Por ANDRÉS DEL RÍO*
O presidente argentino demonstrou perseverança na sua orientação para a cooptação e controle dos poderes judiciários
Javier Milei ficou famoso pela imagem da motosserra. A princípio, ela seria utilizada para cortar o Estado argentino, seu principal inimigo nas próprias palavras do presidente. Mas na realidade, ele está usando a motoserra contra a democracia e suas instituições. Em 25 de fevereiro, o diário oficial nomeou Ariel Lijo e Manuel García-Mansilla como os novos ministros da corte. Neste texto, detalhamos o processo de designação, os dois escolhidos, e os dilemas para a democracia argentina.
Driblando a lei
Na Argentina, as (e os) juízes da Corte Suprema são escolhidos por meio de um mecanismo indireto, onde o Poder Executivo apresenta os candidatos (uma das competências atribuídas ao presidente, conforme disposto no artigo 99, inciso 4, da Constituição Nacional), e o Senado da República outorga sua aprovação com quórum especial de dois terços dos membros.
Entretanto, antes da análise pelo Senado, ocorre um processo de impugnações e observações públicas das candidaturas, conforme estabelecido no Decreto 222/03, promulgado por Néstor Kirchner, do Partido Frente para a Vitória, em 2003. O decreto incorporou transparência e participação cidadã no processo. O Poder Executivo, após o término desse prazo, dispõe de um período de 15 dias úteis para avaliá-las e decidir se encaminhará a proposta de nomeação ao Senado.
Segundo a lei, a Corte Suprema é composta por cinco magistrados. Entretanto, atualmente, a Corte conta com três integrantes: Horácio Rosatti na presidência, Carlos Rosenkrantz na vice-presidência, além do magistrado Ricardo Lorenzetti. O magistrado Juan Carlos Maqueda alcançou o limite de idade (75), aposentou-se em dezembro de 2024, abrindo a quarta vaga. Desde outubro de 2021, a quinta vaga permanece desocupada em decorrência da renúncia de Elena Highton de Nolasco.
O decreto 222/03 estabeleceu os critérios dos magistrados: “aptidão moral, adequação técnica e jurídica, experiência e dedicação à proteção dos direitos humanos e aos valores democráticos”. Em seu artigo 3, estabelece-se que a composição da Corte Suprema deve levar em conta a inclusão de novos membros, com o objetivo de refletir a diversidade de gênero, especialização e origem regional, em harmonia com o princípio de representação de uma nação federal.
A escolha de Javier Milei foi designar ministros via excepcionalidade, através do decreto 137/2025, tirando legitimidade dos indicados, atentando contra a independência da Alta Corte e comprometendo a divisão de poderes. Um tiro no pé. Os nomes indicados têm a particularidade de que são designações temporárias. Elas foram feitas durante o recesso do Congresso, que retornou em 1º março, sob o argumento de que o Senado estava demorando demais, porque não estava analisando as indicações feitas por Javier Milei em maio de 2024.
Essa dinâmica, conhecida como indicação em comissão, só é válida até o fim da próxima legislatura durante o recesso do congresso. São designações precárias e frágeis, sem vitalidade do cargo. Porém uma forma de driblar a barreira do legislativo, temporariamente. Segundo o Ministro de Justiça, Cúneo Libarona, Javier Milei deu ao Senado Federal, tempo suficiente para aprovar os candidatos.
Mas, na verdade, Javier Milei sem respaldo nem votos suficientes, não tinha opção de aprovar as candidaturas sem negociar com a oposição e seus aliados. O partido de oposição, União pela Pátria, possui 34 dos 72 senadores, o que significa que pode obstruir qualquer nomeação. No decreto, Milei sinaliza a necessidade de normalizar o funcionamento da Corte pela falta de ministros. Mas longe de normalizar, está tirando credibilidade, a uma corte que já não tem muito respeito da sociedade.
Por um lado, existem mecanismos institucionais que asseguram seu correto funcionamento até completar sua composição. Numa recente “acordada”, a própria corte desenvolveu um modelo para operar com juízes auxiliares, ante a falta de ministros na corte[i]. Pelo outro, numa pesquisa de opinião de janeiro de 2025, sobre a percepção sobre o poder judiciário e administração de justiça, o resultado foi impactante: mais de 90% dos entrevistados expressaram uma visão negativa sobre o Poder Judiciário.[ii] Enfim, não se trata de demora, mas criar consensos e maiorias, básico da democracia e respeito a divisão de poderes. Não conseguiu os votos necessários para aprovar sua indicação, aplicou um decreto irregular, minando a legitimidade de uma corte já desmoralizada socialmente.
Em nota, mais de 30 organizações indicaram que a designação de dois magistrados homens, em comissão, via decreto: “… configura um avanço impróprio por parte do presidente sobre o Poder Legislativo, uma significativa violação da independência judicial e uma clara ofensa ao compromisso de assegurar a igualdade de gênero no mais alto tribunal, o que compromete seriamente sua legitimidade e qualidade institucional”.[iii] Salienta-se: apenas três mulheres, diante de 104 homens, conseguiram conquistar a posição de juíza da Suprema Corte ao longo de toda a sua trajetória. Destaca-se que a Argentina se tornou o único país da Iberoamérica em não ter mulheres na composição da Corte Suprema, segundo dados do Observatório de igualdade de gênero da CEPAL/ONU.[iv]
Segundo o prestigioso ex-ministro da corte, Eugenio Zaffaroni, as designações são inconstitucionais, gerando grandes problemas jurídicos. No caso em que os ministros em questão assinem sentenças, elas serão nulas e se enquadrariam como usurpação de funções[v]. O recente aposentado ministro da Corte Suprema, Juan Carlos Maqueda, sobre as designações por decreto, declarou: “Está à beira da inconstitucionalidade”, e agregou “Considero a decisão do decreto e a postura do Poder Executivo e do Presidente absolutamente lamentáveis, especialmente a três dias do início das sessões ordinárias”[vi].
Juan Carlos Maqueda salienta que o contexto histórico que possibilitou a nomeação de juízes por meio de decreto presidencial, no ano de 1860, é totalmente diferente da atual: “Naquela época, havia um Congresso que operava de 1º de maio a 30 de setembro, além de ser uma nação sem estradas e ferrovias, portanto, era indiscutivelmente necessário um instrumento dessa natureza”. Javier Milei baixou o decreto a três dias do retorno do legislativo.
Ironicamente, chama atenção a posição do novo ministro García-Mansilla, que ano passado manifestou sua insatisfação pelas indicações por decreto. Segundo ele: “Embora a Constituição preveja tal situação, considerando o impacto que isso acarretou, não teria aceitado a nomeação”. Mas além dos que criticam, mesmo os que apoiam preferem o silencio à vergonha de expressar publicamente apoio a uma jogada presidencial turba, e especificamente, com uma indicação controversa como a de Ariel Lijo.
Outros advertem que indicar magistrados desta forma, dá a chance a Javier Milei de esperar os resultados das eleições legislativas de 2025. E, no caso de alcançar uma maior base, passaria pelo Senado os nomes escolhidos. Seja como for, quem foi esquecida no processo foi a própria democracia. Regra básica, presidente indica, e Senado aprova. Lembremos que os ministros da corte não têm a legitimidade do voto popular, portanto, é a forma como chegam ao tribunal que carimba a sua legitimidade.
Em suma, é como jogar uma partida de futebol e o juiz ser seu melhor amigo. Quebra os sentidos da justiça e da representação democrática. Em dezembro de 2024, o presidente da Corte Suprema, Horácio Rosatti, manifestou ante a possibilidade de designações por decreto, que em última instancia é a própria Corte que vai avaliar a sua constitucionalidade[vii]. Atualmente, já existem duas apresentações nos tribunais contra o decreto[viii].
O velho conhecido
Ariel Lijo, juiz de carreira, é atualmente juiz federal da Nação na Cidade de Buenos Aires. Comodoro Py, onde trabalha, é o lugar onde julgam os maiores casos de corrupção e dos poderosos. E lá, ele é um dos caudilhos. Ariel Lijo é um dos fundadores e secretário-geral da Associação de Juízes e Juízas Federais (AJUFE). Seu padrinho político é Ricardo Lorenzetti, ministro da corte suprema. Seu nome foi sugerido a Javier Milei por Santiago Caputo, mão direita e assessor do presidente argentino.
A indicação do magistrado Ariel Lijo preenche a vaga deixada na Corte pela Dra. Elena Highton de Nolasco, após sua saída no dia 1 de novembro de 2021. Em agosto de 2024, o juiz Ariel Lijo defendeu sua candidatura para integrar a Corte Suprema de Justiça Nacional na Comissão de Acuerdos do Senado. A Audiência Pública ocorreu no Salão Azul do Congresso. Sua candidatura acumulou, ao longo das semanas que precederam este momento, 3.578 apoios e 328 contestações, conforme um relatório do ministro da Justiça da Nação, Mariano Cúneo Libarona.
Ariel Lijo respondeu questionamentos sobre sua postulação durante oito horas no senado[ix]. Foi das candidaturas mais impugnadas e contestadas da história para designação de ministros para a Corte. A vice-presidente de Javier Milei, Victoria Villarruel, antes da audiência de Lijo, fez uma declaração a respeito dele, afirmando que “Trata-se de um magistrado que não possui as credenciais adequadas para ocupar a posição de juiz da Suprema Corte da Nação. É uma das garantias da segurança jurídica. Sua nomeação não foi a mais acertada”[x].
De acordo com a Associação Civil por Igualdade e Justiça (ACIJ), Ariel Lijo possui um total de 34 denúncias disciplinares registradas junto ao Conselho da Magistratura desde o ano de 2004, posicionando-se como o segundo magistrado de Comodoro Py com o maior número de questionamentos, embora nenhuma delas tenha resultado em condenação. Para ter dimensão, Ariel Lijo tem uma média de 1,6 denúncias disciplinares anuais desde o início de sua atuação como magistrado[xi]. Ele também foi denunciado por associação ilícita, lavagem de dinheiro, propinas e tráfico de influência, sem condenações.
Numa das denúncias, Ariel Lijo teve como advogado, o midiático Mariano Cúneo Libarona, atual ministro da Justiça do governo de Javier Milei. Com tantos méritos e virtudes, a pergunta seria porque Ariel Lijo continuou por tantos anos como juiz federal. Parte da resposta é que sabe tanto lidar com a selva dos interesseiros como sobreviver à política que rodea os tribunais.
O magistrado federal também foi alvo de críticas em virtude de seu reduzido índice de encaminhamento a julgamento em casos de corrupção, além de conservar processos pendentes por longos intervalos de tempo. Neste sentido, Ariel Lijo teve nas suas mãos 89 casos de corrupção de alta repercussão, mas considerou que só 14 poderiam continuar seu julgamento. Casos de grandes nomes, como caso Amia, caso do Correio Argentino (com Macri como acusado e paralisada faz anos), Caso Siemens (com mais de duas décadas sem grandes avanços). Processos que tem como partes vários políticos e figuras de peso no cenário político. Alguns indicam que ele tem alguns casos abertos como resguardo político ante possíveis investidas contra ele.
Por outro lado, Alfredo, conhecido como Freddy, irmão de Ariel Lijo, é considerado um operador judicial (lobby na justiça para influenciar em casos), também acusado por corrupção. Os irmãos Lijo ganharam o apelido de “os irmãos luxo”[xii].
Foram muitas e diversas as manifestações contrárias às indicações, mas duas são sintomáticas. Por um lado, ironicamente, a crítica vem do país a que Javier Milei está submetido. Neste sentido, a Câmara de Comercio dos Estados Unidos (AmCham) na Argentina, apontou sua “preocupação a respeito da nomeação dos novos integrantes da Corte Suprema”, e seu impacto na economia[xiii]. Pelo outro, pelo seu significado, o Colégio de Advogados da Cidade de Buenos Aires expressou sua oposição à nomeação, por meio de um comunicado em que afirma que “o Dr. Lijo (…) tem sido repetidamente questionado por sua conduta inadequada…”[xiv]. O colégio é semelhante à OAB.
Juristas, políticos e figuras públicas, até aliados do próprio Javier Milei, foram contra as designações. Inclusive o PRO, partido de Mauricio Macri, e a Coalizão Cívica, tendo como uma das maiores críticas, Elisa Carrió. O constitucionalista Daniel Sabsay afirmou que tudo é irregular e que gera instabilidade institucional[xv]. Na mesma linha, se posicionou o constitucionalista Andrés Gil Dominguez, indicando que o decreto é nulo de nulidade absoluta.
A situação de Ariel Lijo está complicada e ainda se aguarda a sua formalização. Como a designação é temporária, Ariel Lijo não quer perder seu cargo federal, pedindo licença do cargo. Mas o pedido de Ariel Lijo foi negado pela Corte Suprema (com o voto do novo ministro García-Mansilla), indicando que deve renunciar a seu cargo para assumir como juiz da Corte. Alguns indicam que Ariel Lijo não vai renunciar e vai esperar que sua indicação seja aprovada pelo Senado.
O desconhecido
García-Mansilla substituiu o juiz Juan Carlos Maqueda, que, em dezembro de 2024, alcançou a idade máxima (75 anos) estipulada pela Constituição para o exercício da magistratura. No mês de março de 2024, ao aceitar a proposta de integrar o mais alto tribunal judicial, o presidente Javier Milei o indicou como candidato. Destaca-se, que desde o início do processo no legislativo, o então candidato não conseguiu sequer obter as nove assinaturas necessárias para a emissão do parecer da Comissão de Acuerdos do Senado. O passo prévio à votação no plenário do Senado.
Passando por cima da posição do Senado, em 25 de fevereiro de 2025, Javier Milei o nomeou em comissão, por meio do decreto N° 137/2025. A Corte Suprema, ao considerar que o candidato García-Mansilla possuía as qualificações exigidas pela Constituição Federal, o empossou em cerimônia de portas fechadas, em 27 de fevereiro, no Salão Bermejo do Palácio da Justiça.
García-Mansilla tem uma carreira vinculada ao mundo acadêmico, é doutor em direito, decano da Faculdade de direito da universidade austral e professor de direito constitucional. É membro de diversas associações nacionais e internacionais de direito. É considerado de ideias muito conservadoras no âmbito dos costumes e liberal no econômico, na linha do governo atual[xvi].
Como exemplo, destacam-se sua postura restritiva com relação a vigência, hierarquia e operatividade dos tratados de direitos humanos, sua posição com relação aos direitos reprodutivos e, especialmente, sua militância contra a lei da interrupção voluntária da gestação, em todas suas versões[xvii].
Antecedente
Mauricio Macri, ex-presidente, foi o último mandatário que tentou a indicação de magistrados por decreto em comissão, a poucos dias de começar seu mandato em 2015. Mas Mauricio Macri teve que voltar atras na polemica decisão, pela contundente resposta nas ruas e no legislativo e pelas demandas no judiciário. Finalmente, Mauricio Macri reintroduziu as indicações no Senado, conseguindo a aprovação dos magistrados (Horácio Rosatti e Carlos Rosenkrantz), respeitando os ritos democráticos.
Horizonte
Com a preocupação global sobre a erosão democrática, e o cada vez maior número de países em transição para autocracias, a ação de Javier Milei acendeu as luzes vermelhas. Um dos principais movimentos nesse tipo de transição, certificando a erosão democrática para regimes autocráticos, é a cooptação e controle dos poderes judiciário, especialmente das cortes supremas. Javier Milei, apesar da falta de apoio legislativo, demostrou perseverança na sua orientação para esse objetivo. No final de 2025, haverá eleições legislativas na Argentina, aumentando a possibilidade de radicalização. A construção de alianças entre atores, instituições democráticas e a sociedade é fundamental para barrar os ímpetos autoritários do presidente, na defesa da democracia.[xviii]
*Andrés del Río é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Notas
[i] https://www.pagina12.com.ar/791470-la-corte-no-quiere-que-el-gobierno-designe-jueces-por-decret
[ii] https://www.clarin.com/sociedad/justicia-salio-preguntar-evaluan-ciudadanos-resultado-demoledor_0_dcamiimiUP.html?srsltid=AfmBOorsDNwjUIBuBoOujDhYFnIFBvHb9N4qdql0u8Ro2n8dabcJKwTl
[iii] https://inecip.org/prensa/comunicados/grave-retroceso-para-la-independencia-judicial-y-la-calidad-institucional-en-la-corte-suprema/
[iv] https://oig.cepal.org/es/indicadores/poder-judicial-porcentaje-mujeres-ministras-maximo-tribunal-justicia-o-corte-suprema
[v] https://www.pagina12.com.ar/806801-reparecio-zaffaroni-y-condeno-la-designacion-de-jueces-de-la
[vi] https://www.lavoz.com.ar/politica/garcia-mansilla-ya-es-el-cuarto-integrante-de-la-corte-suprema/
[vii] https://www.pagina12.com.ar/792648-rosatti-sobre-los-jueces-por-decreto-en-ultima-instancia-res
[viii] https://www.pagina12.com.ar/807027-los-tribunales-deciden-si-frenan-la-asuncion-en-comision-de-
[ix] https://www.infobae.com/politica/2024/08/21/el-juez-ariel-lijo-en-el-senado-en-vivo-las-ultimas-noticias-sobre-el-proceso-de-seleccion-para-integrar-la-corte-suprema-minuto-a-minuto/
[x] https://www.lavoz.com.ar/politica/villarruel-cargo-contra-lijo-a-horas-de-la-audiencia-en-el-senado-y-convoco-a-tratar-el-tema-de-las-dietas/
[xi] https://chequeado.com/el-explicador/quien-es-ariel-lijo-uno-de-los-dos-candidatos-propuestos-por-javier-milei-para-integrar-la-corte-suprema/
[xii] https://noticias.perfil.com/noticias/politica/por-que-ariel-lijo-es-un-candidato-polemico-para-la-corte-suprema.phtml
[xiii] https://www.lanacion.com.ar/economia/las-empresas-de-eeuu-alertan-sobre-el-impacto-en-la-economia-de-la-designacion-por-decreto-en-la-nid26022025/
[xiv] https://www.colabogados.org.ar/posicion/declaracion.php?id=347
[xv] https://www.youtube.com/watch?v=AzwlWHYEs6U
[xvi] https://www.pagina12.com.ar/807362-un-conservador-antiderechos-en-la-corte
[xvii] https://www.youtube.com/watch?v=9B2z5GG15qc
[xviii] Agradeço a cuidadosa leitura da Dra. Andrea O. Ribeiro
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA