Cão de Gaza

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Por FLÁVIO R. KOTHE*

Fico deitado aos pés do meu dono, um velho andarilho que cansou de andar. Parou onde não deveria ter parado. Tinha raízes aqui, as terras da família foram tomadas pelos israelitas

Tanques inimigos rondavam e rondam nossos campos e ruas, bombardeavam e bombardeiam prédios, escolas, hospitais, tinham e continuam tendo sede do sangue de crianças e mulheres. Queriam e querem acabar com nosso povo. Eu sou apenas um pobre cão, tenho sobrevivido, apenas sobrevivido.

Não tínhamos armas capazes de enfrentar esses monstros de ferro e aço, não tínhamos aviões que enfrentassem aqueles que cruzam nossos céus. São uma cruzada de destruição e morte, como foram as cruzadas cristãs. Pela manhã, houve um silêncio que não era inocente. Prenunciava a tempestade. Temos medo até de respirar.

Fico deitado aos pés do meu dono, um velho andarilho que cansou de andar. Parou onde não deveria ter parado. Tinha raízes aqui, as terras da família foram tomadas pelos israelitas. Foi criado longe, bem longe. Ele se tornou bom matemático, mas desistiu de tudo quando viu que não conseguia calcular sequer o que seria melhor para ele. Quando tudo é contra nós, não há como fazer a conta certa.

Creio que meu dono, quando me adotou, calculou que teríamos ainda o mesmo número de anos a viver. Cães vivem menos que os humanos. Ele me recolheu na rua, me deu de comer e beber: me salvou, sem precisar. Por gratidão, decidi dedicar minha vida a lhe fazer companhia. Adotamos um ao outro.

Tínhamos um quarto alugado em uma casa palestina. As crianças brincavam comigo. Quando meu dono saía pela manhã para trabalhar num terreno descampado fora da cidade para plantar verduras e legumes, eu ia junto. Era uma boa caminhada. Enquanto ele capinava e remexia a terra, contava como, forçado a sair das terras que durante 700 anos haviam sido da família, decidira conhecer o mundo. Tornou-se um homo viator, para acrescentar: “Como se o homem não tivesse a vocação da morada, um lugar onde construir sua vida. A casa acaba sendo a nossa extensão”.

Eu era tudo o que ele tinha de uma família. Nós nos bastávamos. Ele queria descobrir o que havia feito sentir-se tão atraído por aquele lugar. Ao chegar, tinha sido tomado pela sensação de “aqui é o meu lugar”. Iria precisar muito anos para entender aquilo que no primeiro instante havia sentido, como se fosse uma iluminação.

Ontem recebemos ordens dos soldados de Israel, de que deveríamos sair da casa. Viemos para o terreno que ele cultiva. Passamos a noite numa pequena barraca. Há pouco, meu dono pousou a enxada, sentou-se numa pedra, me pegou no colo e ficou me olhando nos olhos: “Eu não gosto quando me mandam embora do meu lugar. Ele é meu, e eu sou dele. Se eu tiver de ir embora, vou deixar você com a família que é dona da casa. As crianças vão cuidar de você. Nem todos os humanos se tornam animais domésticos”.

Estávamos fora da cidade, no terreno que era a nossa horta. Ouvíamos lá longe os tiros de canhão, o pipocar das metralhadoras, zumbidos dos aviões. Vinham da direção de onde ficava a nossa morada. Notei a tristeza no olhar do meu protetor. Era meu amigo, e amigo não tem defeito. Lambi suas mãos, para saber que podia contar comigo para o que desse e viesse.

Eu não era bom caçador. Raramente apanhava um rato. Estavam escasseando, não havia comida para ninguém. Quando meu amo conseguia um prato de comida, eu ficava sentado ao seu lado, esperando que me desse algum bocado. Era generoso. De tudo me dava parte. Se passávamos fome, passávamos juntos. Não havia solidão.

Quando o som dos tiros e das bombas cessou, já estava anoitecendo. Lentamente fomos retornando à casa, havia pessoas feridas e apavoradas pelas ruas. Quando chegamos perto, percebemos que não havia mais casa aonde retornar. Reduzida a escombros. Alguns vizinhos andavam entre eles, procurando os moradores. Ficaram contentes em nos ver vivos.

O pai e a mãe tinham morrido. Duas crianças tinham sido levadas, feridas, por uma ambulância. Duas outras estavam mortas. Meu amo me disse, devagar: “Muitas vezes não podemos decidir nada. A vida decide por nós. Eu vou ter de ficar, para cuidar dessas crianças, até chegar a nossa vez”.

Senti profunda tristeza em sua voz. Não havia muito a dizer. Apenas dei um curto latido de volta, como quem entende, mas nada pode fazer.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc]


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