Por ERALDO SOUZA DOS SANTOS*
Comentário sobre a montagem de “Esperando Godot” do Teatro Oficina
Neste domingo passado, 8 de dezembro, ocorre a última encenação de Esperando Godot no Teatro Carlos Gomes, no centro do Rio de Janeiro. Última peça dirigida por José Celso Martinez Corrêa antes de sua morte trágica em julho de 2023, o Godot do Teatro Oficina atualiza o de Samuel Beckett face aos absurdos do presente.
Tamanha é a força interpretativa de Ricardo Bittencourt, no papel de Pozzo, e de Roderick Himeros, no papel de Felizardo (Lucky, no original de Beckett), sobretudo no primeiro ato, que Alexandre Borges e Marcelo Drummond, mais conhecidos do público, ficam eclipsados.
A peça deixa entrever em seus momentos mais interessantes referências à persistência de estruturas socioeconômicas do Brasil colonial e, talvez, para usar o conceito de Saidiya Hartman, da sobrevida da escravização no país. Vladimir lembra a Estragão que eles já trabalharam numa plantação de cana; o Mensageiro, preto, sugere que vive numa senzala na fazenda de Godot, que regularmente agride seu irmão; Pozzo vive numa Casa Grande. A representação de Felizardo, “escravo” no original de Beckett, com uma mochila de entregador de aplicativo vermelha nas costas liga a precariedade da profissão e a expansão de empresas como iFood a uma nova forma de escravização.
Himeros é um ator extraordinário, mas não consegui deixar de me perguntar durante as três horas de peça, como mero experimento especulativo e para além da questão da representatividade, o que mudaria na concepção e na recepção da obra caso a atriz ou ator que representa o “escravo” Felizardo fosse preta ou preto. O que mudaria se, na próxima – terceira – versão do Godot do Oficina, todos os horrores que vemos Felizardo sofrer no primeiro ato, e que provavelmente levam à sua mudez no segundo, fossem os horrores que caracterizam a vida dos pretos neste país?
É possível que muitos pretos não conseguissem suportar – e não sei se eu conseguiria suportar – ver uma pessoa preta em cena sofrendo as humilhações e violências que sofre Felizardo na peça. E não sei, sinceramente, se um Felizardo preto não seria eventualmente catártico para a audiência branca, grande parte da qual contribui para a reprodução das humilhações e violências sofridas por milhões que de felizardos e felizardas não têm nada, mas finge que não é com ela. Muito possivelmente, o sofrimento preto viraria espetáculo, como sempre e mais uma vez, em vão.
Felizardo preto ou branco, a peça, em sua forma atual, conforta apesar das suas boas intenções aqueles que se consideram parte do campo progressista: a referência à Palestina, a Brumadinho e à catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul, assim como as piadas sobre a COVID-19 e a incapacidade de pensar dos “bolsominions”, não chocam quem já chegou até o teatro conhecendo o Teatro Oficina.
As referências à escravização, nesse sentido, muito provavelmente também não chocam uma elite que já investiu devidamente seu dinheiro em manuais antirracistas e, igualmente, no ingresso para a peça. Para essa parte do campo progressista, um Felizardo preto não significaria absolutamente nada.
Apesar do conforto que proporciona às elites, a peça possui uma profundida crítica que só poderíamos ignorar por nossa própria conta em risco. Mesmo cego, Pozzo continua sendo capaz de escravizar Felizardo; mesmo após a morte de Godot pelas mãos de Exu, o Mensageiro preto continua a exercer seu papel de mensageiro (em nome de quem?); Didi e Gogo aparentemente se suicidam ao fim, o que não muda a ordem do mundo, mas a confirma.
A grande força da obra em sua versão afro-antropofágica consiste talvez em retrazer à cena a persistência do trabalho forçado e da escravização – não a sobrevida, mas a “vida” da escravização: oferecendo, assim, uma refutação poderosa a uma teoria e a um conceito que nos convidam a ver na escravização um zumbi quando se trata, no fundo, de uma velha conhecida, muito viva, obrigada.
*Eraldo Souza dos Santos é pós-doutorando em filosofia na Universidade de Cornell.
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