submissão. A conclusão é que, num Estado desse tipo, todas as “preferências” são dadas “àqueles mais propensos à escravidão”, já que tudo depende do humor ou da vantagem atribuída a alguém pelo homem detentor do poder.

E está justamente aí, a meu ver, o passo mais interessante dessas teorias neoromanas, isto é, quando elas articulam uma teoria do Estado a uma forma de temperamento ou psicologia individual, de modo que os adeptos do poder despótico ou autoritário são basicamente gente de caráter “obnóxio”. Detenhamo-nos por um instante neste termo magnífico, que o português, como o inglês, admite perfeitamente.

Na sua origem latina, o termo obnoxius era usado para referir os que viviam a mercê de outros, que estavam “submetidos”, ou, enfim, “os que não tinham vontade própria”. Relidos pelos neoromanos ingleses, o termo “obnóxio” passou a descrever “a conduta servil que se espera daqueles que vivem sob o domínio de príncipes e oligarquias governantes” (p. 78). Ou seja, o vocábulo diz respeito não apenas à fraqueza privada, mas à combinação desta com a expectativa estrutural gerada por um Estado que fomenta e produz a condição de dependência de seus cidadãos em relação a ele, exerça ou não, por vontade arbitrária e estranha à lei, a coerção explícita.

Assim, “lacaios” e “parasitas obnóxios”; bajuladores e gente servil não são apenas uma contingência azarada da vida dos governos autoritários. Bem ao contrário, eles são o verdadeiro modelo de cidadãos prescritos por sociedades que não identificam a liberdade do Estado ou a comunidade livre com o “autogoverno” de cidadãos. Em vez de promover a “bravura”, diz Sidney, explicitando as decorrências morais das escolhas políticas, tais governos promovem quem é “adulador, abjeto e carente de hombridade” (p. 80).

Skinner conclui o seu livro considerando que, posteriormente a esses debates levantados pelo neoromanos, com a “ascensão do utilitarismo clássico no século XVIII, e com o uso de princípios utilitaristas para sustentar boa parte do Estado liberal no século seguinte, a teoria dos Estados livres caiu cada vez mais em descrédito, até que, por fim, deslizou quase inteiramente para fora da vista” (p. 80).

Vale dizer, ao conseguir que prevalecesse nas sociedades modernas a ideia de que a liberdade individual apenas poderia considerar-se ameaçada quando se caracterizassem situações de coerção aberta ou de confinamento físico, o utilitarismo liberal sacrificou justamente a ideia mais bela de liberdade, degradando-a até conviver com a subserviência dos obnóxios.

O imperativo ético que eles defendiam, a saber, que é dever intrínseco do homem honrado combater governos autoritários, passou a ser visto como defeito de teimosia ou de insensibilidade. Deu-se aí o ponto de inflexão sem retorno em que a história do liberalismo moderno ajustou-se com a vitória do obnóxio sobre o caráter livre. A visada histórica, aqui, é altamente deceptiva, mas talvez nos ajude a entender porque a gente mais ordinária e servil ao poder se acha hoje no direito de posar como guardião da liberdade.

*Alcir Pécora é professor no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Máquina de gêneros (Edusp).

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