Por RODRIGO NUNES*
Apresentação da edição brasileira do livro récem-editado de Alexander Bogdanov, Ensaios de Tectologia: A Ciência Universal da Organização (ed. Machado, 2025)
Do ponto de vista da organização – Bogdanov e a esquerda agostiniana
Para Dri
“Progresso e entropia”, o primeiro capítulo de Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos de Norbert Wiener, é também um pequeno tratado de demonologia. Depois de começar, como se poderia esperar, com o célebre demônio de Maxwell, o texto se volta à comparação de duas versões do diabo, que Wiener define como maniqueísta e agostiniana. Na primeira, proposta pela heresia que Santo Agostinho primeiro abraçara e depois se dedicara a combater, o diabo seria uma força ativa oposta à ordem, um adversário infinitamente criativo e capaz de qualquer artimanha no seu propósito de desorganizar a criação. Na segunda, que o Pai da Igreja defenderia após romper com os maniqueus, o demônio seria não o contrário da ordem, mas sua ausência, e “não um poder em si mesmo, mas uma medida de nossa fraqueza”,[i] “a resistência passiva da natureza e não a resistência ativa de um oponente”.[ii]
O nome científico dessa resistência é entropia; e a convicção de Wiener de que a segunda das duas versões seria a certa segue da ideia de que “[e]stamos imersos numa vida em que o universo como um todo obedece à segunda lei da termodinâmica: a confusão cresce e a ordem diminui”.[iii]
Esse preceito, o matemático se apressa em explicar, não exige que se abandone toda esperança de sucesso na luta contra o inimigo silencioso: “a segunda lei da termodinâmica, embora seja um enunciado válido sobre a totalidade de um sistema fechado, é certamente não válido no que tange uma parte não isolada do mesmo. Há ilhas locais e temporárias de entropia decrescente num mundo em que a entropia como um todo tende a aumentar, e a existência dessas ilhas é o que permite a alguns de nós afirmar a existência do progresso”.[iv]
Assim, se em um sentido derradeiro “o próprio progresso e nossa luta contra a entropia devem inevitavelmente acabar no declive de que estamos tentando escapar”,[v] isso não implica a impossibilidade de vitórias “locais e temporárias”, nem a ausência de motivos para lutar por elas.
Aleksander Aleksandrovitch Malinovsky, conhecido pelo pseudônimo Aleksander Bogdanov, nasceu em 22 de agosto de 1873 em Sokólka, hoje território polonês, e morreu em Moscou, 54 anos mais tarde como um apóstata do marxismo russo. (Um texto que escreveu na mesma época destes Ensaios de tectologia tinha o título “Uma década de excomunhão do marxismo (1904-1914)”, e só viria à luz em 1995, com mais de oitenta anos de atraso.) Embora as polêmicas teóricas levadas contra ele tenham frequentemente sido máscaras para disfarçar disputas pelo controle da fração bolchevique do futuro Partido Comunista Russo, seria possível dizer que o motivo fundamental para que chegasse ao fim da vida na condição de pária e herege foi sua tentativa de incorporar à doutrina de Marx as implicações de uma revolução científica iniciada no século XIX, e que Wiener atribui a figuras como James Clerk Maxwell, Josiah Willard Gibbs e Ludwig Boltzmann: a introdução do método estatístico na física. Essa revolução, segundo o autor de Cibernética e sociedade, fez com que a física deixasse de falar do que acontecerá necessariamente para se ocupar daquilo que pode acontecer com probabilidade suficiente, e operou a passagem do universo rigidamente determinístico da mecânica newtoniana para o universo contingente da ciência contemporânea — cuja incompletude, “quase uma irracionalidade em meio ao mundo”, se assemelha à admissão freudiana de “um componente irracional profundo na conduta e no pensamento humanos”.[vi]
O que isso implicava para o marxismo, ao qual Bogdanov aderiria em Tula, cidade para onde foi banido no fim de 1894 após participar de um protesto enquanto estudante de química na Universidade de Moscou? Uma consequência importante toca num ponto central às pretensões científicas da ortodoxia elaborada por seguidores menos informados sobre a ciência de seu tempo que o próprio Marx, e que tinham, por isso, passado ao largo das transformações então em curso: o determinismo histórico. Quando a própria ciência natural abandonava a necessidade em favor da contingência, a cientificidade do marxismo não podia mais ser medida pela sua capacidade de enunciar leis capazes de estabelecer o rumo que a História haveria necessariamente de tomar. De onde uma outra consequência, de ordem prática e política: se não havia necessidade histórica absoluta, a revolução e a sociedade sem classes não eram resultados inevitáveis, o que subtraía ao marxismo sua força profética ao mesmo tempo em que elevava o problema da organização desses resultados à posição de questão fundamental. Por último, na escala cósmica em que as novas descobertas se desenrolavam, uma consequência se impunha à própria expectativa de progresso humano que o projeto revolucionário embalava. No fim, conforme descobriram os marcianos na ficção científica comunista Estrela vermelha, publicada por Bogdanov em 1908, a luta entre classes é apenas um fetiche a ser superado no caminho do reconhecimento da verdadeira luta, aquela da espécie contra a resistência passiva (e ativa) imposta por seu meio — uma contenda a que nem o comunismo jamais saberia dar cabo e que, em última análise, jamais poderia ser vencida por completo.
A suspeita que a segunda lei da termodinâmica introduzira no coração do século da ciência e do progresso é que, se existe algum equilíbrio final, ele não é aquele da plenitude da realização humana, mas antes o estado ao qual tende estatisticamente um sistema no qual a desorganização e a indiferença crescem com o tempo. “Caso seja verdade que o processo universal tende a um equilíbrio estável mediante um crescimento contínuo de entropia, a vida inteira do universo na fase que dela conhecemos se demonstraria”,[vii][viii] então, uma “crise” do tipo que Bogdanov caracteriza como “desvanecente”, em que o equilíbrio final difere imperceptivelmente do inicial e quaisquer mudanças ocorridas se apagam progressivamente. Assim, mesmo a “universal irreversibilidade dos processos naturais”[ix] exemplificada pelos ganhos cumulativos de organização produzidos pela seleção natural, se encontraria finalmente, não revertida, mas extinta pelo avanço imparável da desorganização final.
Essa singularidade do marxismo bogdanoviano decorre de um encontro provavelmente anterior à sua descoberta do autor do Capital, o que ele teve na última década do século XIX com o empiriocriticismo de Ernst Mach e Richard Avenarius e o energetismo de Wilhelm Ostwald. Desses autores, pela associação com os quais ele seria obstinadamente fustigado por Lênin em Materialismo e empiriocriticismo, de 1909, Bogdanov tomou pelo menos três ideias centrais. Uma delas é o monismo, isto é, o imperativo de encontrar um marco único desde o qual pensar termos frequentemente tratados como separados ou mesmo opostos: o físico e o mental, o humano e o não humano, o orgânico e o inorgânico, a natureza e a cultura, a ação e o conhecimento. As duas outras são a conservação de energia e a seleção natural como os princípios científicos capazes de oferecer a chave para tal esforço de unificação. Conforme Bogdanov já afirmava nos Elementos básicos da visão histórica da natureza, de 1899, aquilo que absolutamente todas as coisas têm em comum é a busca pelo dispêndio de energia mais econômico possível e a necessidade de adaptar-se para se manterem viáveis em seu ambiente — de sorte que ambos os princípios podem ser combinados para dizer que a adaptação mais viável tenderá sempre a ser aquela que é mais eficiente do ponto de vista energético.[x]
Mas a heresia bogdanoviana ia ainda mais longe, chegando à crítica do próprio “materialismo dialético”, termo cunhado não por Marx, mas pelo “pai do marxismo russo”, Georgi Plekhanov. Desde os Elementos básicos, Bogdanov via em Hegel um precursor limitado, e na dialética, um método insuficientemente universal, pois o “desenvolvimento através de contradições” é apenas um dos casos possíveis do desenvolvimento, e sua aplicabilidade é restrita à fenômenos da natureza orgânica, deixando de fora o não vivo. Além disso, ao empregar o modelo linguístico da argumentação como metáfora para explicar tudo o que acontece, a dialética restringia seu poder de análise em relação a tudo aquilo que não se encaixasse adequadamente no modelo, tornando o uso de conceitos como “negação” e “síntese” arbitrário e aproximativo. (“Faz sentido que a dialética hegeliana não pudesse ter outro modelo que a argumentação, uma vez que substitui processos reais pelo pensamento.”[xi]) Assim, ela era capaz de oferecer apenas imagens de baixa resolução de coisas que eram melhor descritas como um equilíbrio dinâmico entre forças ou tendências contrárias presentes num mesmo ambiente, que passavam por momentos de crise na busca por novos equilíbrios. Se isso não impedia Bogdanov de reconhecer em Hegel “a verdade de seu tempo”, era porque “a cognição é a organização da experiência”,[xii] e o sistema hegeliano fora o mais grandioso esforço nesse sentido até então. Mas se “[o]s processos na natureza se dão não apenas pela luta entre opostos, mas por outros meios”, a dialética é, então, “um caso especial, e seu modelo não pode se tornar um método universal” — de onde a “necessidade de avançar em direção a um ponto de vista mais amplo”.[xiii] Este ponto de vista seria a tectologia (do grego tekton, “construtor”), nome tomado emprestado do naturalista alemão Ernst Haeckel, que o havia utilizado, contudo, para falar apenas das atividades humanas.[xiv] A ela cabia o esforço cognitivo de organizar a experiência de seu tempo e constituir-se, simultaneamente, como “ciência universal da organização”.
Tal projeto começou a vir à luz em 1913, teve sua segunda parte publicada em 1917, e apareceu finalmente numa versão condensada em 1921, que são os Ensaios de tectologia que a leitora agora tem em mãos. Ele desenvolve ideias que já estavam com Bogdanov há algum tempo, a começar pela própria conclusão, surgida pela primeira vez em A percepção desde um ponto de vista histórico, de 1901, de que uma ciência universal da organização se tornara necessária em virtude da fragmentação do conhecimento e da sociedade produzidos pela divisão do trabalho.[xv] A centralidade do trabalho de organização, por sua vez, já figurava no Pequeno curso de ciência econômica, de 1897, e nos Elementos básicos, de 1899, na forma da oposição entre organizadores e executores, fundamento original da luta de classes, cuja história se estenderia das sociedades primitivas até as modernas. Também já estava presente a sugestão de que a sociedade fabril conteria em si as condições da superação dessa separação, na medida em que, enquanto as máquinas assumiam o papel de executoras especializadas, os trabalhadores que as supervisionavam se tornavam cada vez mais organizadores com uma visão do todo. Esse é, aliás, um dos traços mais (e talvez injustificadamente) otimistas do pensamento bogdanoviano: na contramão da associação entre o avanço da indústria e a desqualificação [deskilling] do trabalho, ou de uma noção de alienação técnica como aquela posteriormente desenvolvida por Gilbert Simondon, Bogdanov enxergava na maquinaria moderna uma libertação em germe.[xvi] Ela antecipava uma forma de cooperação não autoritária, que a partir de 1901 ele chamaria de “sintética” ou “entre camaradas”, que era preciso organizar e expandir a fim de fazer dela a base da sociedade do futuro.
Se no fundo a relação do pensador russo com a ciência de seu tempo talvez jamais tenha abalado por completo sua convicção na inevitabilidade do comunismo, ela em todo caso a temperou com a crença na necessidade daquilo que o maoísmo tornaria conhecido como “revolução cultural”, termo que o autor da Tectologia provavelmente foi o primeiro a utilizar. Para ele, a oportunidade liberatória aportada pela Revolução Industrial precisava, para ser ativada, do desenvolvimento de uma cultura proletária independente da cultura burguesa dominante, tarefa a ser iniciada pelo proletariado antes da tomada de poder para combater sua contaminação pelos hábitos individualistas e autoritários da burguesia, bem como preparar-se para sua tarefa futura de organizador da sociedade. Tal ideia seria uma das bases para a criação do grupo Vpered [Avante] durante as disputas com Lênin pelo controle do bolchevismo (1909-1912); e, após a Revolução de 1917, do movimento Proletkult [Cultura proletária], que operou como um órgão independente do novo poder soviético até 1921, quando Bogdanov se viu obrigado a renunciar ao comitê central da organização em virtude da renovada perseguição a suas ideias — episódio que selaria seu afastamento definitivo da política até sua morte, sete anos depois. A tectologia, como síntese de toda a experiência organizativa da humanidade até aquele momento, era o pilar científico desse projeto.
O ponto de vista da organização
Se o contexto, motivações e objetivos dessa “ciência universal da organização” já eram familiares a Bogdanov havia mais de uma década, talvez a primeira grande novidade do trabalho dos anos 1910 seja a descoberta do “ponto de vista da organização”, anunciada pela primeira vez no texto “O segredo da ciência”, de 1913. Esta, “a única compreensão monística do universo”,[xvii] é a perspectiva desde a qual a organização e seus mecanismos aparecem como a realidade mais universal. Tudo é organizado, do inorgânico à matéria viva, o que equivale a dizer que tudo organiza — todo evento que ocorre é pensável como um ato produtor de organização — e, finalmente, que tudo se organiza — isto é, que o universo como um todo é um fenômeno auto-organizado que consiste na constante organização, desorganização e reorganização de suas partes: “um tecido que pode desdobrar-se infinitamente em todos os tipos de formas e níveis de organização” que, “em seu entrelaçamento e luta mútuos, em suas constantes mudanças, criam o processo organizacional universal, infinitamente fragmentado em suas partes, mas contínuo e indissolúvel em seu todo”.[xviii]
O que é, então, a organização? O livro oferece duas definições distintas e complementares, uma indireta, a outra explícita. Se o trabalho humano descobre que “todo produto é um sistema organizado a partir de elementos materiais mediante a adição de elementos de energia do trabalho”,[xix] é possível generalizar daí que a organização consiste na junção de elementos mediante dispêndio de energia. (“Conjunção alguma — nem biológica, nem qualquer outra, no sentido tectológico mais geral — pode ter lugar sem que haja um dispêndio de atividades” e, portanto, de energia.[xx]) Mas isso também permite dizer que, do ponto de vista de um sistema assim composto, a organização corresponde a uma combinação de atividades que supera as resistências que se lhe opõem; é quando a soma das atividades de um complexo é maior que a soma das resistências que ele encontra, seja interna ou externamente, que podemos dizer que ele é organizado, isto é, “praticamente maior que a simples soma de suas partes”.[xxi] Do que se pode concluir que adotar o ponto de vista da organização é observar todo e qualquer complexo ou sistema “tendo em consideração tanto as relações internas entre todas as suas partes, quantos as relações externas entre ele, como um todo, e seu ambiente, ou seja, todos os sistemas externos”[xxii] — princípio que claramente situa Bogdanov como precursor daquilo que ficaria, a partir dos trabalhos de Ludwig von Bertalanffy nos anos 1950, conhecido como “teoria dos sistemas”.
Daí seguem várias consequências. A primeira é a (co)relatividade de organização e desorganização: se toda criação é uma organização a partir de elementos existentes, elementos que por sua vez já se encontravam envolvidos em outros arranjos, aquilo que para um sistema aparece como ganho de organização inevitavelmente aparecerá para outros como perda, e vice-versa. Isso não impede, é claro, que o ganho de organização de um represente ganho também para outro, como, por exemplo, numa situação em que dois sistemas estejam em colaboração ou um seja subsistema do outro. O que fica claro, em todo caso, é que o ponto de vista da organização supõe um perspectivismo. Isso fica ainda mais evidente naquele que é o par conceitual central da tectologia, a noção de atividade-resistência. Conforme observa Bogdanov, se “dois exércitos, duas classes lutam entre si, então as atividades de cada lado são resistências do outro — é apenas uma questão do ponto de vista de quem fala”.[xxiii] Reunir ambas as faces num único conceito, como faz Bogdanov, implica uma grande equalização universal da agência — tudo que é, é simultaneamente ativo e passivo, sujeito e objeto — e uma maneira perfeitamente não moral de concebê-la. Se organizar a si próprio e ao mundo implica desorganizar outras coisas, não há ação boa ou má em sentido absoluto; conforme ensinou Deleuze a respeito de Espinosa, num mundo em que nenhuma perspectiva é privilegiada, há sempre relações que se compõem, mesmo que elas impliquem a decomposição de outras, e portanto nada pode ser dito “bom” ou “mau” sem que ao mesmo tempo se especifique “para quem”.[xxiv] Dito de outro modo, e contra um outro tipo de esforço moralizador, não há poder para que não seja imediatamente também poder sobre. Talvez o melhor termo de comparação para as atividades-resistências de Bogdanov seja, com efeito, o conceito de poder de Michel Foucault — profundamente desvirtuado toda vez que se tenta distinguir nele duas formas diferentes de poder, uma boa e “desde baixo”, a outra má e “desde cima”, quando a questão é justamente que se trata sempre de uma mesma coisa. Se a resistência vem antes do poder, como muitas vezes disse Foucault, não é porque ela seja algo distinto dele, mas justamente porque toda resistência é sempre já atividade, isto é, poder — “um conjunto de ações sobre ações possíveis”.[xxv] Resistir é sempre já agir sobre algo e, inversamente, sofrer uma ação é sempre já resistir a ela de alguma maneira, mesmo que apenas “passivamente”.
Não são apenas organização e desorganização, atividades e resistências, que são realidades relativas e termos correlatos; o mesmo vale para o par organização/auto-organização. Com efeito, a diferença entre as duas depende unicamente da escala de análise adotada: o mesmo processo que, na escala dos elementos, é descritível com a ação de uns sistemas sobre os outros, pode ser visto desde uma escala superior como um único sistema se auto-organizando. (É assim que mesmo a descontinuidade e a “luta mútua” podem ser percebidas como partes de um só “processo organizacional universal” contínuo.) Isso segue de três outras consequências do ponto de vista da organização, que são a hierarquia, a quase decomponibilidade e a relatividade escalar. Pela primeira, entendida aqui no sentido ecológico do termo[xxvi], devemos compreender o fato de que sistemas complexos são compostos de elementos que são eles mesmos sistemas complexos, formando uma estrutura multicamada de sistemas dentro de sistemas em diferentes níveis de integração. Pela segunda, nos referimos à propriedade de estruturas desse tipo pela qual a taxa de interação entre componentes no interior de um mesmo nível hierárquico é muito superior à interação entre componentes em níveis hierárquicos distintos. Isso é o que permite isolar um ou mais níveis de análise dos demais, tratando como constantes as interações de frequência mais baixa (ocorridas em níveis hierárquicos mais altos) e como breves demais para serem relevantes as interações de frequência mais alta (ocorridas em níveis hierárquicos inferiores à escala de observação adotada).[xxvii] De onde que, conforme a terceira consequência, termos como “sistema”, “subsistema” e “elemento” não possuam referentes determinados em sentido absoluto, mas antes dependam do recorte da estrutura hierárquica feito por um observador.[xxviii]
Se a organização de um sistema é uma função da relação entre suas atividades e a as resistências que ele encontra em seu ambiente (ou, dito de outro modo, “[d]as relativas atividades-resistências [deste] complexo e seu ambiente”[xxix]); e se o ambiente “está conectado com o fluxo mundial de eventos e, numa análise estrita, desdobra-se, em última instância, no universo inteiro”, logo “inevitavelmente, modifica-se”[xxx]; devemos concluir que é preciso considerar todo sistema não como uma entidade acabada, mas como um processo — o processo, precisamente, pelo qual este se mantém como o complexo que é apesar da desorganização com a qual seu entorno o ameaça. Com efeito, “atividade” se refere, antes de mais nada, àquilo que Espinosa chamou de conatus, isto é, o esforço de cada sistema para se manter em existência (daí, também, que toda atividade seja automaticamente resistência).
Para além da seleção natural e da conservação de energia, outro princípio científico que Bogdanov pretende generalizar é a chamada “Lei do equilíbrio” de Henry Louis Le Chatelier, segundo a qual “sistemas que estão em estado de equilíbrio tendem a preservá-lo, produzindo oposição interna às forças que o alteram”.[xxxi] E dado que as perturbações são contínuas e heterogêneas, e assim também o esforço para compensá-las, a preservação de um complexo ou forma só pode ser entendida como um equilíbrio dinâmico pelo qual mudanças emergentes são equilibradas por outras mudanças na direção contrária. Segue daí que o equilíbrio nunca pode ser tomado como “absolutamente preciso”: se “não pode haver igualdade completa e incondicional de mudanças opostas”, ele “é sempre apenas aproximado, prático”.[xxxii] Dizemos que uma coisa se preserva se a diferença entre perda e ganho de organização é pequena o bastante para que ela possa ser considerada como se mantendo suficientemente igual a si mesma dentro da escala de tempo e detalhe em que é observada.
Um corolário dessa abordagem dinâmica e processual é que “não há uma organização ideal e completa na natureza: ela está sempre misturada, de uma forma ou de outra, com a desorganização”.[xxxiii] Por outro lado, tampouco a desorganização absoluta pode existir: em que sentido um ente absolutamente desorganizado poderia ser dito um ente, se a ele faltariam as conexões internas e externas que lhe permitiriam agir e resistir em seu mundo? Na verdade, a perspectividade constitutiva do conceito de atividade-resistência, pelo qual toda organização num ponto supõe desorganização em algum outro, implica que organização e desorganização, “ingressão” e “desingressão”, “assimilação” e “desassimilação”, conexão e desconexão, continuidade e descontinuidade se limitam mutuamente. “Uma ruptura total de conexões e uma separação absoluta de complexos não existe nem pode ser dada em nossa experiência, que é unificada pela ingressão universal”, isto é, o fato de que todas as coisas estão continuamente conectadas mesmo que cada coisa não esteja conectada a cada outra coisa. O que varia são os “graus de separação” entre elas, de onde outro motivo pelo qual a realidade é, por assim dizer, objetivamente relativa à ação do observador: “[p]ara resolver um problema, pode ser necessário levar em conta a separação em alguns casos e, em outros, as conexões”.[xxxiv] Finalmente, aquilo que do ponto de vista da totalidade ou da relação entre sistemas se apresenta como qualidades que se limitam mutuamente implica, do ponto de vista de um sistema tomado isoladamente, qualidades que se apresentam como trade-offs (“contradições tectológicas”): complexidade e instabilidade, diversidade e coerência, plasticidade e robustez, difusão e compactação, diferenciação e contradiferenciação.
Bogdanov e nós
A imagem do universo, e por extensão de nosso planeta, como processo auto-organizado em que tudo está conectado; a ênfase na força entrópica da desorganização e na tensão constante entre as atividades-resistências da humanidade e do seu ambiente; a certeza da impossibilidade de um equilíbrio final em qualquer relação com o meio; o entendimento de que o imperativo da viabilidade e da adaptação se aplica também à humanidade, o que a põe em situação potencialmente precária num mundo que se transforma rapidamente; tudo isso parece fazer de Bogdanov um contemporâneo para aqueles que habitamos Antropoceno. Mais ainda: num momento em que muitos afirmam que a crise ecológica nos obriga a pensar para além do excepcionalismo antropocêntrico, o monismo do pensador russo (que o impele na busca de um conjunto único de princípios a partir dos quais pensar o físico e o psíquico, o humano e o não humano, o natural e o artificial, o vivo e o não vivo) e o ponto de vista da organização daí resultante (com o perspectivismo e o grande nivelamento que o conceito de atividade-resistência promove) indicam que, para Bogdanov, a ideia de estender a agência para além dos limites do humano não representaria maior novidade. Finalmente, como apontou McKenzie Wark, Bogdanov demonstrava uma consciência, visionária para seu tempo, da vida como “parte de um sistema autorregulado, ainda que não necessariamente sempre capaz de achar um equilíbrio”, e do trabalho coletivo da humanidade como algo que “transforma a natureza ao nível da totalidade [planetária]”.[xxxv]
O que fazer, contudo, de sua afirmação de que a tarefa humana é “dominar a natureza”,[xxxvi] ou de sua visão do “coletivo humano” como “centro organizador para o restante da natureza”, que a “‘subordina’ e ‘governa’ (…) na medida de suas energias e experiência”?[xxxvii] É preciso atentar, antes de mais nada, à observação de Bogdanov que expressões como “conquista”, “subordinação” e “governo” são metáforas através das quais formas de organização social autoritárias nomearam inadequadamente o fenômeno tectológico da “egressão”, pelo qual um complexo no interior de um sistema mais amplo passa a exercer uma influência preponderante sobre os demais elementos desse sistema.[xxxviii] Vista sem os fetiches de momentos históricos anteriores, a noção da humanidade como “egressão universal” — universal no sentido de tendendo à expansão, ainda que sempre efetivamente limitada no seu alcance — não excluiria nem a agência do não humano, nem a possibilidade de outro tipo de relação que não a simples dominação entre o humano e o seu meio; mas nomearia simplesmente o fato de a humanidade ter se revelado, no quinhão de espaço-tempo que lhe coube ocupar no interior da “grande organizadora universal, a natureza”,[xxxix] o complexo de maior poder organizador sobre o que estava à sua volta. Em vez de um destino teleológico ou eminência metafísica, em outras palavras, teríamos tão somente a constatação de uma realidade.
Acontece, porém, que essa realidade revelou ter um avesso trágico: o conceito de Antropoceno marca, justamente, a descoberta de que esse poder organizador era, ao mesmo tempo, uma potência desorganizadora em escala geológica. Esse dado, no entanto, se não foi efetivamente antecipado por Bogdanov enquanto tal, tampouco ocupa um ponto inteiramente cego de seu pensamento. Para ver como é possível pensá-lo a partir da “ciência universal da organização”, basta rememorar a perspectividade do conceito de atividade-resistência, o fato de que a organização supõe sempre um dispêndio de energia, e a observação de que a metáfora da “luta” contra a natureza expressa uma “correlação desorganizadora”.[xl]
Quando escreve isso, Bogdanov está claramente considerando a relação desde apenas um dos pontos de vista envolvidos: a natureza “desorganiza” a humanidade, isto é, ela resiste aos esforços desta última no sentido de transformá-la segundo seus fins. Como vimos acima, porém, o ganho de organização em alguma parte sempre implica uma perda de organização em outra, e isso por dois motivos: porque elementos e conexões que antes pertenciam a um complexo acabam por ser consumidos, transformados ou integrados a outro; e porque, nas atividades necessárias a esse consumo, transformação ou integração há uma parte da energia dispendida que se perde permanentemente sob a forma de calor. As “ilhas locais e temporárias de entropia decrescente” de Wiener se alimentam da organização existente em outras partes, e como tal contribuem ativamente para o crescimento da entropia não só nestas, como em geral.[xli]
Dito de outro modo, a organização é um fenômeno local que implica sempre transferência de desorganização e entropia para algum outro lugar. (Basta olhar a vida privada de um organizador comunitário ou sindical para comprovar isso.) Partindo desse princípio, a tectologia está em perfeitas condições de nos dar uma explicação de como e porque a atividade organizadora da “egressão universal” pôde se mostrar uma força desorganizadora em escala tanto local quanto global. Basta pensar que, à medida que essa atividade cresce em poder e alcance, a natureza passa a responder não apenas com a resistência passiva (local) de seus arranjos e da entropia (geral) que aumenta como consequência da atividade necessária para desfazê-los, mas também com a atividade de uma série de novos arranjos e reações não lineares (globais) disparadas pelo avanço da ação humana.
Em outras palavras, a ação organizadora da humanidade, no mesmo processo em que se demonstra desorganizadora da natureza, se manifesta também como sua reorganizadora, e é a atividade decorrente dessa reorganização que eventualmente se apresenta à humanidade como resistência, isto é, força de desorganização. Se é a exportação de entropia que “permite a alguns de nós afirmar a existência do progresso”, a crise ecológica assinala a constatação de que há um limite à possibilidade de continuar a exportar entropia no interior de um sistema fechado sem ameaçar o equilíbrio deste a tal ponto que a própria continuidade do progresso assim construído se veja ameaçada.[xlii]
É preciso notar, porém, que essa explicação é, ao mesmo tempo, a interdição de qualquer leitura moralizante do Antropoceno e da expansão da agência para além do humano. Existir é organizar(-se), e organizar inevitavelmente supõe custos; isto vale para nós tanto quanto para qualquer outro ser, e dizer “bom” ou “mau”, ganhos ou custos, supõe sempre dizer também “para quem”. O que fez do humano uma força desorganizadora em escala global não é qualquer falha moral característica da espécie, que a tornaria constitutivamente infensa a uma predisposição à harmonia que seria espontânea em todas as demais; mas a combinação de um sistema de produção e distribuição de riqueza que demanda expansão constante e um enorme descompasso entre o crescimento da capacidade de produzir efeitos e da capacidade de calcular seus custos. Reconhecer o não humano pode nos dar uma outra perspectiva desde onde fazer esse cálculo, mas não tem como eliminar o fato de que a ação tem custos. Sem dúvida, é preciso reduzi-los drasticamente e repensar de cima abaixo as prioridades segundo as quais eles são assumidos, bem como os critérios de sua distribuição. Mas a fantasia de um poder para que não seja imediatamente também poder sobre, ou de uma organização que não implique custos, não ajuda em nada o verdadeiro desafio, que consiste em encontrar um equilíbrio dinâmico com o meio no qual o máximo florescimento da vida, humana e não humana, seja possível. Como escreve Wark, “a grande tarefa” de organização segue sendo a de “encontrar e fundar uma totalidade no interior da qual cultivar o excesso [surplus] da vida”.[xliii]
Grande tarefa de quem, porém? Um ponto em que Bogdanov permanece fiel a um certo humanismo que precede e atravessa o marxismo é a facilidade com que se refere à humanidade como sujeito coletivo. É bem verdade que esse sujeito é cindido praticamente desde o início pela divisão entre organizadores e executores, que se expressa a partir da modernidade na oposição entre burguesia e proletariado. Mas em momento nenhum parece estar em dúvida a unilinearidade de uma história em que, mesmo que momentaneamente apartados desse esquema, todos os coletivos humanos tendem finalmente a se incorporar a ele e, após a eliminação daquela cisão original, reunir-se numa só comunidade de organizadores de seu mundo. Não obstante, é possível encontrar em Bogdanov princípios úteis para pensar a coexistência sincrônica de coletivos humanos diversos, outra questão que o Antropoceno tende a trazer à tona com toda força.[xliv]
Sua insistência de que “a cognição é uma adaptação” cuja “‘verdade’ equivale a sua aptidão para governar a prática”,[xlv] e que “[o] coletivo é sempre o sujeito da prática”,[xlvi] logo também da cognição, equivale a uma atribuição de verdade a todo conhecimento assentado na prática de um grupo qualquer em seu encontro com tudo aquilo que resiste seu trabalho, isto é, a “natureza”. [xlvii] Nascendo do atrito entre a atividade coletiva, sob suas condições específicas de organização, e as atividades das coisas que povoam o ambiente, a verdade é sempre simultaneamente objetiva (porque limitada pelas regularidades que a prática revela) e relativa (porque condicionada pelas relações de produção e pelas contingências próprias dos encontros; por exemplo, a maior ou menor diversidade natural disponível no campo de ação de uma coletividade). Uma vez que esse encontro se realiza de forma contínua no tempo, e suas condições tanto sociais quanto naturais são mutáveis, ela nunca chega a atingir um estágio definitivo, o que equivaleria a um estado de equilíbrio estático: “Não pode haver verdade filosófica [ou científica] absoluta e eterna”.[xlviii] Essa outra dimensão do perspectivismo bogdanoviano pode ser muito útil diante de uma questão como a crise ambiental, que envolve e exige conciliar uma ecologia complexa de saberes e práticas, na medida em que institui um pluralismo que não abandona por completo a noção de objetividade.
Mais ainda, ela nos ajuda a não perder de vista qual é o sentido de incorporar uma pluralidade de perspectivas. Se a verdade nunca deixa de ser relativa, é possível, sem embargo, aumentar seu grau de generalidade ampliando a quantidade de resultados e métodos acumulados em diferentes campos de experiência que ela é capaz de integrar e organizar.[xlix] O relativo se torna menos relativo –– isto é, relativo a mais coisas –– no processo de tentar elaborar o sistema de sua própria relatividade. A suposição de uma unilinearidade histórica e a confiança na emergência de uma classe destinada a assumir para si todas as tarefas da humanidade conduzem Bogdanov a crer que o projeto de “unificar a experiência de todas as pessoas de gerações passadas e presentes num sistema rigoroso e coerente de compreensão do mundo”[l] possa convergir numa só ciência. A consciência dos altíssimos preços e enormes pontos cegos do processo de unificação econômica, técnica e cultural forçada e propiciada pela expansão colonial nos dá razões para ser muito mais céticos em relação às motivações, viabilidade e desejabilidade de toda e qualquer pretensão unificante. O que ler Bogdanov hoje nos lembra, contudo, é de que tal ceticismo deve ser empregado farmacologicamente, como princípio prudencial e ferramenta de controle dos resultados de nossos esforços de sistematização, e não como motivo para abdicar de tais esforços de uma vez por todas.
A “policrise” contemporânea, com a crise ecológica à frente, nos põe diante de “tarefas organizacionais de alcance e complexidade sem paralelo” cuja resolução não pode ser “aleatória ou espontânea”.[li] A resposta não é menos coordenação, senão mais; e para isso é preciso não menos tentativas de modelagem global, mas mais e melhores, mais diversas e autorreflexivas, desde perspectivas distintas e em diferentes escalas de granularidade. A democracia é, para Bogdanov, um imperativo cognitivo e prático antes de ser uma questão ética ou de reconhecimento: a “cooperação sintética” ou “entre camaradas” é capaz de maiores realizações porque um modelador coletivo complexo é, em princípio, capaz de modelos mais complexos. Podemos ser mais moderados que ele em nosso otimismo sem abandonar por completo esse insight.
A esquerda agostiniana
Há pouco mais de uma década, o historiador da arte britânico T.J. Clark causou algum ruído com um texto que conclamava a constituir uma “esquerda sem futuro”, que não esperasse que nada de “transfigurador” pudesse passar, mas antes adotasse para si um pessimismo sobre a natureza humana que fora durante o Iluminismo uma prerrogativa — e força — da direita: “Não haverá futuro, estou dizendo por fim, sem guerra, pobreza, pânico malthusiano, tirania, crueldade, classes, tempo morto e todos os males de que a carne é herdeira, porque não haverá futuro; apenas um presente em que a esquerda (…) luta para reunir o “material para uma sociedade” que Nietzsche julgava ter desaparecido da terra”.[lii]
Como vimos até aqui, Bogdanov ocupa uma posição diagonal em relação à lista de dados inelimináveis compilada por Clark. Por um lado, Bogdanov acreditava realmente na possibilidade do fim das classes, da pobreza e da tirania; por outro, não acreditava que isso significasse o fim dos riscos, do esforço, da resistência imposta pelo meio, ou mesmo, como demonstra Estrela vermelha, da luta contra a escassez de recursos ou o perigo da sobrepopulação e, eventualmente, da guerra (ainda que interplanetária). A diferença está, em primeiro lugar, em onde a origem dos males é situada: para o crítico britânico, numa natureza humana com uma tendência inata ao mal radical; para o autor russo, no jogo de atividades-resistências, no custo material e energético de cada coisa, no trabalho externo e interno da desorganização. Disso resulta uma diferença de orientação. A esquerda de Clark deve funcionar como katechon, e sua radicalidade reside em seu reconhecimento da presença constante do mal radical e em sua capacidade de conter seus piores efeitos. A de Bogdanov, por sua vez, não abdica em nada de suas ambições, mas as encara sem a ilusão de um ponto final de equilíbrio; seu trabalho nunca acaba, não porque o pior sempre ronda, mas porque a desorganização está sempre lá, nada vem sem custos, e a entropia e os perigos de recaída roem toda e qualquer luta no sentido de dar lugar ao máximo de abundância e liberdade possíveis para quem dela participa.
Uma esquerda maniqueísta, a outra agostiniana. Qual das duas merece mais o título de trágica, reivindicado por Clark? A tragédia da primeira é meramente humana, aquela de sujeitos que vemos “perecendo, devorando uns aos outros e destruindo a si mesmos, com dor terrível frequentemente, como se não tivessem vindo à vida para outro fim”.[liii] A da segunda é cósmica: a de complexos ou sistemas submetidos aos mesmos mecanismos e leis em um universo em que a desorganização nunca vai embora, a entropia cresce, há limites inegociáveis, a ação e a inação têm custos e efeitos irreversíveis. Embora se vanglorie do tom desenganado e “maduro”[liv] [grown up] como traço distintivo, a primeira ainda tem em comum com grande parte do pensamento político de esquerda o fato de ocupar a perspectiva de um tipo de protagonista específico, um herói dos grandes gestos, o ativista que joga a própria vida no momento em que a crise transborda em conflito ou o estadista que pesa graves e difíceis decisões. A diferença é apenas que, aqui, o gesto é catecôntico em vez de prometeico ou transfigurador. Bogdanov nos coloca no ponto de vista de um personagem mais raro, o organizador. Um herói de gestos menos excepcionais, tanto em tamanho quanto em frequência, cujo páthos não é aquele de quem está sempre diante da hora da decisão, nem de quem ainda fantasia com um equilíbrio final, mas antes a irresignação resignada de quem entende que fazer e manter algo sempre tem seu custo, que as coisas demandam esforço contínuo, que dado suficiente tempo e insuficiente trabalho, tudo se desfaz; que não só “o simples esforço em direção ao cume já basta para encher o coração”,[lv] como há muito o que celebrar ao longo do caminho; que sabe que a verdadeira tragédia humana é a consciência da contingência, da contrafinalidade, da inevitabilidade de trade-offs e escolhas, e de sua irreversibilidade, mas que isso não dá a ninguém uma desculpa para a insensibilidade diante do sofrimento; e que não luta pela certeza da vitória, mas porque não lutar — isto é, não se importar em existir — seria impossível.
*Rodrigo Nunes é professor de teoria política na University of Essex, Reino Unido. Autor, entre outros livros, de Nem Vertical Nem Horizontal: Uma Teoria da Organização Política (Ubu, 2023). [https://amzn.to/3X2SckC]
Referência

Alexander Bogdanov. Ensaios de Tectologia: A Ciência Universal da Organização. Tradução: Jair Diniz Miguel. São Paulo, Editora Machado. 2025, 228 págs. [https://abrir.link/NDfuS]
Notas
[i] WIENER, N. The Human Use of Human Beings. Cybernetics and Society. Boston: Da Capo Press, 1988, p. 35. [Ed. Bras.: Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos. São Paulo: Editora Cultrix, 1970.]
[ii] Ibid., p. 36.
[iii] Ibid.
[iv] Ibid.
[v] Ibid., p. 46-7.
[vi] Ibid., p. 11.
[vii] BOGDANOV, A. Essays in Tektology: the General Science of Organization. California: Intersystems Publications, 1984, p. 249 (Sempre que for citado um trecho que constará no volume II desta tradução, usaremos a edição norte-americana como referência [N.E.]).
[viii] É bem verdade que, em outra passagem, Bogdanov demonstra algum ceticismo em relação à hipótese de morte térmica do universo: segundo ele, enquanto a ciência não conhecesse suficientemente bem “como se criaram as diferenças que agora estão sendo equalizadas (…) e as bases da diferenciação do universo em si mesmo”, seria arbitrário projetar um ponto futuro de “máxima contradiferenciação”. Ibid., p. 152.
[ix] Ibid., p. 227.
[x] Bogdanov alerta, sem embargo, que a melhor economia não é necessariamente o não dispêndio: “A vitória sobre a natureza é obtida não apenas pela preservação mesquinha de energia, mas pelo seu uso mais pleno e produtivo.” Tal afirmação, se não necessariamente falsa, precisa ser qualificada diante da realidade da crise ambiental. BOGDANOV, A. Philosophy of Living Experience. Popular Outlines. Chicago: Haymarket, 2016, p. 147.
[xi] Ibid., p. 174.
[xii] Ibid.
[xiii] Ibid., p. 200.
[xiv] WHITE, J. Red Hamlet. The Life and Ideas of Alexander Bogdanov. Chicago: Haymarket, 2018, p. 290.
[xv] Ibid., p. 287.
[xvi] Uma crítica desse otimismo, escrita por Stanislav Volsky, apareceria já em 1911 no segundo número do jornal publicado pelo grupo Vpered, do qual Bogdanov era a figura principal. Ver: Ibid., p. 282. Naturalmente, é sempre possível sugerir que, nesse ponto, Bogdanov estaria, contra uma interpretação bastante comum do pensador alemão, mais próximo da verdadeira opinião de Marx. Ver: ADLER, Paul S. “Marx, Machines, and Skill”, Technology and Culture, 31 [4] (1990): pp. 780-812.
[xvii] Ver p. 55.
[xviii] Ver p. 51.
[xix] Ver p. 82.
[xx] BOGDANOV, A. Essays in Tektology: the General Science of Organization, p. 149,
[xxi] Ver p. 99. Se as resistências superam as atividades, diremos tratar-se de um sistema desorganizado e, caso nada aconteça para mudar suas condições, em via de dissolução. Já daqueles casos em que atividades e resistências se cancelam mutuamente (a soma de suas somas é igual a zero), dizemos serem complexos neutros — mas tais casos são mais bem abstrações ou breves instantâneos de um processo dinâmico em que atividades e resistências estão sempre aumentando ou diminuindo.
[xxii] Ver p. 116.
[xxiii] Ver p. 103.
[xxiv] Ver DELEUZE G. Spinoza. Philosophie Pratique. Paris: Minuit, 1981, p. 147 et seq [ed. bras.: Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002]. Espinosa, como demonstra a célebre passagem sobre a linfa e o quilo da correspondência com Oldenburg, é um pioneiro tanto do perspectivismo quanto, como veremos a seguir, da concepção hierárquica da realidade supostas pelo ponto de vista da organização. Ver SPINOZA, B. “Letter 32”, Complete Works. Indiana: Hackett, 2002, pp. 848-851.
[xxv] FOUCAULT, M. “Le Sujet et le Pouvoir”, Dits et Écrits, vol. II. Paris: Gallimard, 2001, p. 1056.
[xxvi] Ver, por exemplo, ALLEN, TFH. e STARR, Thomas B. Hierarchy: Perspectivåes for Ecological Complexity. Chicago: Chicago University Press, 2ª ed., 2017.
[xxvii] SIMON, H. A. “The Organization of Complex Systems”, in PATTEE, H.H. (org.), Hierarchy Theory: the Challenge of Complex Systems. George Braziller: Nova York, pp. 1-27.
[xxviii] Ver p. XX: “O próprio conceito de ‘elementos’, para a ciência organizacional, é inteiramente relativo e condicional: são simplesmente aquelas partes nas quais, de acordo com a tarefa de pesquisa, foi necessário decompor seu objeto; elas podem ser arbitrariamente grandes ou pequenas, podem ser divisíveis ou não se dividir — nenhuma estrutura para análise pode ser colocada aqui.”
[xxix] Ver p. 103.
[xxx] Ver p. 179.
[xxxi] Ver p. 159.
[xxxii] Ver p. 119.
[xxxiii] Ver p. 157.
[xxxiv] BOGDANOV, A. Essays in Tektology: the General Science of Organization, p. 127.
[xxxv] WARK, M. Molecular Red. Theory for the Anthropocene. Londres e Nova York: Verso, 2015, pp. 54, 12. O trabalho de Wark teve um papel importante na redescoberta recente do pensador russo.
[xxxvi] Ver p. 45.
[xxxvii] BOGDANOV, A. Essays in Tektology: the General Science of Organization, p. 184.
[xxxviii] Ibid.
[xxxix] Ver p. 133.
[xl] BOGDANOV, A. Essays in Tektology: the General Science of Organization, p. 184.
[xli] Isso equivale ao insight de Nicholas Georgescu-Roegen sobre o processo econômico como transformação de “baixa entropia” em “alta entropia”. Tal convergência não é nenhuma surpresa: como Bogdanov, Georgescu-Roegen foi bastante influenciado por Mach. Ver GEORGESCU-ROGEN, N. The Entropy Law and the Economic Process. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1971.
[xlii] Fechado, isto é, no sentido técnico do termo: que troca energia, mas não matéria com seu meio.
[xliii] WARK, M. Molecular Red, p. 11.
[xliv] Ainda que ele pessoalmente ele tenha comentários um tanto infelizes a fazer sobre essa diversidade sincrônica; ver BOGDANOV, A. The Philosophy of Living Experience, pp. 24-25.
[xlv] Ibid., p. 158.
[xlvi]Ibid, “From Religious to Scientific Monism”, p. 249.
[xlvii] “Natureza é como as pessoas chamam o campo infinitamente desdobrado de sua experiência de trabalho.” Ibid., p. 42. Trata-se obviamente é uma espécie de projeção retrospectiva que deixa de lado todos os coletivos que não tinham um conceito para designar essa totalidade ou a designavam por conceitos diversos.
[xlviii] Ibid., p. 13.
[xlix] Para Bogdanov, como para Lévi-Strauss, o impulso nessa direção é uma demanda interna do próprio pensamento, ao qual ele dá uma explicação em termos organizacionais: “Toda organização é organizada precisamente na medida em que é integrada e holística. Essa é uma condição necessária para a viabilidade. O mesmo vale para a cognição, uma vez que reconheçamos que ela representa a organização da experiência. Portanto, a organização tende sempre à unidade, ao monismo.” Ibid., p. 236.
[l] Ibid., p. 10.
[li] Ibid., p. 243. Itálico no original.
[lii] CLARK, T.J. “For a Left with No Future”, New Left Review, 74 (2012), p. 75 [ed. bras.: Para uma esquerda sem futuro. São Paulo: Editora 34, 2013]. Para uma resposta aguda, ver TOSCANO, A. “Politics in a Tragic Key”, Radical Philosophy 180 (2013), pp. 25-34.
[liii] BRADLEY, A.C. Shakespearean Tragedy. Essays on Hamlet, Othello, King Lear, Macbeth. Londres: MacMillan & Co., 1912, p. 23 [ed. bras.: A tragédia shakesperiana. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009].
[liv] CLARK, T.J. “For a Left with No Future”, p. 59.
[lv] CAMUS, A. Le Mythe de Sysyphe. Gallimard: 1942, p. 168 [ed. bras.: O mito de Sísifo. 26ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2018].
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