Labirinto reacionário

Barbara Lamoot, Guerra, 2017
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VALERIO ARCARY*

Apresentação do autor ao livro recém-lançado

Aonde vai o governo Lula?

O governo Lula já completou pouco mais de um ano de gestão, mas o país continua fragmentado. Isso confirma que, embora em uma correlação de forças politicamente melhor, porque Lula está no Planalto, essa correlação social de forças ainda não se inverteu: (a) as diferentes pesquisas de opinião confirmam que, aproximadamente, metade da população aprova o governo e outra metade desaprova, com pequenas variações. As variações em série longa se mantêm em torno das margens de erro.

Há discrepâncias entre o apoio a Lula, de 47,4% contra 45,9%, e os 40% que dizem reprovar o governo (em janeiro, esse índice era de 39%). Os que aprovam são 38% (uma queda de 4 pontos percentuais em relação ao levantamento anterior), enquanto mais de 18% avaliam a gestão como regular.[i] (b) o desempenho do governo até agora não conseguiu diminuir a influência da extrema direita, que mantém uma audiência de em torno de um terço da população.[ii]

(c) A divisão sociocultural permanece igual. O bolsonarismo preserva maior influência nas camadas médias que ganham acima de dois salários-mínimos, nas regiões sudeste e sul e entre evangélicos.[iii] O lulismo é mais influente na maioria mais pobre, nos extremos da escolaridade (entre os menos instruídos e os que têm nível superior), entre católicos e no Nordeste.[iv] Em resumo, há poucas mudanças qualitativas. Mas esse quadro não autoriza conclusões tranquilizadoras.

O governo não está mais forte, mesmo sendo evidente o contraste abismal na comparação com o governo Bolsonaro. Depois de um ano de governo, as oscilações nos graus de apoio ou rejeição são pequenas, mas há um viés de baixa mais acentuada no início de 2024. Deslocamentos deste tipo nunca são monocausais. São sempre muitos fatores que incidem sobre a consciência de dezenas de milhões em um país tão desigual.

A exploração midiática das fugas de uma prisão de segurança máxima, as chacinas na Baixada Santista e em comunidades do Rio de Janeiro, o crescimento do feminicídios e até mesmo os roubos de celulares no Carnaval aumentaram o mal-estar. A maior epidemia de dengue, efeito colateral de um verão escaldante que, por sua vez, é a antessala de um ano que deve bater todos os recordes históricos de elevação de temperaturas, também gerou desconforto.

Não deveria nos surpreender que, de longe, os piores resultados estão concentrados entre aqueles que ganham mais de três salários-mínimos, com escolaridade média, homens mais velhos do Sudeste e Sul e evangélicos. Ou seja, no eleitorado de Bolsonaro. Afinal, o fato fundamental da conjuntura foi a manifestação do dia 25 de novembro na Avenida Paulista, que aumentou a coesão da corrente de extrema direita, inclusive com o oceano de bandeiras de Israel presentes no ato. A armadilha bolsonarista voltou às ruas como uma avalanche neofascista. Uma armadilha que colocou um desafio. Por quê?

O caminho da luta política é sinuoso e até labiríntico, cheio de curvas, subidas e descidas, nunca é uma linha reta. A maioria da direção do PT esperou que a exasperação e fadiga do governo de extrema direita seria o suficiente para Lula derrotá-lo em 2022. Fez a aposta em uma lenta paciência. Venceu, mas foi por pouco. O governo Lula faz agora a aposta de que uma boa gestão, que responda a pelo menos a algumas das necessidades urgentes do povo através de “entregas” será suficiente para vencer em 2026. Jair Bolsonaro não adotara essa tática quietista de espera.

O bolsonarismo é uma corrente de combate. A extrema direita conhece a “patologia” de sua base social. Uma sociedade tão desigual se preserva porque aqueles com privilégios materiais e sociais lutam, furiosamente, para defendê-los. Conhece a prepotência da nova geração burguesa à frente do agronegócio, que acumula rancores socioculturais contra o mundo mais cosmopolita das grandes cidades, que os despreza como brutos machistas e negacionistas do aquecimento global.

Conhece a arrogância de uma parcela das camadas médias que foi envenenada pelo ódio racista, homofóbico, e pela perda de prestígio social. Conhece a desconfiança anti-intelectual alimentada pelas igrejas-empresas neopentecostais. Sem mudanças muito sérias na experiência de vida – aumento de salários, empregos decentes, educação de qualidade, SUS mais forte, acesso à casa própria – não é possível dividir esta base social.

Derrotar o bolsonarismo exige disposição de luta, habilidade para manobras, audácia para giros, coragem para estratagemas, disposição para confrontos, constância e contenção para ganhar tempo até realizar, depois, um novo giro e medição de forças. Mas, até agora, o que o governo fez foram, essencialmente, contemporizações. Apostou na “pacificação”. Quase nunca um passo em frente, e depois muitos passos para trás. Não aprendemos nada com a derrota do peronismo na Argentina e do PS em Portugal?

Há muitos na esquerda que descrevem esta evolução como tendência à polarização. A fórmula é atraente, porque será assim nas eleições municipais das grandes cidades com segundo turno, e pelo papel de Lula e Bolsonaro na transferência de votos. Mas esta fórmula é perigosamente enganosa, porque os dois polos na luta de classes não ocupam posições equivalentes. No campo reacionário, comandam os mais radicais. No campo da esquerda, a condução é dos mais moderados. A extrema direita “devorou” a influência dos partidos tradicionais de centro-direita (MDB, PSDB, União Brasil), mas o governo Lula não é um governo de esquerda, já que aceitou um pacto com a fração liberal liderada por Tebet/Alckmin. Em situações de estabilidade do regime democrático-liberal, a maioria da população se situa politicamente no centro do espectro político, apoiando a centro-direita ou a centro-esquerda, que se alternam na gestão do Estado.

Foi assim desde o fim da ditadura, com três governos da centro-direita e depois quatro governos do PT. Esta foi a chave do período mais longo, de trinta anos (1986/2016) de estabilidade do regime democrático liberal. Esta etapa, que era uma hipótese que o marxismo considerava improvável em países da periferia, mas que passou a ser possível depois do fim da URSS, se encerrou. Uma das maiores dificuldades da esquerda é admitir seu fim.

Mas o que veio depois não se explica em função de uma polarização. A polarização acontece quando os extremos se fortalecem. Não é o que estamos vivendo no Brasil desde 2016. Desde o golpe institucional, e como efeito da inversão da correlação social de forças, somente a extrema direita “endurece”, exercendo uma pressão de gravidade, como um arrastão da influência histórica dos reacionários. Arrastão unilateral não é polarização. Polarização assimétrica é mais elegante, mas continua sendo desproporcional.

No campo da esquerda se mantêm as posições e não ocorre uma radicalização. Ao contrário, o governo Lula se desloca para o centro, renuncia a qualquer mobilização, ampliando a coalizão com os partidos de direita para não ser ameaçado no Congresso. Portanto, basta uma tensão com os aliados que preservam a governabilidade para que a ameaça do neofascismo e seu projeto de subversão bonapartista do regime se tornem um perigo real.

Muitos fatores explicam a perplexidade, a redução de expectativas e a moderação na base social da esquerda. A confiança na liderança de Lula é grande. Mas há medo, desânimo e insegurança no movimento operário e sindical depois de anos de recuos e derrotas. No povo de esquerda, a disposição de luta não é elevada; pelo contrário. Não é muito diferente nos movimentos sociais populares. A capacidade de mobilização, desde os atos da campanha eleitoral de 2022, é pequena.

O ativismo militante transferiu para Alexandre de Moraes a responsabilidade pelo julgamento dos golpistas, a começar por Bolsonaro. Mas seria desonesto e injusto não destacar o papel do governo e do próprio Lula na desmobilização. A vanguarda busca um ponto de apoio que favoreça uma saída política mais avançada. De todas as concertações desde a posse, e foram muitas, nenhuma foi mais grave do que a atitude diante das Forças Armadas, mesmo depois que ficou clara sua cumplicidade com o golpismo.

A decisão de não aproveitar a oportunidade do aniversário dos 60 anos do golpe militar de 1964 para uma iniciativa de educação e mobilização política de massas foi desmoralizadora. O pior erro que a esquerda poderia cometer seria desvalorizar o impacto desta contraofensiva dos neofascistas. Se não forem interrompidos, avançarão.

O desafio de pensar para onde vamos só é possível se tivermos clareza de onde viemos e do que a história nos deixou como aprendizado. Desde 2016, quando mudou estruturalmente a correlação social de forças, cinco lições são fundamentais: (a) depois da vitória apertada contra Aécio Neves em 2014, a aposta em uma “governabilidade” com uma fração da classe dominante, através da nomeação de Joaquim Levy, fracassou e o golpe institucional de 2016, apoiado em mobilizações reacionárias gigantes, foi fulminante; E a aposta de que os Tribunais Superiores não iriam legitimar o golpe institucional dado através do Congresso Nacional também fracassou.

(b) A acumulação de derrotas ininterruptas até 2022, a desmoralização da operação Lava Jato, a prisão de Lula, a reforma trabalhista, a eleição de Jair Bolsonaro, mais uma reforma da previdência, a catástrofe humanitária durante a pandemia e uma nova onda de queimadas na Amazônia e no Cerrado deixaram sequelas, ainda não revertidas, no moral da classe trabalhadora e no ânimo da militância de esquerda.

(c) Minimizar o perigo da extrema direita foi um erro imperdoável, porque o neofascismo é um movimento social-político-cultural de massas, de dimensão internacional, que arrastou quase metade do país, nas urnas mas também na militância nas ruas e, portanto, não é somente uma corrente eleitoral. Além disso, esse movimento já provou que Bolsonaro consegue realizar a transferência de votos; (d) uma análise complexa da derrota eleitoral de Jair Bolsonaro em 2022 deve considerar muitos fatores, mas a lucidez exige reconhecer que o papel individual de Lula foi qualitativo; (e) a vitória de Lula alterou a correlação política de forças, mas não foi suficiente para inverter a correlação social de forças.

Mas este quadro é insuficiente para uma avaliação das discrepâncias nas relações social e política de forças. Há três questões fundamentais a serem consideradas: (a) a capacidade de iniciativa política não se esgota na luta política institucional “profissional” nas instâncias de poder, e o bolsonarismo mantém uma força social de choque nas ruas muito maior do que a do lulismo.

(b) Nas pesquisas e nas eleições, todas as pessoas têm peso igual, mas na luta social e política o que prevalece é a defesa de interesses das classes e das frações de classe mais organizadas, e o fato da esquerda ter força na maioria do semiproletariado mais pobre, entre a juventude, negros e mulheres, não tem o mesmo peso que o fato do bolsonarismo ter força no agronegócio, nas camadas médias proprietárias, nos assalariados que ganham entre 5 e 10 salários mínimos e nas igrejas evangélicas. Do mesmo modo, ter muita força no Nordeste não é o mesmo que ser maioria no Sudeste e Sul.

(c) Os maiores “batalhões” da classe trabalhadora organizada, que se concentra entre aqueles que têm carteira assinada no setor privado e estatais ou no funcionalismo público, continuam divididos, porque a extrema direita conquistou parte desta audiência.

Quando fazemos análise de conjuntura, é importante lembrar que a luta de classes não se reduz a uma luta entre Capital e Trabalho. Nem o capital nem o trabalho são classes homogêneas, e há que considerar as frações de classe: a burguesia tem várias alas com interesses próprios (agrária, industrial, financeira), ainda que seja muito concentrada, O mundo do trabalho tem realidades diversas: o proletariado, o semiproletariado, os assalariados com ou sem contratos, do Sul ou do Nordeste.

E as camadas médias são muito importantes: a pequena burguesia proprietária e a nova classe média urbana. A luta de classes não acontece somente no espaço da “estrutura” da vida econômico-social. Ela se desenvolve também na superestrutura do Estado, na forma de choques entre as instituições de poder: Governo, Legislativo, Justiça e Forças Armadas. Há um conflito em curso entre os Tribunais Superiores e o Exército e, em grande medida, contra o Congresso.

Seria um grave erro subestimar estes choques. Assim como há uma parcela da esquerda moderada que exagera o sentido dos duelos nas “alturas”, que são agigantados pela mídia comercial burguesa, há uma parcela da esquerda radical que desvaloriza o significado da luta política entre os representantes de frações da classe dominante que ocorre no teatro institucional. Esse é o papel do regime democrático-liberal: permitir que, publicamente, se expressem e resolvam essas diferenças.

A aposta do governo Lula na governabilidade “a frio”, sem ter que mobilizar uma base social de apoio, se apoia nesta divisão, e responde ao cálculo de que há que evitar, a qualquer preço, uma “venezuelização”. A Câmara dos Deputados, sob a liderança de Lira, conquistou uma fatia do orçamento superior à da maioria dos ministérios. Se enganam, no entanto, aqueles que depositam confiança desmedida nos desfechos destas disputas.

O destino de Jair Bolsonaro não depende somente de um julgamento “técnico”. Ele caminha para uma derrota jurídica, mas pode sobreviver politicamente enquanto 40% da população acreditar que ele está sendo perseguido. Depois do 8 de janeiro, a questão política central tem sido saber se Bolsonaro e os generais serão ou não condenados e presos.

Uma análise marxista deve partir do estudo das mudanças na situação econômica. Desde o início do mandato de Lula as três variáveis mais importantes foram: (a) a confirmação de que a entrada de capitais estrangeiros continuou elevada, garantindo uma redução do déficit no balanço de pagamentos, confirmando as expectativas positivas de investidores internacionais; (b) o superávit comercial bateu recordes históricos, elevando o patamar das reservas, assim como a arrecadação fiscal[v]; (c) a preservação do crescimento, que vinha desde o fim da pandemia, fez o desemprego diminuir mais rápido, os salários subiram e a inflação caiu – indicadores positivos.

Mas isso não foi o bastante para diminuir a audiência da extrema direita entre os assalariados de instrução mais elevada, do Sudeste e Sul e que ganham entre 3 e 5 salários-mínimos, não levando, portanto, a uma superação das divisões na classe trabalhadora. Há uma questão de método quando fazemos uma avaliação das oscilações de conjuntura: nem tudo se explica pela economia, o que nos remete à consideração de outras variáveis.

Quais são as decorrências do que está acontecendo no mundo e, em especial, nos países que têm mais impacto sobre a situação brasileira, como o peso de Donald Trump nos EUA, a eleição de Javier Milei na Argentina e a ascensão vertiginosa da extrema direita em Portugal? Tais sucessos devem ter levantado o moral do bolsonarismo. Quais foram as implicações das notícias diárias sobre o massacre que Israel conduz na Faixa de Gaza e da denúncia do genocídio feita por Lula?

Isto parece ter aumentado a simpatia pela causa palestina entre o lulismo, mas cresceu também o apoio ao sionismo entre os bolsonaristas. Tivemos, também, o impacto da maior epidemia de dengue da história, dos incêndios criminosos no Cerrado e na Amazônia e da elevação de feminicídios. Qual foi a repercussão nacional da operação da PM paulista na Baixada Santista? Ou da fuga de líderes do Comando Vermelho de uma penitenciária federal de segurança máxima? Qual é a capacidade de iniciativa da oposição bolsonarista depois do ato do domingo de 25 de fevereiro na Avenida Paulista? Qual será a resposta da esquerda? Tão importante quanto tudo isso, qual tem sido a repercussão das “entregas” do governo Lula, a grande aposta do Planalto?

Encerrado o verão de 2024, permanece incerto qual será o destino do governo de coalizão liderado por Lula. Mas a fórmula indeterminada de que “tudo pode acontecer” não é razoável. Embora o governo esteja diante de uma encruzilhada, é possível realizar algum cálculo de probabilidades. Depois do fracasso da sublevação de 8 de janeiro e do cerco ao núcleo duro do bolsonarismo, inclusive da alta oficialidade militar, uma nova tentativa insurrecional seria impensável. A extrema direita decidiu se reposicionar para disputar as eleições em 2024 e 2026.

O calendário eleitoral estabelece o contexto. Grosso modo, há três grandes cenários perante o Brasil, mas, por enquanto, um prognóstico ainda é impossível. O governo pode chegar em 2026 com suficiente aprovação, como aconteceu com Lula em 2006 e 2010, e conseguir a reeleição. O governo pode chegar a 2026 como Dilma Rousseff chegou em 2014, e o desenlace será imprevisível.

Finalmente, a esquerda pode chegar a 2026 muito desgastada e com alta rejeição, como foi a situação quando da candidatura de Fernando Haddad em 2018, e a oposição de extrema direita pode ser a favorita nas eleições. Claro que há sempre que lembrar do fator Forrest Gump: “shit happens”. Merda acontece. Existe sempre o acaso, o acidental, o aleatório. E dois anos é muito tempo. Não é incomum que a análise de tendências e contratendências da evolução da situação econômica, social e política se deixe deslumbrar pela tentação da omnipotência e iludir pela inércia mental.

Porém, o amanhã pode não ser uma continuidade sem sobressaltos de ontem. Não é possível antecipar as mudanças na situação mundial até 2026, as oscilações da situação econômica, as reviravoltas das disputas ideológicas e culturais, as transformações nos humores das classes e frações de classe, os estratagemas, as rasteiras, os escândalos, as manobras, os giros dos partidos e lideranças e dominar todas as variáveis. Isto posto, o mais provável é que permaneça a sequência do calendário eleitoral.

Nesse marco, o primeiro cenário é a possibilidade de uma reeleição de Lula. O segundo é a possibilidade de uma vitória eleitoral do bolsonarismo. O terceiro é o mais desconcertante, porque imprevisível. E se ou Bolsonaro ou Lula, ou nenhum dos dois, puder concorrer? Se, eventual e infelizmente, Lula não puder disputar, o mais provável seria uma candidatura de Haddad. E não é um segredo que sua popularidade é, qualitativamente, menor que a de Lula.

O projeto do governo Lula é aproveitar o contexto internacional de recuperação econômica após o impacto da pandemia, com a esperança de que este se mantenha, puxado, outra vez pela China e agora, também, pela Índia. O governo ambiciona manter um pacto com a fração burguesa que o apoiou no segundo turno de 2022 contra Bolsonaro e integrou os ministérios, e busca a governabilidade no Congresso com o Centrão para garantir a continuidade do crescimento e a realização de reformas.

No primeiro ano de mandato, a PEC da transição permitiu crescimento próximo a 3% e elevação da renda do trabalho em 12%, garantiu a ampliação do programa Bolsa-Família – que em 13 dos 27 Estados beneficia mais pessoas do que neles há trabalhadores com carteira assinada – a recuperação do salário mínimo, a reestruturação do IBAMA e da FUNAI, o novo programa Pé de Meia para os estudantes do Ensino Médio, a recuperação do Plano Nacional de Vacinação, o apoio dos bancos públicos para o projeto Desenrola, que favorece as famílias endividadas, a ampliação de acesso ao crédito com a queda das taxas de juros, a expansão de mais 100 unidades dos Institutos Federais, além de outras iniciativas que beneficiam as massas populares.

O governo busca o crescimento preservando o controle da inflação dentro da meta, insistindo em um ajuste fiscal gradual, apostando na elevação do investimento privado estrangeiro e também nacional através do arcabouço fiscal, que substituiu o Teto de Gastos. Em resumo, trata-se de uma aposta em um reformismo “fraco”, mais fraco do que entre os anos 2003/2010, ou quase sem reformas, mas com a garantia da preservação da democracia e da Frente Ampla contra a extrema direita. Só que no Brasil, mesmo pequenas reformas mudam a vida de milhões.

A estratégia repete, essencialmente, o projeto que foi sendo construído após a vitória eleitoral de 2002, e que permitiu as vitórias eleitorais de 2006, 2010, 2014 e, por uma pequena margem, de 2022. As premissas que o sustentam repousam em três cálculos. O primeiro é uma aposta de que o perigo de uma nova conspiração, como aquela que resultou no golpe institucional que derrubou o governo Dilma Rousseff, estaria descartado.

O segundo é a avaliação de que a derrota eleitoral da extrema direita e a inelegibilidade de Jair Bolsonaro tornam a hipótese da vitória de um herdeiro bolsonarista em 2026 muito improvável, senão impossível. O terceiro é a previsão de que a divisão burguesa sobre a necessidade de preservar o regime democrático-eleitoral é irreversível e que, em um segundo turno em 2026, a fração capitalista que se expressa através de Geraldo Alckmin e Simone Tebet voltará a defender Lula, porque não está disposta a correr o risco de uma segunda presidência da extrema direita.

Os três cálculos têm até mais do que um “grão de verdade”, mas desconsideram seriamente os terríveis riscos colocados, e esquecem as lições do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff. Essas lições se referem a cinco erros: (a) o primeiro é a subestimação da corrente neofascista, o erro mais catastrófico dos últimos sete anos: de sua audácia, sua implantação social e cultural, sua disposição de luta frontal, da confiança na liderança política de Bolsonaro, enfim, da resiliência do apoio social da extrema direita, que revela que a disputa não se reduz somente à percepção de melhoras nas condições de vida, já que tem em sua raiz também uma feroz luta política-ideológica e até cultural de uma visão de mundo reacionária.

(b) O segundo – é fantasia de que é possível manter, indefinidamente, uma governabilidade a “frio” e a idealização da Frente Ampla, acreditando que as lideranças burguesas incorporadas aos ministérios vão manter sua lealdade, esquecendo o papel de Michel Temer e exagerando a confiança na estabilidade do governo que repousa nos acordos com o Centrão no Congresso Nacional, e esquecendo também o perigo de chantagens inaceitáveis

(c) o terceiro é a subestimação pessoal de Bolsonaro como líder da oposição e pré-candidato, mesmo na condição de inelegível, já que, se necessário, podem substituí-lo por outro(a) – Tarcísio, Michelle, ou até outro “personagem” – já que a capacidade de transferência de votos permanece possível.

(d) O quarto é a desvalorização da emergência das reivindicações populares, dos negros, das mulheres, dos LGBTs, dos ambientalistas e da cultura, um erro que foi fatal para o peronismo na Argentina, já que a confiança na continuidade do crescimento econômico, condição para “turbinar” reformas progressivas, pode se frustrar, já que o arcabouço fiscal limita o papel dos investimentos públicos e o cenário internacional de demanda de commodities pode mudar.

(e) o quinto é ignorar a eleição de Donald Trump nos EUA, que irá gerar um efeito catalizador mundial e também no Brasil, bem como possíveis vitórias da extrema direita nas próximas eleições europeias, além de uma agudização dos conflitos no sistema internacional com a China.

Por último, quando pensamos no futuro, nos vemos diante do problema do papel dos indivíduos na História. Os três cenários esboçados – o favoritismo de Lula, uma eleição de disputa acirrada ou o favoritismo da oposição de extrema direita dependem de tantos fatores que não é possível fazer um cálculo de probabilidades com antecedência. Uma análise marxista não pode perder o sentido das proporções.

As lideranças fazem a representação de forças sociais. Mas seria uma superficialidade imperdoável diminuir o protagonismo de Bolsonaro: a presença dele fez diferença. A extrema direita teria se transformado em um movimento político, social e cultural com influência de massas depois de 2016 mesmo sem Bolsonaro? Trata-se de um contrafactual, mas a hipótese mais provável é que sim. O neofascismo é uma corrente internacional.

Não se pode explicar como uma coincidência a força simultânea de Donald Trump nos EUA, de Marine Le Pen na França, de Giorgia Meloni na Itália, de Santiago Abascal no Estado Espanhol e agora de André Ventura em Portugal e de Javier Milei na Argentina. As condições objetivas impulsionaram uma fração da classe dominante a abraçar uma estratégia de choque frontal. Mas a forma concreta que assumiu o neofascismo dependeu muito do carisma de Jair Bolsonaro.

Jair Bolsonaro é tosco, bruto e intempestivo, mas não é um idiota. Um imbecil não se elege à presidência em um país complexo como o Brasil. Jair Bolsonaro não tem muita instrução ou repertório, mas é esperto, astuto, ardiloso, velhaco. Nenhum energúmeno conquistaria a posição de liderança de que ele ainda usufrui hoje, depois de tantas denúncias, depois do desprezo pelos riscos à vida de milhões, da apropriação pessoal de joias da Presidência, de uma conspiração militar golpista, etc.

A chave de explicação de seu papel é seu desconcertante carisma, que impulsiona uma identificação apaixonada. Ele uniu a representação dos interesses da fração burguesa do agronegócio, negacionista do aquecimento global, com o ressentimento dos militares e das polícias, o rancor das camadas médias com a desconfiança popular manipulada pelas empresas-igrejas neopentecostais, o reacionarismo saudoso da ditadura militar com o machismo, racismo e a homofobia.

Ele não precisou dos cabelos desgrenhados e da retórica “anticasta” anarcocapitalista de Javier Milei, nem do nacional-imperialismo xenófobo de Donald Trump, nem da fúria islamofóbica de Le Pen. Porém, se vier a ser condenado e preso, sua autoridade irá diminuir.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc]

Referência


Valerio Arcary. A armadilha do bolsonarismo e os limites de lulismo. Usina Editorial, 334pp. [https://abrir.link/qnuNe]

Notas


[i]https://www.cartacapital.com.br/politica/governo-lula-pela-primeira-vez-atlas-capta-desaprovacao-superando-a-aprovacao/

[ii] Em uma escala de 1 a 5, onde 1 é bolsonarista e 5 petista, 25% declaram ser bolsonaristas extremos, na posição 1, e há 7% que se veem como bolsonaristas mais moderados, na posição 2. A taxa de brasileiros extremamente petistas, que se colocam na posição 5 da escala, era de 32% ao fim de 2022, oscilou para 30% em março deste ano, para 29% em junho e agora se manteve em 29%. Os petistas moderados, na posição 4, eram 9% em dezembro de 2022, 10% tanto em março quanto em junho deste ano, e agora são 11%.

https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniao-e-sociedade/2023/09/identificacao-com-bolsonarismo-se-mantem-apos-fim-de-seu-governo.shtml Consulta em 07/03/2024.

[iii] O índice de bolsonaristas extremos fica acima da média entre brasileiros com renda familiar de 5 a 10 salários (33%), na região Sul (33%), no conjunto das regiões Norte e Centro-Oeste (34%) e no segmento evangélico (38%). Idem.

[iv] Os petistas mais extremos, por sua vez, têm representatividade acima da média na faixa de 45 a 59 anos (39%), entre brasileiros que estudaram até o ensino fundamental (44%), na parcela dos mais pobres (37%), no Nordeste (44%) e entre católicos (37%). Idem.

[v] O saldo da balança comercial registrado em 2023 foi o maior de toda a série histórica, totalizando US$ 98,8 bilhões, com aumento de 60% em relação ao ano anterior. Em relação ao balanço de pagamentos, considerando os três meses encerrados em novembro, o déficit em transações correntes foi de US$ 2,7 bilhões, em comparação com US$ 14,4 bilhões no mesmo período do ano anterior. 

https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2024/01/balanco-de-pagamentos-balanca-comercial-e-cambio-evolucao-recente-e-perspectivas-9


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES