A dialética da adolescência

Imagem: NorrieXF
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Por LUIZ MENNA-BARRETO*

Os jogos de poder na família, na escola, no trabalho e nas ruas, na construção de nichos temporais

Em primeiro lugar, este texto é uma segunda tentativa de compartilhar com os leitores do site A Terra é Redonda, minha proposta de pensar a construção de uma biologia crítica, apoiada na dialética. Nesse esforço espero que seja tanto possível como desejável a articulação com temas da nossa sociedade. Em segundo lugar, a adolescência é sinônimo de crise, tanto com desfechos tristes (fragilização de laços familiares, por exemplo), como com sucesso no processo de amadurecimento em curso.

Antes que alguém pergunte sobre meu lugar de fala num ensaio sobre adolescência, além da minha qualificação acadêmica, relato que vivo com minha família na zona rural de Mogi das Cruzes, família composta por minha companheira Cláudia, eu, e duas adolescentes (hoje com 13 e 16 anos) adotadas por nós há mais de 12 anos. Com as duas passamos por conflitos temporais que muito me fizeram pensar no manejo dos tempos aí presentes.

Dois equipamentos entram em cena, a TV e o celular, com nossas tentativas de criar um uso menos excessivo de ambos, sobretudo no consumo do lixo imposto por essas mídias. Não discutirei aqui os inúmeros artigos publicados nos últimos tempos como alerta aos prejuízos do excesso de tela, defendemos um uso moderado e, quando possível, monitorado por nós. Os conflitos aparecem nas conversas e brigas sobre o tempo de tela. A dificuldade maior que enfrentamos é o vício compulsivo das meninas que não admitem restrições. Além das telas, conflitos emergem nas frequentes procrastinações da hora de ir dormir e de fazer tarefas domésticas das quais são incumbidas.

Levanto voo do cotidiano e me aventuro em altitudes filosóficas. Trago aqui inicialmente um tema de reflexões presentes no campo acadêmico sobre evolução. Minhas leituras sobre as temporalidades envolvidas na evolução podem ser resumidas em dois planos distintos, mas completamente integrados. Um plano, mais amplo, é de um tempo que convida uma vista de longo alcance, que trata das origens e mudanças, de características tanto físicas como comportamentais. Esse plano é o da filogênese. O segundo plano, mais curto, é aquele no qual testemunhamos mudanças ao longo da vida dos indivíduos, é o plano da ontogênese. Proponho que a adolescência e suas crises sejam compreendidas nessas duas dimensões temporais, possibilitando assim intervenções melhor fundamentadas no conhecimento atualizado.

Parece-me oportuno e necessário introduzir aqui um conceito muito caro aos estudiosos da evolução, o conceito de nicho, quase sempre reduzido à sua dimensão geográfica, espacial, presente por exemplo nas explicações sobre a busca de alimento, que acompanha e ajuda a analisar tanto a residência como o deslocamento de espécies em busca de novos ambientes. Esses deslocamentos e consequente adaptação a novos cenários, certamente configuram marcos na evolução das espécies.

Aqui aparece claramente a dimensão temporal do nicho, fundamental para explicar permanências e mudanças. Na avaliação da temporalidade presente nesses processos me parece residir uma temática que merece incursões criativas, daí a proposta de nicho temporal. Uma pergunta que ilustra uma mudança na temporalidade é a “opção” pela diurnalidade em alguns mamíferos e que hoje caracteriza a nossa espécie entre outros primatas.

Explorando a preferência por atividades de dia e repouso noturno, apostamos na visão como fonte importante de interações com o ambiente, desenvolvemos ferramentas e linguagem escrita, por exemplo. Assim, ao conceito de nicho espacial deve ser acrescentada a noção de nicho temporal que ajudaria a compreender melhor os casos de “migrações” temporais como essa da diurnalidade em alguns mamíferos, mas certamente não todos, ratos continuam noturnos e nossos cães e gatos pagam custo alto para conviver conosco – bom exemplo de um conflito temporal, não lhe parece, caro leitor?

Sugiro aos leitores curiosos um registro dos horários de atividade e repouso de seus animais e dos humanos presentes no ambiente doméstico, ali vai aparecer claramente o jogo entre os ritmos dos humanos e dos animais do ambiente doméstico.

Mantenho daqui para a frente o foco nas temporalidades humanas, considero a seguir aquela construída na ontogênese dos humanos desde o nascimento (e provavelmente desde a gestação). Simultaneamente com as adaptações filogenéticas, de longo prazo, que nos fazem seres diurnos, testemunhamos também a construção de um fenômeno fascinante, as diferenças de preferências de horários de atividades entre indivíduos.

Assim, a diurnalidade se expressa com alguma diversidade, há pessoas mais matutinas e outras mais vespertinas, diversidade que pode ser facilmente mensurada através de questionários de preferências, originalmente propostas por Horne e Östberg (1976) e estudadas por nós no Brasil (Benedito-Silva et al. 1990). A partir das respostas a esses questionários com pontuações para cada opção, podemos dividir a população entre os chamados cronotipos, sendo que metade tem sido caracterizada como cronotipos intermediários, e os 20% como matutinos ou vespertinos moderados, sendo os 5% os matutinos ou vespertinos extremos.

As diferenças de preferências por atividades diurnas e noturnas como objeto de investigação remonta ao final do século 19. E no Brasil, nessa época, o tema aparece na literatura: Machado de Assis (1869) faz um relato bem-humorado dessas diferenças no conto “Luís Soares” (CF) sobre um vespertino convicto e seus conflitos temporais. Escreveu Machado “Trocar o dia pela noite, dizia Luís Soares, é restaurar o império da natureza corrigindo a obra da sociedade”.

Essa atribuição da noite como fase natural de atividade não vem recebendo apoio no ambiente científico, onde aparece uma ideia dominante entre os pesquisadores que discutem os cronotipos. Segundo a maioria desses autores acometidos de grave incompreensão das diversidades, os tipos vespertinos são mais propensos a problemas de saúde (sono, aprendizagem, humor etc), o que estatisticamente é verdade, mas não passa de uma análise superficial que não considera o processo pelo qual a vespertinidade se constrói.

Essa construção é o que me atrai, pois ela contém um pouco da história ontogenética dos indivíduos e é sobre isso que convidarei o leitor a refletir. No imaginário popular, os vespertinos tendem a ser chamados de vagabundos ou preguiçosos, o que coincide com o preconceito dominante no ambiente científico. A tarefa necessária aqui é chamar para uma leitura mais profunda que inclua tanto a história da espécie como a história dos indivíduos, dentro do que estou chamando de nicho temporal.

Convido/convoco um autor que venho lendo ultimamente, o francês Henri Lefebvre, especialmente em sua obra póstuma Ritmanálise (Lefebvre, 2019), agora sob o prisma do olhar dialético que é proposto ali. Lefebvre escreve que a identificação dos padrões temporais humanos nos mais diversos ambientes (doméstico, escolar, laboral) revela sempre jogos de poder entre os envolvidos.

Assim, caros leitores, análises temporizadas dos conflitos domésticos como nas querelas domésticas sobre a hora de dormir (e isso aparece na voz dos adultos em tons mais ou menos impositivos) e as resistências oferecidas por adolescentes (desde a simples recusa às procrastinações variadas). Nesses conflitos é razoável supor o exercício de jogos de poder nesse cenário. Ainda inspirado nos escritos de Henri Lefebvre, agora na vertente pedagógica, esse processo chamado por ele de “adestramento” (ajuste de temporalidades) pode tanto gerar acomodação como rebeldia nos jovens, o que me traz de volta ao tema da adolescência e à dialética necessária.

Necessária por servir de convite para compreendermos melhor a dimensão temporal das nossas existências, a diversidade evidente nos conflitos e os desafios daí resultantes. Além da nova trilha teórica que essa temática das temporalidades domésticas permite sugerir, outros ambientes merecem esse método de análise, a escola e seus horários, a fábrica e o escritório acabam abrigando concepções sobre as temporalidades envolvidas possivelmente relevantes.

*Luiz Menna-Barreto é professor titular aposentado “sênior” de ciências biomédicas na EACH-USP. É autor, entre outros livros, de História e Perspectivas da Cronobiologia no Brasil e na América Latina (Edusp).[https://amzn.to/4i0S6Ti]

Referências


Horne, J.A. & Östberg, I. A self-assessment questionnaire to determine morningness-eveningness in human circadian rhythms, Int J Chronobiology, 4(2):97-110, 1976.

Benedito-Silva, A.A., Menna-Barreto, L., Marques, N. e Tenreiro, S. A self-assesment questionnaire for the determination of morningness-eveningness in Brazil. Chronobiology: Its role in Clinical Medicine, General Biology, and Agriculture, Part B, p. 89-98, 1990.

Lefebvre, H. “Éléments de Rhythmanalyse et autres essas sur les temporalités” ed. Eterotopia, 2019. Publicado originalmente pela ed. Syllepse em 1992. Há tradução para o português, ed. Consequência, 2021.

Machado de Assis, no conto “Luis Soares”, parte da obra Contos Fluminenses publicada originalmente em 1869.


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