Por RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDI*
Desagravo a um spalla digno, injustamente demitido da Orquestra Filarmônica de Goiás
Por conta da indústria da cultura neoliberal, a qual determina a consciência das pessoas de modo quase hegemônico, poucos sabem, hoje, o que seja o spalla de uma orquestra. Trata-se, entretanto, de um músico violinista que exerce uma liderança institucional não apenas artística – cuja presença é imprescindível na boa execução coletiva, além de estabelecer o movimento sincronizado dos arcos nas cordas – como também administrativa. O spalla é um representante natural das reivindicações e demais necessidades dos colegas – zelando, como deveria ser, em conjunto com o maestro e a direção artística, pela dignidade do trabalho numa orquestra.
Estamos nos referindo ao spalla Abner Landim, recentemente demitido da Orquestra Filarmônica de Goiás. Nosso desagravo a favor da sua atuação profissional, tanto na questão artística como cuidando da dignidade no ofício do músico, visa ao pronto reestabelecimento das suas funções. Protestamos, portanto, contra a sua demissão. Esperamos que seja revertida tal injustiça e que se promova, assim, o devido respeito aos profissionais sinfônicos, priorizando a dignidade humana que deve viger no mundo do trabalho.
Com este desagravo, deseja-se expor o que ocorreu nas últimas semanas na Orquestra Filarmônica de Goiás, em especial, a conduta não solidária do seu maestro titular, o inglês Neil William Thomson. Numa orquestra, espera-se, principalmente por parte daqueles que se encontram em cargos de responsabilidade, uma atuação profissional que garanta as condições dignas de trabalho a todos, num permanente diálogo democrático – distante de atitudes narcisistas que deturpam o ambiente artístico e laboral, prejudicando não somente os músicos, mas toda a comunidade.
Infelizmente, ainda é mais a norma do que a exceção: a demissão sumária de músicos que têm se posicionado contra a precarização das funções artísticas e que, por cobrarem melhorias nas condições de trabalho, assim como o respeito ao bom andamento dos ensaios – cumprindo, inclusive, a própria missão enquanto spalla – sofrem a repressão repentina. Sabe-se, ademais, que o spalla de uma orquestra – o citado primeiro violino principal – desempenha, entre outras funções, um papel de liderança artística, técnica e também política. Essa liderança não pode ser alienada: o spalla tem a responsabilidade de representar e defender os interesses da orquestra como um todo. Por essa razão, encontra-se numa conjuntura publicamente exposta. Não raramente, no ambiente de trabalho sinfônico, o spalla é o primeiro a enfrentar as arbitrariedades das instâncias superiores.
É o caso, aqui descrito, de Abner Landim – spalla há mais de nove anos da Orquestra Filarmônica de Goiás. Agrava-se a situação por envolver o maestro inglês, o seu superior imediato, o qual vinha sendo omisso quando se fazia necessária a defesa dos músicos nas suas demandas por melhorias de várias ordens no ambiente de trabalho. Aliás, um maestro titular com funções de direção artística deveria ser o primeiro a lutar pela dignidade nas condições de trabalho numa orquestra – e jamais punir o seu spalla na atribuição legítima das suas funções.
Eis que Abner Landim foi demitido em 12 de novembro de 2024. No mesmo dia da sua demissão, foi apresentada uma primeira carta da comissão de músicos com pedido de esclarecimentos. No dia seguinte, 13 de novembro, sem sucesso, ocorreu uma primeira reunião do maestro inglês com a referida comissão de músicos. Em 18 de novembro, apresentou-se já uma manifestação pública de maior envergadura: uma Carta (datada de 15 de novembro), contendo a assinatura de 50 músicos da Orquestra Filarmônica de Goiás (num total de 55), com a qual eles não apenas criticam, mas também desaprovam a demissão – além de argumentarem a favor do spalla, pela sua contribuição artística e institucional, definido pelos seus pares como “nosso spalla, líder da orquestra”, o qual “assumia com responsabilidade a sua função”.
Os 50 músicos da Orquestra Filarmônica de Goiás, signatários da carta contra a demissão do spalla, chamaram a atenção para o fato de que o spalla Abner Landim não apenas defendia os seus colegas músicos, mas também o próprio maestro inglês quando este recebia críticas externas. A demissão do spalla pelo maestro inglês, portanto, não configura apenas a incivilidade, mas também a ingratidão.
Abner Landim foi demitido porque, cumprindo com a sua função de spalla, vinha exigindo que (a) os ensaios não sejam interrompidos por estranhos e a dignidade do trabalho artístico seja mantida; (b) os ensaios sejam respeitados, bem como reformas concomitantes, no mesmo espaço físico, não ponham em risco a saúde dos músicos (houve casos de pregos e cadeados que caíam do teto); (c) as partes de uma obra musical não cheguem aos músicos em edições precárias; (d) o maestro inglês se posicione e exija respeito por parte dos externos à orquestra; (e) resolvam problemas de ordem material como, por exemplo, as condições sanitárias do próprio local de trabalho etc.
Essas, dentre outras demandas e reivindicações, mantêm-se no âmbito do respeito ao trabalho daquela renomada orquestra, das mais importantes do Brasil. Abner Landim tem exigido aquilo que o maestro inglês, enquanto maestro titular de uma orquestra brasileira, deveria exigir: condições dignas para ensaios e concertos – com um mínimo de interferências externas. À omissão, contudo, somou-se a inesperada demissão do spalla, por conta da deliberação autocrática do maestro inglês.
Nesse contexto, um músico é tachado de sindicalista – como se tal atributo fosse uma indignidade – quando ele luta por condições dignas de trabalho, para que justamente não ocorram situações de assédio moral, precariedade material e humilhação do ponto de vista artístico.
Essas situações, aliás, vêm sendo reiteradas nos nossos tristes e sombrios tempos neoliberais. Parece que o maestro inglês se deixou influenciar pela sua conterrânea Margaret Thatcher, a qual, ao lado de Augusto Pinochet e de Ronald Reagan, formava a tríade de políticos dos mais hostis aos interesses dos trabalhadores em todos os tempos.
É inadmissível que o maestro inglês esteja alheio às demandas mais urgentes da sua orquestra brasileira – uma vez que o seu salário é pago com dinheiro público brasileiro – e ainda estabeleça uma postura antagônica aos seus melhores músicos, trabalhadores brasileiros, demitindo ainda, sem apresentar previamente uma advertência, aquele líder que justamente reivindicava melhores condições para todos.
Diante do exposto, reiteramos o desagravo a favor de Abner Landim – que esse importante spalla possa ser reintegrado à Orquestra Filarmônica de Goiás: a bem da música brasileira e a bem da dignidade do ofício de músico no nosso país.
*Rubens Russomanno Ricciardi é professor titular do Departamento de Música da USP de Ribeirão Preto e maestro da USP Filarmônica. Autor do livro Contra o identitarismo neoliberal – um ensaio de Poíesis Crítica pela apologia das artes (Contracorrente). [https://amzn.to/4eYrz6b]
Assinam também esse desagravo:
Abrahão Saraiva (violista)
Adonhiran Reis (violinista)
Adriano Costa Chaves (contrabaixista)
Alexander Kanji (violinista)
Alexandre Casado (violinista)
Alexandre de León (violista)
Alexandre Pinatto (violinista)
Analaura de Souza Pinto (pianista)
Anderson Ancelmo (violinista)
Anderson Farinelli (violinista)
André Ficarelli (trompista)
André Luís Giovanini Micheletti (violoncelista)
André Rosalem (contrabaixista)
Andréa de Araújo Campos (violinista)
Arthur Barbosa (violinista, compositor e maestro)
Brian Christopher Fountain (contrabaixista)
Bruno Ladson Mendes (violoncelista)
Caik Rodrigues (violinista)
Carla Rincón (violinista)
Claudio Cruz (violinista e maestro)
Claudio Rogério Giovanini Micheletti (violinista)
Consuelo Froehner (violinista)
Danilo Valle (timpanista)
Domingos Iunes Elias (clarinetista)
Elina Suris (violinista)
Emmanuele Baldini (violinista e maestro)
Evelyn Carmo (violinista)
Fabian Figueiredo (violinista)
Fabio Chamma (violinista)
Fernando Lopez (trompetista)
Francisco Krug (violinista)
Gabriel Marin (violista)
Gilberto Ceranto (violinista)
Helena Piccazio (violinista)
Hudson Lima (violoncelista)
Ícaro Smetak (violinista)
Jean Medeiros (flautista)
Joel de Souza (violoncelista)
Jonathan Xavier (trombonista)
José Gustavo Julião de Camargo (compositor e maestro)
Liliana Chiriac (violinista)
Lincoln Reuel Mendes (contrabaixista e maestro)
Lucas Eduardo da Silva Galon (compositor e maestro)
Lucca Zambonini Soares (trompista)
Luiz Ricardo Serralheiro (tubista)
Marcelo Ramos (violoncelista e maestro)
Márcio Szulak (percussionista)
Marcos Vinícius Miranda dos Santos (violinista)
Marcus Held (violinista)
Maria Cecília Moita (pianista)
Maria Cristina Kalinowski Canetraro (violinista)
Maria Cristina Poles (flautista)
Maria Fernanda Krug (violinista)
Mariana Amaral (violoncelista)
Mariya Krastanova (violinista)
Marta Vidigal (clarinetista)
Mauricio Soares Carneiro (clarinetista)
Mauro Lombardi Brucoli (violoncelista)
Mizael da Silva Júnior (violinista)
Pablo de León (violinista)
Paulo Eduardo de Barros Veiga (violinista)
Paulo Gonçalves (violinista)
Pedro Gadelha (contrabaixista)
Pedro Henrique Alliprandini (clarinetista)
Priscila Plata Rato (violinista)
Rafael Bion Loro (violinista)
Raphael Batista (violinista)
Raphael Campos da Paixão (trombonista)
Ricardo Bem-Haja (violinista)
Ricardo Palmezano (violinista)
Roberta Marcinkowski (violista)
Roberto Ring (violoncelista)
Robson Fonseca (violoncelista)
Rodrigo Yugi Nagamori (oboísta)
Rubens Russomanno Ricciardi (compositor e maestro)
Sara Cecília Cesca (violinista)
Shinobu Saito (violinista)
Simone Ritzmann Savytzky (violinista)
Tercia Oliveira da Silva (violinista)
Thiago Araújo (trompetista)
Tiago Naguel (clarinetista)
Ugo Kageyama (violinista)
Vagner Rebouças (trompista)
Vinicius Batista (violinista)
Vitor Zafer (violinista, compositor e maestro)
Walter Müller (contrabaixista)
Wellington Rebouças (violinista)
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