A massificação do audiovisual

Imagem: Clem Onojeghuo
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Por MICHEL GOULART DA SILVA*

O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas

Não é difícil observar a presença do audiovisual no cotidiano das pessoas, seja por meio de pequenos vídeos caseiros disponibilizados em redes sociais, seja pela permanência das produções cinematográficas em todo o mundo, que atravessam aspectos econômicos, políticos e culturais. O cinema, desde o início do século XX, se tornou presente no cotidiano das pessoas, mostrando tanto imagens que se pretendiam realistas como temas simbólicos ou mesmo fantásticos.

Essa massificação, que se deu em âmbito mundial, está associada ao desenvolvimento de tecnologias que permitem filmagens e gravações e à elaboração de uma linguagem própria para esse tipo de produção. Criado no final do século XIX, o cinema de tornou um espetáculo popular, conseguindo “atrair um público indiferenciado, majoritário, ávido de ilusões”.[i] Outros espetáculos, como o teatro e a ópera, na época, continuaram a ser formas artísticas eruditas e caras, portanto, mostrando-se restritas para os setores mais pauperizados da sociedade.

O cinema “era totalmente novo em sua tecnologia, em seu modo de produção e em sua maneira de apresentar a realidade. Trata-se, de fato, da primeira arte que não poderia ter existido a não ser na sociedade industrial do século XX e que não tinha paralelo ou precedente nas artes anteriores – nem mesmo na fotografia, que podia ser considerada apenas uma alternativa ao desenho ou à pintura”.[ii]

Ocupando-se inicialmente de pequenas sequências do cotidiano, como a chegada de um trem a uma estação ou a saída dos operários de uma fábrica, o cinema passou a ser uma diversão para grandes massas, que viviam encantadas (ou mesmo assustadas) pelas maravilhas que brilhavam na tela à sua frente. Era uma forma de levar arte ao maior número possível de pessoas simultaneamente.

Nesse sentido, a partir da experiência vivenciadas pelos russos depois dos primeiros anos da revolução de 1917, afirmava Leon Trótski: “o desejo de distração, de entretenimento, de diversão e de riso, é um desejo legítimo da natureza humana. Podemos e devemos proporcionar-lhe satisfação cada vez mais artísticas e, ao mesmo tempo, devemos fazer do divertimento um instrumento de educação coletiva, sem constrangimento ou dirigismo inoportunos”.[iii]

O cinema, logo nas primeiras décadas do século XX, se desenvolveu como indústria, especialmente nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Essa expansão do cinema está ligada ao desenvolvimento do capitalismo. O cinema, ao longo do século XX, “foi se desenvolvendo adotando as formas de uma verdadeira indústria de espetáculo e começou a produzir em série uma mercadoria apta a satisfazer os meios mais variados de gostos”.[iv]

Contudo, demoraram algumas décadas para que o cinema fosse considerado como grande arte e mesmo expressão de bom gosto, sem perder seu caráter de uma indústria de entretenimento. Por outro lado, ao longo de sua trajetória, o cinema também desenvolveu uma linguagem própria. No cinema, “o movimento da câmera, a variabilidade de seu foco, o espectro ilimitado dos truques fotográficos e, acima de tudo, a possibilidade de cortar a tira de celulose – que registra tudo – em pedaços e montá-los ou remontá-los à vontade tornaram-se imediatamente evidentes e foram imediatamente explorados pelos realizadores”.[v]

Essa linguagem não foi algo imutável e estático, se modificando ao longo do tempo, ganhando novos elementos, se metamorfoseando, se complexificando, década após década. O desenvolvimento da linguagem está ligado de forma indissociável à própria história do cinema, sendo produto da prática de profissionais e artistas há mais de um século, sendo possível defini-la como sucessão de seleções. Essas seleções são escolhas feitas com ideias e objetivos claros: “escolhe-se filmar o ator de perto ou de longe, em movimento ou não, deste ou daquele ângulo; na montagem descarta-se determinados planos, outros são escolhidos e colocados em determinada ordem”.[vi]

Esse processo de desenvolvimento articula ao mesmo tempo ciência e estética. Sabe-se que no cinema “não surgiu uma linguagem automaticamente nova até que os cineastas começassem a cortar o filme em cenas, até o nascimento da montagem, da edição”.[vii] Nesse processo, as produções deixaram de ser uma simples sucessão de cenas, passando a usar planos mais complexos, sequências pensadas com detalhes e cores, movimentos e enquadramentos, enfim, uma “linguagem apta a contar qualquer coisa”. [viii] Essa linguagem se tornou mundial e sua escrita pode ser interpretada em qualquer lugar.

O século XX também viu crescer Hollywood, um conglomerado de grandes produtores que controlam toda uma estrutura não apenas de estúdios e equipamentos como do mercado em âmbito mundial, sendo frequentes a menção a nomes como Warner, Disney, Fox, Paramount, Sony, Universal, entre outros. Esses conglomerados dominam tanto a parte de produção como a de distribuição e até mesmo alguns controlam salas de cinema, além de canais de televisão em diversos países. Essa estrutura remete àquela descrita por Lênin para se referir ao imperialismo, especialmente quando destaca “a chamada combinação, ou seja, a junção em uma só empresa de diferentes setores da indústria”.[ix]

Nos anos recentes, com o desenvolvimento de seus próprios streamings, esses grandes conglomerados passaram a ocupar fatias cada vez maiores desse mercado, que cresceu com a fabricação de novos dispositivos de exibição e com a internet. Embora a maior fatia desse mercado seja ocupada por outras grandes empresas, como Netflix e Amazon, é comum que estas realizem parcerias com os grandes conglomerados na produção e distribuição de filmes e de outros produtos audiovisuais. Como parte da dinâmica econômica imperialista, observa-se “a formação de vastas e complexas redes de alianças, que associam, pela primeira vez, os grandes grupos de informática, os de eletrônica para consumo amplo e os principais produtores de semicondutores”.[x]

Contudo, ao mesmo tempo em que Hollywood passa a dominar o mercado mundial, outras cinematografias também passam a se desenvolver, em um primeiro momento em países imperialistas, como França e Alemanha, e, com o desenvolvimento da dinâmica política e econômica em âmbito internacional, em países periféricos, sejam aqueles de desenvolvimento capitalista, como Japão, sejam aqueles que se tentam se constituir como espaços de alternativa política, como a União Soviética.

Na América Latina, países como Argentina, Brasil e Cuba também conseguiram angariar espaços, ainda que pequeno, em termos de mercado mundial. Mais recentemente, países como Coreia do Sul, Índia e Rússia, entre outros, tentam ocupar algum espaço nessa disputa econômica mundial.

O crescimento recente de alguns mercados, especialmente asiático, se deve em grande medida à massificação dos aplicativos de streaming, com sua variedade de filmes e séries e até mesmo a criação de alguns especializados no cinema genericamente chamado de “alternativo”.

Contudo, apesar da mudança na forma de exibição e do aparecimento de outras cinematografias, o cinema não deixou de ser uma mercadoria dominada pelos grandes conglomerados econômicos dos Estados Unidos, utilizando para isso inclusive mecanismos comerciais como coproduções ou contratos de exibição e distribuição para cooptar produtores independentes ou mesmo críticos.

Observa-se que “o entretenimento americano muitas vezes é produzido por multinacionais europeias, japonesas e já agora também indianas, ao passo que as culturas locais são cada vez mais coproduzidas por Hollywood”.[xi]

Portanto, ainda que incorporando ou mesmo difundido elementos culturais de diversas regiões, a maior parte do cinema produzido e distribuído ainda passa pelos interesses econômicos dos grupos econômicos de Hollywood. Por meio de sua expansão, “ao se organizarem para produzir mercadorias cada vez mais padronizadas, sob forma de telenovelas, filmes da nova geração hollywoodiana, vídeos, discos e fitas musicais, e para distribuí-los em escala planetária, explorando as novas tecnologias de telecomunicação por satélite e por cabo, essas indústrias tiveram, ao mesmo tempo, um papel importante em reforçar o nivelamento da cultura e, com isso, a homogeneização da demanda a ser atendida a nível mundial”.[xii]

Portanto, o cinema é uma arte que possui uma base industrial e cujo desenvolvimento de produção e distribuição está associado à dinâmica econômica internacional e sua expansão, por meio das relações capitalistas. Nesse sentido, por um lado, o cinema mostra-se uma importante expressão artística e uma forma de difusão de ideias e elementos culturais, ao mesmo tempo que se constitui um produto comercializável por grandes conglomerados econômicos.

Compreender essas contradições ao longo da história e encarar suas produções as manifestações artísticas mostra-se uma forma de investigar suas particularidades e valorizar suas contribuições para a cultura do último século.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] ALEA, Tomás Gutiérrez. Diaética do espectador: seis ensaios do mais laureado cineasta cubano. São Paulo: Summus, 1984, p. 26.

[ii] HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 366.

[iii] TROTSKY, Leon. Questões do modo de vida. A moral deles e a nossa. São Paulo: Sundermann, p. 35-6.

[iv] ALEA, Tomás Gutiérrez. Dialética do espectador: seis ensaios do mais laureado cineasta cubano. São Paulo: Summus, 1984, p. 25

[v] HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 366-7.

[vi] BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 37.

[vii] CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 14.

[viii] CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 27.

[ix] LÊNIN, Vladimir. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 37.

[x] CHESNAIS, François. A Mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 207.

[xi] MARTEL, Frédéric. Mainstream: a guerra global das mídias e das culturas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 447.

[xii] CHESNAIS, François. A Mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 40-1.


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