Caetano Veloso

Imagem: frame do clipe UM ABRAÇAÇO
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Por J. CRISÓSTOMO DE SOUZA*

Com intuições próprias e audazes, Caetano Veloso mostra uma aguçada sensibilidade a tempo e contexto, que no geral tem faltado à nossa filosofia acadêmica, para não dizer à universidade brasileira em geral

1.

Depois de sua mais recente turnê, de 2024/25, com a mana Bethânia, Caetano Veloso anunciou no G! que quer “fazer canções que enfrentem a grande virada que o mundo está iniciando.” Bem, esses são mesmo tempos de uma grande virada, para um mundo pós-globalista e nacional, e, aqui dentro, para um novo popular.

Ambos retornados com vigor, mudados, junto com a ameaça direito-fascistóide, violenta, belicista. Uma virada também de povo, e, finalmente, do Brasil dentro dela, possivelmente maior, por exemplo, do que aquela da Crise de 1929. Inevitavelmente também uma virada de pensamento, pelo menos do pensamento que pretenda ter a ver com isso – o da esquerda em particular, com que Caetano sempre mexeu.

Guerra “Fria” 2.0 braba, comercial, militar, globalismo colapsado, “o Mundo”, para Caetano Veloso, “está em situação que sugere uma Terceira Guerra Mundial” – já em preparação! Não há nada mais grave do que isso, daí que ele “não quis encerrar a turnê sem que cantássemos uma canção orando pela paz”.O que é, ao mesmo tempo, um significativo gesto contra o preconceito anti-povo de seu público de esquerdo-classe-média.

Um gesto, ele diz, que “chama atenção para a necessidade de consciência da grandeza do fenômeno evangélico, popular, em nossa sociedade”. Fenômeno com o qual podem ser associados outros tantos, tão desconcertantes quanto, para nossa limitada esquerda assistencialista: o “pobre de direita”, o “pseudo-empreendedorista trouxa”, o verde-amarelo e a camisa da seleção dadas de bandeja a entreguistas, a segurança pública deixada como bandeira da direita, etc.

Alguma coisa a mais está agora muito fora da velha ordem mundial, antes alegadamente regida por normas, agora nova desordem trumpista, escancaradamente assumida, do modo mais ameaçador. E é nessas horas que Caetano Veloso, questionador à esquerda, sempre se bateu com compreensão acomodada das coisas.

O que, no seu caso, tem dado, tanto em perceptiva arte, como em biográfica vizinhança com filosofia e teoria. Pois se trata daquilo que a filosofia deve contribuir para realizar, junto com o tempo apreendido em arte por intuições: o tempo apreendido em conceito e além-projetado, revistos justamente nossos velhos termos de compreensão do mundo.

2.

Todo mundo sabe que Caetano Veloso é compositor e intérprete de primeira, que tem muita arte e muita ideia, como em suas canções, entrevistas e gestos. Ocorre que, entre tanta criação, ele é também autor do Verdade tropical (1997), um livro que bem mostra seu singular perfil de intelectual, que lida provocativamente com nossa compreensão das coisas. Nele, nosso autor trata da cultura, da identidade do Brasil, de modernismo e antropofagia, de tropicalismo e esquerda política.

Fora daí também lida como o rap, funk e o pentecostalismo, enquanto, todos esses, movimentos nacionais de espírito, “de cima” e “de baixo”. Caetano Veloso fala disso, no mencionado Verdade tropical como alhures, de um jeito muito próprio, que é a sua cara, por um sutil vai-e-vem dialético-hermenêutico. De um jeito nada dogmático, nada simplista, tropicalista eu diria, por uma elaboração de pensamento que bem se pode chamar de “gaia teoria”, bem distante do chamado “marxismo cultural”, que pouco tem de Marx. E assim ele tem seguido, sempre surpreendente, agora “ageless”, mesmo penteado, como na turnê e na entrevista mencionadas.

Lá muito atrás, em 1963, pelos 20 aninhos, Caetano Veloso enveredou por cursar filosofia na UFBA. Não foi em frente com isso, mas, décadas depois, em 1998, foi sagrado doutor honoris causa pela mesma UFBA. Em 2014, também pela Universidade de Rosário, Argentina, e, em 2023, pela de Salamanca, Espanha.

E daí seguiu, sempre intelectual e filosofante, vida afora, sensível a Karl Marx (até a Domenico Losurdo), gostando de Friedrich Nietzsche, obviamente de arte, e, com arte, de política – também de religião, por que não? Devemos concluir que, fosse gringo, já teria abocanhado o Prêmio Nobel de Literatura, com mais méritos do que seu aparentado, também genial auscultador dos tempos, Bob Dylan.

Segue com uma inclinação genuína para transcender, para as coisas do espírito em geral, em chave não trivial. O que inclui ainda o fato de que ele dança, como Nietzsche gostaria que seu deus fizesse. Enfim, um perfil intelectual exemplar, distintamente popular, não no sentido, como para alguns, de menos sutil e sofisticado, antes o contrário. Popular, nacional e democrático – numa dança particular dessas três disposições.

Suponho que seja por aí que Caetano responderá à tal nova Grande Virada de Mundo, que ele vê se iniciando, ou se intensificando, agora agravada com Trump 2, com seus desarranjos, destemperos e tarifaços.

3.

Verdade Tropical é um livro de percurso e de memórias, com algo de proustiano; é mais ainda um ensaio crítico-cultural sobre os movimentos desse País. Foi a propósito dele que nosso destacado – e filosófico – crítico literário, Roberto Schwarz, começou por admitir que Caetano Veloso é pelo menos um “intelectual de envergadura”. Para depois criticá-lo desde uma posição de esquerda convencional.[i]

O livro, de fato, não é pouca coisa; lembra o Observador, do poeta Drummond, e o Memórias, do antropofágico Oswald. Lembra também algo do ensaísmo de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. E ainda algo do recente documentário do rapper, intelectual e ativista negro, Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem.

O marxista Roberto Schwartz, cujo gosto crítico não é nada amigável à música pop nem ao Tropicalismo (para ele desprovido de “síntese” ou “mediação social”), louvou o Verdade como “obra de grande qualidade literária”. Pela qual Caetano Veloso ficaria confirmado como um “crítico de arte de primeira”, e uma “notável inteligência estética”. Que trata de “questões culturais sérias”, exibindo também um “domínio de alto nível sobre matéria estético-política”. E mais longe, sobre o livro e o autor, poderia ter ido Schwartz, preto só no nome austríaco, no seu reconhecimento do que pode nosso bardo.

Já o filósofo de carteirinha, também uspiano e marxista, Ruy Fausto, a propósito do tropical Verdade, destacou o “enorme apetite de Caetano Veloso pelas coisas do espírito, pela arte, pela teoria”. Para logo defendê-lo como melhor problematizador do que Schwarz, de questões político-filosóficas que envolvem a esquerda, sua experiência histórica, suas práticas.[ii]

Questões que Caetano Veloso aborda criativamente, sem alinhamento tradicional, e sobre as quais, aliás, Ruy Fausto tem sua própria reflexão crítica, publicada, que merece uma olhada. Mas Ruy Fausto tampouco conseguiu ver Caetano Veloso mais além, naquele livro.

O caso é que o jeito do Verdade encarar, descolonizada e poeticamente, esperançosamente, nosso caráter nacional brasileiro, é marca distintiva do pensamento de Caetano Veloso, o que não é pouco. Para começo de conversa, é uma marca francamente impopular entre intelectuais teórico-críticos, universitários, supostamente de esquerda, desde a Ditadura de 1964, até o ano 2025 em que estamos. Intelectuais em boa medida programados por aquela e pelo poder mais acima.

O que, creio, deve mudar agora, sob as bençãos da malignidade (não tão excepcional) de Donald Trump, da rearmada Europa colonialista, e da nova/velha desordem mundial conflagrada, quer dizer, a tal grande virada que ora se inicia.

Trata-se de uma marca que evoca, de bons tempos, outro valoroso mulato anticolonial, da sua Santo Amaro das católicas novenas de Dona Canô: Alberto Guerreiro Ramos. Teórico do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, que o Golpe de 64 imediatamente esmagou), para Pitirim Sorokin um dos grandes da teoria social do séc. XX.

Uma marca que evoca ainda nosso harvardiano Roberto Mangabeira Unger, teórico social de audiência internacional, filósofo original, anti-colonialista, de feição hegeliano-pragmatista e mais. Nessa linha, no percurso do pensamento brasileiro, Caetano Veloso, ainda pode ser situado na esteira do Oswald de Andrade, também daqueles mencionados intérpretes ensaístas brasileiros, e de representantes do anti-colonialismo filosófico do ISEB, como o referido, pós-católico, Guerreiro Ramos.

4.

Falta lembrar de Glauber Rocha, last but not least, além de tudo crente (presbiteriano) até no nome, para quase compor aqui uma escola nacional-baiana de pensamento e espírito. Mais ou menos ao modo dele, Caetano Veloso, no Verdade, expressa seu encantamento singular pelo Brasil, que de modo algum exclui reconhecer suas históricas mazelas ou, inseparavelmente, aquelas do mundo.

Expressa encantamento por um país ao mesmo tempo original, híbrido e, como ele dirá mais adiante, “grande demais para que alguém o engula”. Pois Verdade tem algo de um mobilizador “romance de um futuro nacional”, que é como Richard Rorty, filósofo poeticamente neopragmatista, fantasiou o pensamento de Mangabeira. O que pode se aplicar também ao pensamento de Caetano Veloso. Rorty poderia ter visto o laço de nosso Mangabeira com o transcendental Nicolau de Cusa, com cujo pensamento ele meio que secretamente se identifica, que não estou certo se Caetano Veloso conhece, mas igualmente lhe aparenta.

O lukacsiano Schwarz viu, no nacionalismo esperançoso e mobilizador, do sonho de nosso poeta, apenas um “patriotismo supersticioso”, uma “alegoria cafona” – e não sei o que ele veria agora, na grande nova virada e diante do atentado de Donald Trump contra a soberania nacional. Enquanto que, para Caetano Veloso, politicamente mais arguto, seu mito (pois é de mito que se trata) de um Brasil peculiar, põe-lhe “na posição de sonhar para além da inegável complicação das realizações históricas do marxismo ortodoxo” (Folha de S. Paulo, 15/04/2012).

Tomemos nota disso, que já é um belo passo de sofisticação mais que teórica. Daí que, para Caetano Veloso, “as sugestões de Roberto Mangabeira são mais atraentes do que as repetições da esquerda uspiana”. Inclusive mais atraentes do que as de Schwarz, aqui e ali eventualmente, admitamos, um pouco mais iluminadas do que as vistas acima.

Sobre essas coisas, podemos recordar por fim que Caetano Veloso, não faz muito tempo, quando quis demarcar terreno, do modo que lhe foi dado entender, com relação ao (neo)liberalismo dominante (até, tacitamente, na esquerda), foi chamar a atenção para uma “esquerda classista” que apesar de tudo mantém-se nacionalista e herdeira do ISEB. Imagino que ele teria esse cuidado mais ainda agora, diante da tal grande virada, anti-globalista, colonialista-brutal, trumpista, de “fim dos tempos”, de plena convulsão supremacista, de guerra nuclear e agressão tarifária, contrária a toda soberania nacional – dos outros.

5.

Não só no Verdade, entretanto, também nas canções que Caetano Veloso quer que respondam agora à grande virada do mundo que se inicia, sua poética carrega a marca nacional-popular, progressista-criativa, política e mais. Enquanto, ao mesmo tempo, compreende vivamente as inquietações da subjetividade privada, o eu pessoal digamos – sem que se lhe diga “que é isso, companheiro!”.

Da histórica Tropicália, “retrato em movimento do Brasil” (1968), ao epocal Meu Coco no outro extremo (2021), a pergunta pelo que somos e podemos, que Caetano responde, apesar de tudo, com otimismo e imaginação. Passando por Podres Poderes (1984): a “incompetência da América Catolicá”, os “boçais que somos”, que podemos, porém, nada menos do que “salvar o mundo!” Passando por Estrangeiro (1989), em que o amor, que é sempre “cego”, vê a Baía da Guanabara, tal como a nação, ao mesmo tempo “bela” e “banguela”. Mas também por Eu sou Neguinha? (1987): a identidade, racial e mais, fluida, livre, como num delírio. Passando por Fora da Ordem Mundial (em 1991): o país onde a construção antes de terminada vira ruína.

Passando, em 1997, ano do Verdade, por Livros, livros que podem, “por conceito, enredo ou verso, lançar [novos] mundos no mundo”, poeticamente, “desde o fundo escuro do coração solar da América do Sul”. E por muito mais passando: por Peter Gast (1983), a poesia do homem comum, e por Cajuína (1979), os afetos, a delicadeza, a finitude. Também por “louvores”, como no caso de Terra, como Lua de São Jorge (ambas 1978, álbum Muito), como a pagã, poético-metafísica, Oração ao Tempo (1979), de Cinema Transcendental. E, eu não poderia esquecer, por Sim/Não (1981) – cheia de magia transportadora, que eu dançava nos breaks da labuta de escrever minha trans-uspiana tese de doutorado de filosofia.

Se houvesse espaço, eu falaria ainda de seu reverente laço, e de Maria Bethânia, com o rei Roberto Carlos. Falaria do seu bolerante álbum, Fina Estampa, que nos casou em mais largo e profundo com a alma hispânica de nuestra América do que a MPB inteira. E falaria de seu reconhecimento da música sertaneja, que a turma dita intelectual e crítica em geral só se permite curtir depois de gravada pela mana. O fato é que, depois disso tudo, o democrático Caetano Veloso, agora desencaracolado, de novo confirma, no Meu Coco, a marca nacional, democrática e popular de sua obra, em 2021, quando a nova virada do mundo já batia em nossa cara.

Aí está, além do nacional, o interesse especial pelo que é espírito e popular, pelo funk e pelo rap, por evangelismo e pentecostalismo, pela favela, a miscigenação etc. Sobretudo, desde antes, “a força e criatividade disso tudo”, que “você tem que sentir”, que “merece respeito e atenção” (Folha, 06/03/19). Prossegue ele: “Briguei muito, sempre a mesma briga”, com a “gente que despreza o país e o povo”, seja com palavras teóricas, com aquele desprezo que na verdade “irresponsabiliza”. O que é o segredo decifrado do nosso viralatismo – e do superiorismo intelectual pseudo-progressista, de “exquerda”, inventor do “pobre de direita” e do “empreendedorista enganado”, a que já nos referimos.

Como disse Marcelo Silva, do Poética Pragmática, “tem muito brasileiro que não sabe se levantar sem dar uma rasteira no País” – no seu Povo. E é contra essas coisas, contra o anti-nacional, o anti-popular, o anti-democrático, a tônica profunda e abrangente da poética de Caetano, a que ele retorna agora em 2025. Sempre de olho no povo, sua inclinação, seu gosto, sua criatividade, sua – desconfortante – exuberância. Agora, diante da tal “Grande Virada de Mundo, que se inicia”, e do inadvertido risco fatal que envolve.

De outro lado, e do mesmo, no Verdade, nosso esperançoso autor destaca a brasilidade cosmopolita e criativa da Bossa Nova, também presente no sincrético Movimento Tropicalista, ambos tão sofisticados e avançados quanto qualquer coisa que o resto do mundo tenha para oferecer. Poético, afirmativo, Caetano Veloso exibe, além do mais, seu entusiasmo, moderno-tropicalista, por todo criar sofisticado, também material, artefatual, do País e de fora. Um entusiasmo que põe, por ex., o design do Caravelle (a caravela!), belo avião comercial francês, popular nos anos 1960, no nível da arquitetura de Niemayer e das harmonias da Bossa Nova. E vice-versa.

Graças principalmente a João Gilberto, a música popular brasileira seria para Caetano Veloso, digamos, como o idealismo alemão, na filosofia, para a Alemanha. Quer dizer, suas formas elaboradas são realização antecipada de um nacional avançado, como podem ser também nosso futebol e nosso carnaval, ou, de outro lado, a Embraer e mais artefatos.

Criações de espírito, clássicas, brasileiras, mas, desde lá atrás, na música, cosmopolitas, com recurso à roqueira guitarra elétrica “americana”. Esta, um artefato com que ele desafiou e escrachou a estética – e a política – da esquerda universitária de então, em plenos anos 1960.

6.

Vinte anos depois do lançamento do Verdade, no seu relançamento, em 2017, Caetano Veloso segue artista e homem comum, não quadro militante ou teórico tradicional. Sempre sendo o que sempre será, no livro como nas canções e por toda parte: um questionador inquieto e paradoxal, surpreendente, atento ao tempo. Mas não por isso modista: “A luta pela superação da opressão de classe e da humilhação colonialista, imperialista, nunca me abandonou” (Verdade, pref. 2017). E isso, sim, segue inteiramente atual, e biden-trumpianamente agravado.

Em suma, mais do que apenas de esquerda e ponto, nosso intelectual crítico segue sendo, eu diria, um progressista nacional colorido. Pois também isso pode ser seu Tropicalismo, agora maduro, nada anarquista: um progressismo político nacional, imaginoso, criador, a favor do popular. Pronto para responder, de novo filosoficamente, à nova grande virada do mundo, de agora.

No Verdade e em suas discussões e entrevistas posteriores, Caetano Veloso, poético e filosófico, não é adorniano nem foucaultiano. Segue gilbertofreyriano, oswaldiano, nietzschiano – afirmativo, artístico, não moralizante, não-elitista. Vejamos.

Na sua abertura ao futuro, agora, “somos todos chineses”, e, de outro lado, somos também sempre americanos – de outro tipo, óbvio. O que parece lhe interessar em política, desde antes do novo tempo é, trans-chinesamente, que “o gato cace bem os ratos”, sim. Mas que também tenha cor, de Brasil e desse povo, e por aí melhore e alegre – de um jeito livre, nosso, trans-ocidental, além-moderno – o resto todo do mundo virado, em particular nessa conjuntura viradeira.

Nesse espírito, sua vereda tropical de pensamento é reiterada, no milênio novo, e é aí filosoficamente estendida de modo notável. Na nova introdução ao grande livro, tantos anos depois, a pauta é ainda cultura, esquerda, Brasil sempre, e, agora mais ainda, filosofia. Esta, como nossa compreensão geral das coisas, como nível onde os demais assuntos discutidos vão naturalmente bater, aparece agora mais do que antes.

Com menos elaboração, com mais posição – e contraposição, Caetano Veloso se diz, modestamente, “leitor de critério frouxo e modesta erudição.” Enquanto, ao mesmo tempo, prescreve e cobra, tacitamente, como entendo, uma discussão filosófica brasileira, contribuindo assim para pôr a filosofia nacional em movimento.

Com intuições próprias e audazes, Caetano Veloso mostra uma aguçada sensibilidade a tempo e contexto, que no geral tem faltado à nossa filosofia acadêmica, para não dizer à universidade brasileira em geral. Onde a filosofia, como no caso do nosso velho “comentarismo interno”, “de ultramar”, ainda está em grande medida presa num classicismo, sem “segundo passo” para a autonomia autoral, não repetidora.

E, depois do classicismo, presa agora num novo-velho “jargonismo”, também originalmente francês e estruturalista, depois franco-americano, da nossa” crítica radical mais recente. Daí Caetano Veloso aparentemente não esperaria muita coisa, para o entendimento e o enfretamento da ameaçadora virada do mundo.

Para começo de conversa, no que diz respeito à filosofia, ele defende um estilo menos elusivo, mais anglo-saxão (à la Nabuco) ou schopenhaueriano (à la Machado), na verdade brasileiro. Mas sem tampouco cancelar, por isso, todo o pensamento dito “continental” (europeu) recente. Este último, como “teoria crítica” (em sentido alargado), sendo considerado por ele com alguma simpatia, no caso, p. ex., do tratamento persuasivo, reconstrutivo, “para cima”, de Foucault e Deleuze, oferecido pelo saudoso Roberto Machado.

Mesmo assim, para Caetano Veloso, genericamente, os discípulos brasileiros desses afrancesados esquerdistas, cripto-neoliberais, muitas vezes “repetem cacoetes linguísticos dos seus mestres [incluindo aí Lacan], para parecerem ter entendido o que escapa a não-iniciados, mas também a muitos deles mesmos” (Pref. de 2017, do Verdade).

Por aí, nosso democrata declara sua “antipatia contra a moda pós-estruturalista”, uma moda que se estende da França à academia americana, e daí, ora pois, também ao resto do mundo, incluindo a muito vulnerável – à influência de fora – academia brasileira de humanas. Trata-se da moda que caracterizo criticamente (filosoficamente) como, entre outras coisas, “linguocêntrica”, donde, mesmo se cripticamente, desencarnada, imaterialista, anti-corpórea, puritana, neo-liberal, e “anti-capitalista” fácil.[iii] Quanto ao próprio Caetano Veloso, ele recusa particularmente a falsa visão crítica do Brasil, também de sua história, que acompanha essa moda. Moda, já sabemos, basicamente informada por uma perspectiva no fundo norte-americana, que dá num “empobrecimento da questão da formação social brasileira”, na “destruição de tudo que aconteceu com o Brasil” (ibid.).

Já naquela discussão estético-política-filosófica de 2012, nosso democrático e filosófico autor se dizia “mais inclinado a ouvir Mangabeira Unger do que a tantos frankfurtianos” e “pós-estruturalistas” (de Levi-Strauss a Foucault e seus filhotes). Acomunados num pessimismo retrô nada prático, de fim de mundo, sem esperança. “Gosto mais do Esclarecimento do que da Dialética do Esclarecimento (de Adorno e Horkheimer), que tanto obscurece” – como no caso da “igualação” adorniana de “vida americana” e “Terceiro-Reich”.

Uma “vida”, ou “via”, que, entretanto, internamente, nos EUA, só tem feito piorar, e, externamente, trata agora de degringolar o resto inteiro do mundo, que por sua vez procura outra coisa.

7.

Na Introdução de 2017, do Verdade, depois de formular suas preferências de pensamento, sem querer cancelar – nem repetir – ninguém, para Caetano Veloso nossos dilemas filosóficos girariam, nos termos da informação que ele tem ou prefere, em torno da oposição entre, de um lado, um progressismo hiper-iluminsta, hipercartesiano, do literário filósofo Antônio Cícero. E, de outro lado, o antimodernismo “irracionalista”, interiorizado por nossos neo-afrancesados.

Quer dizer, o antimodernismo, requentado de Martin Heidegger, logo também de neo-franceses, logo também do antropólogo Viveiros de Castro. Este, desdobrador, nos Trópicos, do estruturalismo de Lévi-Strauss e do pós-estruturalismo de Gilles de Deleuze, em uma “filosofia bwana”.

É por aí, então, que o autor de Verdade Tropical desenvolve o que se pode entender como uma multifacetada via de mobilização atualizadora, para a filosofia e o pensamento brasileiros, para o nosso espírito em geral, por gestos inesperados e provocadores. Uma mobilização para nosso tempo, justamente, vemos agora, o da referida grande virada, que agora já bate forte em nossa cara.

Espera-se que, também, para a esquerda, uma mobilização para um pensamento que não siga emperrando a prática, a política, diante do novo. Esquerda que foi, em boa medida, sequestrada pelo pensamento anti-popular, anti-nacional, anti-democrático, o que é também um sinal dos tempos, sinal de sua crise, que, entretanto, aponta para o que pode ser sua sã superação.

8.

Voltemos ao popular, logo também ao evangélico, na sua sofisticada dança com o democrático e o nacional, em Caetano Veloso, dentro da nova virada do mundo, para além de filosofias eventualmente alienantes. O que é também voltar aos largos movimentos de espírito, extra-acadêmicos, na base da sociedade. E até aos lentos movimentos, correlatos, de verdadeiras “placas tectônicas”, que aparentemente, de tempos em tempos, reviram o mundo, como agora.

De um jeito ao qual Marx tentou lá atrás atribuir Sentido, por sua conhecida (teleo)lógica, histórica, dialética infalseável, do mesmo modo que outras opções, menores, de enquadramento explicativo-narrativo, têm tentado. E também tentam, para além dessas, seculares, do campo da teoria das humanas, aquelas do campo da religião stricto sensu, das quais as primeiras na verdade estão bem próximas.

O desafio agora é bem mais do que introduzir a guitarra na MPB, como no Festival da Record, de 1967, trinta anos antes do Verdade. Bem mais do que arrematar uma arrelia tropicalista, no Festival da Globo, de 1968, com um discurso por outra estética e outra política, com um curioso “Deus está solto” pelo meio. Trata-se de mais até do que enfrentar de uma Ditadura (embora isso possa fazer parte ainda hoje), e mesmo do que enfrentar uma “Crise de 1929”.

Pois nosso valente vate não desconhece, na virada dos nossos dias, a iminência de uma terceira guerra mundial, por uma preservação, desesperada, de uma supremacia unipolar. De uma supremacia ameaçada, no nosso tempo, basicamente pela China, apoiada pela Rússia, numa planetária briga de cachorro grande, que, começando por trompaços tarifários, acaba que ameaça, estamos vendo, o próprio Brasil. É o que está, no fim de contas, no miolo da “nova virada que se inicia”.

Nesse contexto, acontece de o popular não se conceber mais a si mesmo como destinado a ser prioritariamente “assistido”, por infinitas, sempre ameaçadas, “bolsas” e “políticas públicas”, para as pouco-salariadas classes trabalhadores reais de nosso país.[iv] País e povo devem necessariamente encontrar agora, juntos, sua própria própria virada, democrático-material, para além da mesmice dos nossos voos de galinha, para algo muito mais e melhor.

Pois esse popular é que representa a esperança de desenvolvimento nacional efetivo, para além do neoliberalismo social, assistencialista, e do velho, reiterado, desenvolvimentismo “keynesiano” meia-boca, concentrador, marginalizador. Acontece que, na verdade, para isso, o tempo da grande virada pode ser finalmente propício, enquanto cobra andar com as próprias pernas e não simplesmente acomodar-se ao existente.

Esse popular está colado agora a religião, não mais às comunidades católicas de base, mas ao evangelismo e ao pentecostalismo. E Caetano, pós-secularista popular-sofisticado, está de pé contra o preconceito de seu público classe média de esquerda, ou “exquerda”, para apontar “a grandeza do fenômeno evangélico”. Um fenômeno com o qual se associam, já vimos, mais outros igualmente desconcertantes para os esquemas de nossa esquerda dominante.

Pois pentecostal e evangélico podem ser o “pobre de direita” e o “pseudo-empreendedorista idiota”, para nosso arraigado cripto-catolicismo pobrista, iniciado lá atrás, no poder, como um “tudo pelo social”, do presidente José Sarney. Enquanto para o ativista popular Paulo Galo, e rapper, o problema é uma esquerda desconectada do povão, “playboy”, não o pobre de direita (Uol, 03/11/2024),

Com “uma canção orando pela paz”, Caetano Veloso pensa também naquilo em que o povo pensa, na paz contra a violência mais próxima, de todo dia. Naquela sem a qual a própria festa não rola e o eu pessoal sofre e se alarma, para lá da política, de um jeito que busca resposta nas religiões e nas igrejas. Na entrevista com que começamos, nosso autor invoca a paz do “Baiana System”, “um grupo que arrasta milhões na Bahia, e faz com que animação não descambe para a violência”.

Enquanto convoca o “louvor evangélico” Deus Cuida de Mim, do pastor-cantor Kleber Lucas, da Soul Igreja Batista: Que Deus “me proteja com suas asas, me abrigue em sua casa”, esse Deus que “me quer dar a mão”, que “me dê direção”. A mim que “preciso aprender um pouco aqui, um pouco ali”, que “quando uma porta se fecha aqui, outras se abrem ali”.

Não sei se isso é tão estranho ao que não-religiosos esperam de suas próprias crenças e práticas, politicamente engajadas, passadas do plano pessoal ao horizontalismo e ao plano social, das quais também podem advir consequências práticas (que são o que interessa) menos desejáveis. Quanto a Caetano Veloso, ele já cantava “a vitória do Espírito Santo”, cantava até Amon em Meu Coco, onde os pentecostais são primeiro lembrados.

Isso depois que Margareth Menezes, do afro-pop baiano, ainda não Ministra da Cultura, lá atrás, dentro de um grande movimento negro, louvara, com Faraó, a “Deus, divindade infinita do Universo”. Quanto aos mais não-religiosos, eu já sugeri que “ateu acredita em coisa que até crente duvida”, às vezes até mais piedosa e dogmaticamente, do que este faz, declaradamente como fé, quer dizer, aposta. E acredita não menos, reconhece Cazuza, roqueiro, para consolo próprio: “Ideologia, eu quero uma pra viver”. E, já que mencionamos ideologia, por interesses de poder e outras coisas mundanas mais.

No fim de contas, porém, “Deus é brasileiro e anda do meu lado”, ao lado de Emicida em AmarElo. Enquanto Mano Brown, para seguirmos com rappers, se põe, em fala com pastor, como “aprendiz de todas as religiões”: “Eu sou do berço do candomblé”, “quando nasci minha mãe era do candomblé, mas estudei em colégio adventista e, quando saí, tinha tudo isso comigo”, e aí eu preferi ficar neutro, respeitando os dois”.[v] Não posso crer que isso seja simplesmente ruim para a democracia, para o país e para o povo. Acho que Caetano Veloso tampouco, e é por isso que, no que diz respeito à grande virada, sou mais ele.

E, para encerrar, o nacional? Bem, agora nossa esquerda pseudo-vermelhinha, finalmente deu sinais de verde-amarelar, junto com o País, diante do tarifaço de Donald Trump. A tal grande virada já levou Lula, talvez depois de ler editoriais do Estadão, a pôr as coisas em melhores termos, na ordem certa, na sua fala ao país de 27/07/2019: “Só a pátria soberana [!] é capaz de gerar empregos, combater as desigualdades, garantir saúde e educação, promover o desenvolvimento sustentável e criar as oportunidades que as pessoas precisam para crescer na vida”.

Posso imaginar isso em ritmo de rap. Quem sabe, agora, para além das bolsas e do neolib mitigado, marchamos finalmente, sem outra alternativa, para o tal projeto de País, por que não? Sigo, por isso também, com Caetano Veloso – verdeamarelo, democrático, popular, evangélico – na grande virada. E não abro.[vi]

*José Crisóstomo de Souza é professor do Departamento de Filosofia da UFBA. Autor, entre outros livros, de O avesso de Marx: conversas filosóficas para uma filosofia com futuro (Ateliê de Humanidades). [https://amzn.to/3XGbMUn]

Referência

Caetano Veloso. Verdade Tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 2017, 456 págs. [https://amzn.to/4mqGYkB]

Notas


[i] Schwartz, “Verdade Tropical, um percurso do nosso tempo”, em Martinha versus Lucrécia. S. P.: Cia das Letras, 2012.

[ii] Ruy Fausto, “Caetano Veloso, Roberto Schwarz, etc.”, Revista Fevereiro, nº 6, 2012.

[iii] Dessas coisas trato no Para Além de Marx, Foucault e Teoria Crítica, que sairá, ainda em 2025, pela Ateliê de Humanidades. Aí contrasto essas vertentes com minha sugestão de um ponto de vista material, artefatual, prático-criativo, ou pragmático-poiético.

[iv] Sobre isso, ver meu “O elogio de Marx ao empreendedorismo”, em A Terra é Redonda, 17/11/2024, neste link, cujo título original começava com “O Brasil popular e o…”.

[v] O povo.com.br, 22/09/2021 – “Mano Brown discute temas como fé e religião com o pastor Henrique Vieira.”

[vi] Este texto se esboçou em “Caetano Pode Pautar a Filosofia Brasileira?” (Coluna Anpof, 27/09/22), avançou um passo em “Caetano Veloso: Filósofo, Intelectual, Nacional” (O Sol da Pátria, 11/09/24), para, com mais outro passo, chegar aonde chega agora, em função da nova conjuntura.

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Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
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Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
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A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
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Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
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O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
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Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
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Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
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Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
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O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
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Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
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Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
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As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
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A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
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O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
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