Por RAFAEL R. IORIS*
Meias medidas ou arremedos não serão mais tolerados. E, de certa forma, é a própria pandemia em curso que nos mostra a cada dia que não será possível voltarmos a uma suposta normalidade definida pelo neoliberalismo autoritário em expansão
Faz tempo que o contexto político brasileiro vem sendo definido em grande parte pela asfixiante falta de perspectiva clara do que fazer para conter (remover) o Bolsonarismo da chefia da nação. De fato, embora muitos tenham de início acreditado que os militares poderiam servir como um agente moderador frente ao neofascismo crescente, o que fica cada dia mais claro é que as diferenças entre as lideranças das forças armadas e do desgoverno atual são mais de estilo do que de substância. Nesse sentido, mobilizações recentes para a composição de diferentes formas de uma alguma dita frente ampla das forças democráticas certamente representam algo novo e, espera-se, promissor.
De maneira concreta, representantes das mais variadas forças políticas do país vem crescentemente se manifestado a favor de uma união pela defesa das instituições democráticas. Alguns desses a princípio eram mais cautelosos em suas críticas aos mandantes atuais do país, como figuras centrais do PSDB, e certamente vários outros fizeram parte do movimento de impeachment de 2016, como personalidades públicas da mídia. Frente a um presidente que em meio a maior pandemia da história do país, vai às ruas junto com seus apoiadores mais ferrenhos para defender o fechamento do Congresso Nacional e do STF, iniciativas pró-democracia devem ser claramente louvadas.
Porém, para que faça sentido, é necessário que tais esforços não sejam uma nova versão do mudar para manter as coisas como estão e impliquem uma alteração clara da lógica e matrizes econômica (neoliberalismo), politica (militarismo crescente e ações para a eliminação do adversário) e cultural (moralista, reacionária e anti-intelectual) em curso. O fato é que já vivemos em uma democracia profundamente tutelada, entre outras coisas, pelos tweets das lideranças militares que, ao longo dos últimos anos se auto-entitularam da função de demarcar os limites da aplicação da lei pela corte suprema.
Há, pois, que se reconstruir a plenitude democrática; o que implica, de maneira concreta, na cassação da chapa Bolsonaro/Mourão e a convocação de eleições gerais. Da mesma forma, precisamos demandar a reversão das reformas constitucionais efetivadas pelo governo pós-golpe parlamentar de 2016 que impediram as alocações orçamentárias que hoje se fazem tão urgentes no combate à pandemia.
Frente Ampla, sim! Frente ampla pela democracia e contra a lógica neofascista crescente. Mas precisamos também de uma frente que rejeite o militarismo e o neoliberalismo em curso – instrumentos centrais da destruição dos direitos trabalhistas, sociais, humanos e ambientais a tão duras penas construídos ao longo dos últimos 30 anos.
Nesse sentido, uma frente ampla pela democracia, que faça jus ao nome, não pode ser somente uma que exija a saída de Bolsonaro da presidência, embora essa seja a demanda central. O que há que ser buscar, de maneira alternativa, é o próprio resgate dos valores balizares consagrados na Constituição de 1988: a promoção da inclusão política e a redução das desigualdades sociais.
Precisamos, pois, de um movimento, o mais amplo e inclusivo possível, que incorpore em suas fileiras não só o Fora Bolsonaro mas que possa oferecer um horizonte para o dia seguinte. Dia esse que não pode ser a continuidade das políticas em curso sob uma nova gerência civil ou, pior, sob um novo comando militar.
É inegável que Bolsonaro e´ uma ameaça clara à própria democracia, e hoje também à própria existência física das pessoas. Mas também é claro, embora muitos que hoje se enfileiram pelo Fora Bolsonaro ainda façam vistas grossas às evidências, Guedes, Salles, Weintraub, Mourão, etc. são ameaças igualmente fortes contra qualquer projeto minimamente democrático de sociedade pois são deletérios à própria noção de coletividade e promotores assumidos do aprofundamento da desagregação social e desigualdades sociais.
Como as ruas ao redor do mundo vem demonstrando ao longo das últimas semanas, vivemos hoje imersos em um sentimento antissistêmico generalizado. Meias medidas ou arremedos não serão mais tolerados. E, de certa forma, é a própria pandemia em curso que nos mostra a cada dia que não será possível voltarmos a uma suposta normalidade definida pelo neoliberalismo autoritário em expansão.
No Brasil, precisamos assegurar que o resgate da nossa própria institucionalidade democrática seja definido pelos marcos constitucionais ainda existentes. De maneira concreta, há que se garantir a demarcação e proteção das terras indígenas, a manutenção do ensino laico e da investigação científica como eixos centrais de nossas políticas públicas, o cancelamento da PEC do Fim do Mundo e a reversão das alterações nos direitos sociais implementadas ao longo dos últimos cinco anos.
Sem essa perspectiva de reconstrução de um projeto nacional, qualquer iniciativa de Frente Ampla irá assumir, novamente, ares de geleia geral, onde o discurso da dita direita liberal decente irá, mais uma vez, assumir o papel preponderante.
Tais iniciativas, via conchavo entre os coveiros de farda no poder e nossas elites ilustradas de toga ou terno no Congresso, não tem como dar conta do que precisamos de fato: uma Frente Popular Antifascista e Democrática – da qual tivemos os primeiros indícios no fim de semana que passou.
Nosso país é complexo e carente demais para caber dentro de tais acordos que, como ocorreu na nossa insuficiente transição democrática no início dos anos 80, se funcionam no curto prazo, acabam por criar fantasmas e monstrengos piores, no longo prazo – resultado trágico que temos experimentado fortemente ao longo dos últimos tempos.
*Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver, no EUA.