Qual é a viagem mais longa?

William Turner, Estudo de vinheta de um navio em uma tempestade, c.1826–36
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Por LEONARDO BOFF*

O desejo não é um impulso qualquer. É um fogo interior que dinamiza e mobiliza toda a vida psíquica

 O grande observador e conhecedor dos meandros da psiquê humana Carl G. Jung, disse certa vez que a viagem mais longa não era à Lua ou à alguma estrela. Era rumo ao próprio coração. Nele habitam anjos e demônios, tendências que podem levar à loucura e à morte bem como energias que conduzem ao êxtase e à comunhão com o Todo. Como chegar a ele e auscultar suas indicações?

 Há uma questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é a estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o caso de sumariá-las.

Indo diretamente ao assunto diria que, para mim, não é a razão como comumente se afirma. Esta não é a primeira que irrompe no processo da antropogênese. O cérebro neocortex, na sua configuração atual, que responde pela racionalidade, irrompeu há apenas um milhão de anos. Bem antes surgiu cérebro reptiliano que responde por nossos movimentos instintivos, surgido há 313 milhões de anos. Bem depois, o cérebro límbico que responde pela sensibilidade, pelo afeto e pelo cuidado, surgido com os mamíferos há 210 milhões de anos.

Portanto, a razão atual é tardia e molha suas raízes nos cérebros anteriores, especialmente no límbico, portador do enternecimento e do amor que vicejam em nós. Somos antes mamíferos racionais que animais racionais.

 O pensamento ocidental é logocêntrico. Conferiu centralidade à razão. Colocou o afeto sob suspeita, a pretexto de que prejudica a objetividade do conhecimento. A razão pura kantiana não existe. A razão, por ser incorporada, sempre vem impregnada de interesse (Jürgen Habermas), de emoção e de paixão, portanto está imbuída pelo cérebro límbico.

Conhecer é sempre um entrar, com tudo aquilo que somos, em comunhão com a realidade. Desse encontro nasce o conhecimento. A palavra francesa para conhecer é etimologicamente rica: connaître – o nascer junto, sujeito e objeto.

Mais que ideias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, ideias-força, experiências seminais e o amor ou o ódio que nos movem e nos põem marcha. Eles nos levantam, nos fazem arrostar perigos e até arriscar a própria vida.

O que primeiramente reage em nós é a inteligência cordial, sensível e emocional. Isso o demonstrou Daniel Goleman em seu conhecido livro Inteligênia emocional (1995). Segundos depois da emoção, entra a razão. Ocorre que no Ocidente a razão foi absolutizada, como a única forma válida de entrar em contacto com o real. Ocorreu algo que se exacerbou e perdeu a justa medida: o racionalismo que significa o totalitarismo da razão.

Ele chegou a produzir em alguns setores humanos uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao outro diferente e ao sofrimento humano e da Mãe Terra. É o que estamos assistindo na Faixa de Gaza, um genocídio, a céu aberto, de milhares de crianças assassinadas a mando de um Primeiro Ministro israelense insensível e sem coração.

Modernamente o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) estão recuperando centralidade. Esse passo é hoje imperativo, pois somente com a razão (logos) não damos conta das graves crises por que passam a vida, a humanidade e a Terra. A razão intelectual precisa integrar a inteligência emocional sem o que não construiremos uma realidade social de rosto humano. É só pela afeição que chegamos ao outro. É o afeto e o amor que nos faz realmente humanos.

Um dado, entretanto, cabe ressaltar por sua relevância e pela alta ancestralidade de que goza: é a “estrutura do desejo” que marca a psiqué humana. Partindo de Aristóteles, passando por Santo Agostinho e pelos medievais como São Boaventura (que chama São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), culminando com Sigmund Freud e René Girard nos tempos mais recentes, todos afirmam a centralidade da estrutura desejante do ser humano.

 O desejo não é um impulso qualquer. É um fogo interior que dinamiza e mobiliza toda a vida psíquica. Por sua natureza, o desejo não conhece limites. Pois não queremos apenas isso ou aquilo, queremos tudo, até a eternidade como observava Friedrich Nietzsche. Esse impulso irrefreável confere um caráter insaciável e infinito ao projeto humano.

O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando realizado, uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto que realiza seu impulso infinito. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma propriedade, uma viagem.

Não passa muito tempo e aquelas realidades desejadas e finitas lhe parecem insatisfatórias e apenas fazem aumentar o vazio interior, grande do tamanho de Deus. Como sair deste impasse tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda realidade? Borboletar de um objeto finito a outro significa nunca encontrar repouso.

O ser humano tem que se colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto adequado ao seu desejo? Ouso responder: este é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o Infinito e não o finito, é Deus e não o mundo por melhor que seja. Nossa sede de infinito é o eco de um obscuro Infinito que nos chama. Quem é ele?

Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum de Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o infatigável peregrino do Infinito. Em sua autobiografia, As Confissões testemunha com comovido sentimento: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Tarde te amei. Tu me tocaste e eu ardo de desejo de tua paz. Meu coração inquieto não descansa enquanto não repousar em ti” (livro X, n. 27).

Aqui temos o percurso do desejo que busca e encontra o seu real e obscuro objeto sempre desejado, no sono e na vigília: o Infinito. Só o Infinito se adequa ao desejo infinito do ser humano. Só então termina a mais longa viagem e começa o sábado do descanso humano e divino. É o descanso dinâmico e a paz serena, frutos da mais longa e tormentosa viagem rumo ao próprio coração.

*Leonardo Boff é filósofo, teólogo e escritor. Autor, entre outros livros, de Reflexões de um velho teólogo: Teólogo e pensador (Vozes). [https://amzn.to/3BQta0I]


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