O racionalismo e o futuro dos libertários

Imagem: Artem Malushenko
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

Na primeira metade do século XX acreditávamos em teorias raciais e na supremacia ariana; hoje acreditamos na supremacia do pensamento ocidental. Quem não pensa como um ocidental, não existe!

O racionalismo pode ser considerado o cerne do pensamento ocidental, em que “Penso, logo existo” assumiu a sua forma caricatural. E o racionalismo passou a constituir o alicerce para a construção dos conceitos de indivíduo, individualidade, livre arbítrio, liberdade e democracia no pensamento ocidental, que se pretende universal.

Nas civilizações não ocidentais, por sua vez, a cabeça não foi decepada, está integrada ao corpo. Cito o diálogo de Gustav Jung com o chefe dos nativos Pueblos Taos do Novo México: “Veja, dizia Ochwiay Biano, como os brancos têm um ar cruel. Tem lábios finos, nariz em ponta, os rostos sulcados de rugas e deformados. Os olhos têm uma expressão fixa, estão sempre buscando algo. O que procuram? Os brancos sempre desejam alguma coisa, estão sempre inquietos, e não conhecem o repouso. Nós não sabemos o que eles querem. Não os compreendemos e achamos que são loucos!”

Perguntei-lhe então [Jung] por que pensava que todos os brancos eram loucos. Respondeu-me: “Eles dizem que pensam com suas cabeças.”

– Mas naturalmente! Com o que pensa você? – perguntei admirado.

– Nós pensamos aqui – disse ele, indicando seu coração.

O racionalismo ocidental utiliza-se da abstração, a decomposição do real em elementos universais (simples, decompostos). Em Sylvie and Bruno concluded, Lewis Carroll elucubra sobre a utilidade de “um mapa de um país em escala de uma milha por milha!” Na mesma toada, Jorge Luis Borges, em seu conto magistral de um só parágrafo de 118 palavras e referência pérfida, Del rigor en la ciência, descreve o destino do inútil “Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele”.

Contudo, o racionalismo deu margem à dissonância cognitiva, que, ironicamente, talvez seja a melhor caracterização da civilização ocidental. No pensamento ocidental só existem indivíduos. Entretanto, em cada um dos indivíduos também podem habitar inúmeros personagens (dissonantes). Os protagonistas em Lev Tolstoy, depois de todas as considerações que fazem, normalmente seguem um curso oposto ao de suas deliberações.

Por acaso, tenho contato com o pensamento chinês, porque sou terapeuta formado em fitoterapia e acupuntura. Na minha formação, para poder acompanhar minimamente as aulas, tinha que pendurar minha farda acadêmica ocidental na entrada da sala, porque há uma quebra total de paradigma entre o pensamento ocidental e o chinês. O pensamento ocidental baseia-se no princípio da causalidade (causa); e o pensamento chinês baseia-se no princípio da casualidade (casual). Os ocidentais não sossegam enquanto não acham uma boa explicação para tudo o que passa pelas suas mãos. Na medicina, quando não encontram uma explicação que seja factível, vão logo empregando termos como síndrome, precoce, autoimune, múltipla etc.

Os chineses, por sua vez, contentam-se com a observação, dobram-se até mesmo ao menor, mais insignificante e absurdo detalhe, porque consideram que o organismo é um mosaico misterioso a ser mapeado. Para meus pacientes, eu digo que não acredito em medicina chinesa, mas que ela funciona, funciona.

A física quântica e a física estatística ainda estão muito longe de contaminar o pensamento ocidental. Enquanto isso… o racionalismo nos impele a justificar todos os comportamentos humanos, os “justificáveis” e os “injustificáveis”, para os quais construímos narrativas plausíveis, verborragia. O europeu, com o seu racionalismo, desenvolveu uma ardilosa malícia, que as demais sociedades, crédulas, desconhecem. E, nas disputas de narrativas, a verdade do europeu passou a ser o seu dom de iludir. Parole, parole, parole… Você pode estar pisando no pescoço de uma pessoa enquanto diz que a ama, “veja, estou lhe dizendo, te amo”.

Pode levar à fogueira os que se recusam a fazer reverência a Aquele que oferecia a outra face aos que lhe golpeavam a direita; oprimir e exterminar nativos e aborígenes para salvar a sua alma e a deles; incendiar a esquadra da milenar civilização chinesa argumentando que está defendendo o livre comércio; invadir o Japão para modernizá-lo. Você pode ocupar as casas, as aldeias, as cidades de uma população nativa, expulsá-la de sua terra e construir uma narrativa heroica ao mesmo tempo em que silencia o povo palestino oprimido. Pode promover uma carnificina na Faixa de Gaza para defender a civilização ocidental, afinal, o seu exército já traz no título o nome “defesa”, então não pode haver dúvidas.

E, porque a Revolução Industrial levou o mundo ocidental a dominar o planeta, acreditamos que o pensamento ocidental não é só universal, é a expressão máxima do pensamento humano. Quem não pensa como um ocidental é um sub-humano. Porém, há que se lembrar que a pujante filosofia alemã floresceu na mesma sociedade que o nazismo. Na primeira metade do século XX acreditávamos em teorias raciais e na supremacia ariana; hoje acreditamos na supremacia do pensamento ocidental. Quem não pensa como um ocidental, não existe!

O racionalismo ocidental, além de dar margem à dissonância cognitiva e origem às disputas de narrativas, criou, como subproduto, ou melhor, como refugo, os libertários, aqueles que não cabem nos estreitos limites das instituições do mundo ocidental, da família ao estado, passando pelas instituições acadêmicas. Tudo deve caber em instituições. Para aqueles que não cabem nas instituições ordinárias – loucos, irreverentes, dissidentes, revolucionários e anarquistas – foram criadas instituições específicas, manicômios e cárceres.

Em relação aos anarquistas, particularmente, antes dos bolcheviques se consolidarem no poder na União Soviética, o anarquismo era muito expressivo mundialmente. Nos Estados Unidos, o movimento operário, a esquerda e os vermelhos não eram comunistas, eram anarquistas. Os anarquistas eram socialistas, contra qualquer forma de opressão, principalmente do estado; e antimilitaristas por natureza, contra as guerras entre os estados nacionais.

Depois da Primeira Guerra Mundial, os anarquistas foram duramente reprimidos em todos os países, inclusive na União Soviética. Em 1919, os Estados Unidos, que temiam uma revolução em escala mundial, deportaram seus líderes anarquistas, entre eles Emma Goldman e Alexander Berkman, que foram encaminhados para a Finlândia e escoltados até a fronteira com a Rússia. Evidentemente, os anarquistas norte-americanos ficaram aterrorizados com o oportunismo burocrático bolchevique.

Na Guerra Civil Espanhola de 1936-39, o movimento anarquista foi aniquilado tanto pelas forças fascistas, com a intervenção direta da Alemanha e da Itália, como pelos comunistas apoiados pela União Soviética, que consideravam os anarquistas contrarrevolucionários. George Orwell relatou a Guerra Civil Espanhola em Homenagem à Catalunha. Na Espanha, George Orwell atuou junto ao POUM, Partido Obrero de Unificación Marxista, de orientação anti-stalinista. A União Soviética considerava contrarrevolucionários tanto os anarquistas como os militantes do POUM. Orwell esteve nas trincheiras das milícias do POUM, enfrentando os fascistas; e nas trincheiras de Barcelona, enfrentando os comunistas apoiados pela União Soviética.

Enfim, durante a Guerra Fria, os estados capitalistas e o comunismo soviético tomaram conta do cenário internacional, silenciando o movimento libertário anarquista, que foi impelido ao esquecimento.

Sócrates foi condenado por corromper a mente da juventude… e partiu tranquilamente para o mundo desconhecido. Baruch (Benedictus) de Spinoza, este racionalista antirracionalista, que usou a razão para transcendê-la, foi heremizado (excomungado) da religião judaica e sua obra foi incluída no índice dos livros proibidos pela Igreja Católica. Michel Foucault percorreu os meandros e os tortuosos caminhos do universo da loucura. E sua polêmica descrição da insurreição iraniana de 1978, contra o processo de modernização promovido pelo governo do Xá, alinhado ao ocidente, escandalizou a esquerda ocidental.

Em Teerã, ele se surpreendeu e reportou o que lhe parecia a procura dos iranianos por algo como uma espiritualidade política, uma revolta escatológica religiosa. Seus críticos interpretaram suas reportagens como se quem estivesse à procura de uma espiritualidade política fosse o próprio Michel Foucault (e não os iranianos) e, depois, o acusaram de defender os caminhos que a revolução iraniana efetivamente tomou.

Tudo indica que a ascensão em curso da direita nos países ocidentais é uma reação à crise do ocidente, um apego agonizante à sua hegemonia em xeque [https://aterraeredonda.com.br/reacao/]. E o pensamento ocidental, que se pretende universal, está fadado a ter que se confrontar com as milenares formas de pensamento das culturas orientais. Que lugar ocupam efetivamente possíveis loucos, irreverentes, dissidentes, revolucionários e anarquistas nas atuais culturas orientais? Qual lugar está reservado aos libertários no futuro rearranjo universal?

* Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Do socialismo científico ao socialismo utópico [amz.run/7C8V].


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