Três anos de guerra na Ucrânia

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Por CAIO BUGIATO*

Enquanto a Rússia ganha terreno mais rapidamente do que em qualquer outro momento da guerra, a nova avaliação da política externa dos EUA é que a atual ordem mundial está obsoleta

Sete teses sobre a guerra na Ucrânia

As minhas investigações têm apontado que:

(i) A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é uma organização internacional político-militar da cadeia imperialista liderada pelos Estados Unidos. Em sua dinâmica está a expansão do capitalismo ocidental, a qual não tolera projetos nacionais e autônomos de desenvolvimento capitalista, governos não alinhados ao Ocidente, políticas externas independentes e projetos alternativos ao capitalismo neoliberal atual.

(ii) O expansionismo da OTAN e sua imposição de princípios burgueses, que procurou destruir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e que procura neutralizar/incorporar a Rússia, é de longe a principal causa da guerra.

(iii) O processo político ucraniano conhecido como Euromaidan, iniciado em 2013, foi um dos golpes coloridos influenciados pela diplomacia estadunidense. O golpe depôs um governo eleito pró-Rússia – não alinhado à Washington – , promoveu uma rebelião das províncias do Donbass – de maioria étnica russa – e abriu caminho para governos dispostos a tal alinhamento e a fazer parte da União Europeia e da OTAN.

(iv) Além de despertar forças neonazistas, o golpe resultou na ascensão do governo de Volodymyr Zelensky, o qual não respeitou os acordos de Minsk que propunham autonomia para as províncias da região do Donbass. Governos e forças neonazistas passaram a fustigar a população daquela região.

(v) O governo russo de Vladimir Putin se constituiu em oposição ao governo neoliberal de Boris Yeltsin, alinhado aos EUA, dos anos de 1990; opera uma deterioração da democracia burguesa com tendência aparente ao bonapartismo; e compreende um projeto nacional e autônomo de desenvolvimento capitalista e uma política externa independente, além da aproximação com a China, o que é intolerável para o Ocidente e para a OTAN.

(vi) A guerra na Ucrânia é uma guerra contra-imperialista. Iniciada como uma operação militar contraofensiva do governo Putin, nela se opõem o Estado ucraniano junto com a cadeia imperialista/OTAN liderada pelo EUA e o Estado russo. Além do caráter antagônico ao expansionismo imperialista da OTAN, não deixa de ser igualmente uma guerra de defesa.

(vii) Toda a ajuda econômica e militar para a Ucrânia e todas as sanções e restrições econômicas aplicadas à Rússia pelo Ocidente não foram capazes de deter as forças armadas de Moscou e de abalar a economia e as instituições políticas russas. O governo Putin construiu uma economia de guerra, fortalecendo a atividade estatal, a indústria nacional e o mercado interno e aprofundou relações com os países da Ásia e da África e outros da periferia. Nesse sentido, o Estado russo se apresenta como um agente da transformação do sistema internacional.

O campo de batalha

Vejamos os mapas[i] abaixo:

MAPA 1 – Controle militar russo durante a guerra

Fonte: BBC

MAPA 2 – Controle militar russo atual

Fonte: BBC

MAPA 3 – Incursão ucraniana em território russo

O Mapa 1 mostra pelo menos três fases da guerra. A primeira foi a contraofensiva russa diante do avanço da OTAN e da pressão ucraniana nas províncias separatistas Donetsk e Luhansk, no Donbass, Leste da Ucrânia. Nessa fase a Rússia conquistou a maior parte de toda a extensão territorial que mantém até hoje sob seu controle. A segunda fase foi a reação da OTAN e da Ucrânia, com todo o auxílio vindo do Ocidente, que causou perdas e retrocessos aos russos.

Nessa fase, em junho de 2023 o governo de Volodymyr Zelensky lançou uma ofensiva que não foi capaz de penetrar nas linhas de defesa russas. Ainda, longas e sangrentas batalhas foram travadas, como nas cidades de Bakmut e Avdiivka, com vitória russa. A terceira fase é uma nova contraofensiva russa, bem-sucedida, que vem conquistando gradativamente novos territórios. O objetivo russo nessa fase é controlar a integridade das quatro províncias, Luhansk, Donetsk, Zaporizhzhia e Kherson, além de manter a Crimeia, anexada em 2014.

O mapa 2, de fevereiro de 2025, mostra justamente o controle russo quase total dessas cinco províncias, em uma faixa territorial que vai da Rússia até a Crimeia e ocupa 1/5 da Ucrânia.

O mapa 3 mostra a incursão ucraniana, em um ataque surpresa, em agosto de 2024, que avançou cerca de 30 km em território russo, na região de Kursk. As forças armadas da Ucrânia afirmam controlar uma área de mais de 1.200 km² e 93 vilarejos. Parte desse território foi reconquistado, mas os ucranianos ainda mantém tropas na região. O governo de Volodymyr Zelensky pretende usar tal área como meio de troca diante do território ocupado pelos russos. Contudo, há uma larga vantagem da Rússia no campo de batalha, como mostram os mapas, de modo que qualquer negociação entre os beligerantes provavelmente não trará prejuízos ao governo de Vladimir Putin.

A atual conjuntura

Antes da eleição de Donald Trump à presidência dos EUA os governos estadunidense, europeus e ucraniano formavam um bloco coeso com o objetivo de sustentar e melhorar as forças armadas ucranianas, derrotar os russos no campo de batalha e vencer a guerra. Entre alguns atritos e desentendimentos, tinham certa unidade a tal ponto que a ajuda militar, econômica e humanitária do Ocidente atingiu 246 bilhões de Euros. Os EUA são os maiores doadores, com 114 bilhões de Euros. A OTAN chegou a treinar tropas ucranianas e o governo Biden autorizou o uso de armas estadunidenses para atingir o interior do território da Rússia. Mas tudo isso parece estar mesmo no passado.

Enquanto a Rússia ganha terreno mais rapidamente do que em qualquer outro momento da guerra, a nova avaliação da política externa dos EUA é que a atual ordem mundial está obsoleta, uma vez que trouxe para os EUA custos, guerras e ascensão de novas potências. Washington declara a necessidade de substituir a ordem liberal do pós-guerra, marcada por instituições formalmente multilaterais fundadas pelos governos estadunidenses, por uma nova supremacia dos EUA, calcada no poder econômico e militar unilateral: construir uma nova ordem pela força, com o lema Make America great again. Olhando de outro ângulo, para os EUA a guerra na Ucrânia e a OTAN não são prioridades.

O fator Donald Trump para a guerra na Ucrânia pode ser resumido em posições de agentes do Estado. Em reunião do Grupo de Contato de Defesa da Ucrânia, o secretário de defesa dos Estados Unidos Pete Hegseth disse que a guerra deve acabar, mas a adesão do país à OTAN é irreal: “os Estados Unidos não acreditam que a adesão da Ucrânia à OTAN seja um resultado realista de um acordo negociado”.

Afirmou também que os EUA deixarão de priorizar a segurança europeia e ucraniana, pois o governo de Donald Trump enfatizará a proteção de suas próprias fronteiras e os problemas com a China. Ainda, declarou que as forças armadas europeias devem ser a principal força encarregada da proteção à Ucrânia depois da guerra e os EUA não vão se envolver nisso: “para ser claro, como parte de qualquer garantia de segurança, não haverá tropas dos EUA enviadas para a Ucrânia”.

Além disso, avaliou o secretário que é um objetivo irrealista o retorno das fronteiras ucranianas para o que eram antes de 2014, o que o Volodymyr Zelensky já tem indiretamente reconhecido em declarações recentes. Por fim, Pete Hegseth não anunciou novos auxílios para a Ucrânia. Em suma, o secretário deu um banho de água fria nos europeus, que terceirizaram sua segurança, e no governo de Volodymyr Zelensky, completamente dependente da ajuda ocidental: “também estamos aqui hoje para expressar direta e inequivocamente que duras realidades estratégicas impedem que os Estados Unidos da América se concentrem principalmente na segurança da Europa”.

Em um posicionamento mais geral, mas que faz críticas aos europeus e afeta a guerra, o vice-presidente dos Estados Unidos, James David Vance foi bastante claro na Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha. Disse que a maior ameaça da Europa “vem de dentro”, que os europeus “se afastaram dos valores fundamentais” e estão ignorando as “preocupações dos eleitores” sobre imigração e liberdade de expressão.

James David Vance mencionou a prisão de um homem que protestava perto de uma clínica de aborto no Reino Unido e a censura de uma campanha anti-islâmica na Suécia como limitações da democracia. Para ele: “a ameaça que mais me preocupa em relação à Europa não é a Rússia, não é a China, não é nenhum outro fator externo. O que me preocupa é a ameaça que vem de dentro: o recuo da Europa em alguns de seus valores mais fundamentais”; “para nós do outro lado do oceano Atlântico, parece cada vez mais que há interesses antigos e enraizados por trás de palavras que parecem ter vindo de uma era soviética como informações falsas ou desinformação, em que as pessoas não gostavam da ideia de alguém ter um ponto de vista diferente expressar sua opinião, ou, Deus me livre, votar de forma diferente, ou até pior, vencer uma eleição”.

Tais declarações inseridas no contexto internacional atual, em que o governo de Donald Trump é parte integrante de uma aliança transnacional neofascista – e talvez a cabeça desse movimento – mostram a natureza reacionária de tal governo: o combate ao fantasma do comunismo e a qualquer movimento político que se opõe aos princípios neofascistas e a tendência de substituir a democracia burguesa pela ditadura fascista, obviamente tudo dentro da ordem capitalista.

Fora do campo de batalha, no mais recente episódio da guerra na Ucrânia os ministros de relações exteriores de EUA e Rússia se reuniram na Arábia Saudita, sem europeus e ucranianos. Acordaram quatro pontos sobre o fim da guerra, ainda que vagos: restabelecer a funcionalidade das instalações diplomáticas operando e funcionando normalmente para avançar nas negociações; os EUA formarão uma equipe de alto nível para trabalhar pelo fim do conflito, de modo que seja duradouro e aceitável para todas as partes envolvidas; discutir, pensar e examinar a cooperação geopolítica e econômica para os países após o fim do conflito; as cinco pessoas que participaram da reunião (o secretário de Estado Marco Rubio, o conselheiro de segurança nacional Mike Waltz, o enviado especial Steve Witkoff, o ministro das relações exteriores da Rússia Sergei Lavrov e o assessor presidencial Yuri Ushakov) continuarão engajados no avanço desse processo.

Parece que o triunfo no campo de batalha deu para Vladimir Putin uma vitória diplomática que partiu de onde não se esperava, dos EUA.

*Caio Bugiato é professor de Ciência Política e Relações Internacionais na UFRRJ e no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais da UFABC.

Nota


[i] Os mapas foram elaborados pela BBC, com os dados do Institute for the Study of War (ISW) em parceria com o Projeto de Ameaças Críticas, do American Enterprise Institute.


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