Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*
Uma das perversidades do discurso de Bolsonaro consiste em alimentar o jogo ideológico de apresentar-se aparentemente como defensor da liberdade para atacar sistematicamente a liberdade de imprensa
Em uma esplêndida passagem do filme O trem da vida (1998), do diretor romeno Radu Mihaileanu, o personagem Schlomo, o louco de uma comunidade israelita, habitantes de uma pequena aldeia judaica da Europa central, viajantes fugitivos do nazismo, rumo à Palestina, adverte os seus compatriotas em litígio por questões ideológicas: “Vocês já se perguntaram se nós humanos existimos? Deus criou o homem à sua imagem. Isso é lindo! Mas quem escreveu essa frase na Torá? Foi um homem, não foi Deus. O homem a escreveu sem modéstia, comparando-se a Deus. Talvez Deus tenha criado o homem, mas o homem criou Deus. O homem criou Deus só para poder se inventar, por isso escreveu um livro – a Bíblia – por medo de ser esquecido. A questão central não é saber se Deus existe, mas saber se nós existimos”. Eu complementaria: e de que forma existimos.
Os livros nascem como alimento do espírito. Se por um lado o corpo humano necessita alimentar-se constantemente de uma cesta composta com frutas, legumes, cereais, proteínas, vitaminas, sais minerais, carboidratos e água, por outro lado a alma tem fome e sede de uma variedade de nutrientes que lhe forneçam energia, direção e sentido em sua existência espiritual-material, como a arte, a filosofia, a ciência e o amor. É por meio dessas trocas saudáveis com o meio ambiente e com outros humanos que viabilizamos nosso florescimento e crescimento civilizatório.
Dom Hélder Câmara (1909-1999), ex-arcebispo de Olinda e Recife, numa sensível passagem sobre livros e a liberdade de expressão, contempla: “Louvado sejas, meu Senhor, pela Imprensa. Ela é o alimento da inteligência e luz para o espírito. Louvado sejas, meu Senhor, por todas as vezes que os livros, revistas e jornais aproximam as pessoas, diminuem as barreiras do espaço e do tempo. Louvado sejas, meu Senhor, por todas as vezes que as notícias e conhecimentos circulam por toda a terra dando novas oportunidades para a luta contra ignorância, para a libertação da pessoa humana. Senhor, nós te pedimos por todos os escritores e jornalistas do mundo: que eles sejam humildes servidores da verdade, da justiça e do amor” (in Um olhar sobre a cidade, p. 102, Paulus, 2016). Que falta faz, nos tempos atuais, uma liderança nacional da envergadura e com a luminosidade de Dom Hélder, capaz de fazer as denúncias com autoridade, de reunir pessoas de boa vontade em torno da verdade e de apontar caminhos para a formulação de respostas ao tempo. Hoje, infelizmente, boa parte das lideranças cristãs – leigas e religiosas – estão ausentes do espaço público, presas em suas inseguranças ou em seus proselitismos, voltadas para si mesmas, para seus projetos organizacionais, quando não estão reforçando o status quo autoritário instaurado no Brasil com o Golpe de 2016.
Levantamento realizado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mostra que apenas nos primeiros quatro meses de 2020 – sem contabilizar os registros das agressões do ano passado – Bolsonaro investiu 179 (cento e setenta e nove) vezes contra a Imprensa com as mais variadas agressões verbais, sinalizando com esta postura uma autorização para o seu rebanho reproduzir as mesmas agressões em seus ambientes cotidianos e em suas manifestações de rua. Uma das perversidades do discurso de Bolsonaro consiste em alimentar o jogo ideológico de apresentar-se aparentemente como defensor da liberdade para atacar sistematicamente a liberdade de imprensa, que é um dos direitos fundamentais de toda e qualquer democracia, incentivando, com esta atitude, seus asseclas a fazerem o mesmo em suas redes sociais e nos espaços públicos, de formas as mais intensas e muitas vezes por meio de “fake news”.
No dia 04 de julho de 2015, cinco anos atrás, o site CONJUR divulgava a denúncia feita pelo WikiLeaks, do jornalista Julian Assange, na qual autoridades do governo brasileiro, entre as quais a presidente Dilma Rousseff, e seus assessores foram fartamente espionados pela Agência de Espionagem estadunidense, NSA. A divulgação desse material mostrou como os EUA tratam criminosamente os governos e nações mundo afora. Essa espionagem estadunidense veio a público quando Edward Snowden, ex-agente da NSA, denunciou o controle telemático mundial desenvolvido pelos EUA. Ocorre que este país está pedindo a extradição do fundador do WikiLeaks para enquadrá-lo na sua Lei de Espionagem, podendo o jornalista enfrentar até 175 anos de prisão se for condenado. Ou seja, os EUA podem espionar quem bem quiser, mas não admitem ser espionados. O relator especial da ONU, Nils Melzer, afirmou recentemente que o caso Assange deveria interessar a todos que se importam com a democracia: “Julian Assagen foi torturado psicologicamente pelos EUA e Inglaterra. Isso é um enorme escândalo. Se ele for condenado, será uma sentença de morte para a liberdade de imprensa”.
Estudos comprovam enormemente que os governantes de extrema-direita miram em dois alvos preferenciais para o exercício do seu projeto: 1) o aparelhamento do sistema judiciário, de olho especialmente no controle da Suprema Corte, permitindo mudanças na Constituição sob uma aparente tutela de legalidade; 2) o silenciamento das vozes da oposição, maculando publicamente biografias, como pelo uso dos sistemas de justiça e inteligência para intimidar e minar financeiramente tanto a imprensa não alinhada ao governo quanto às instituições de ensino, espaços de liberdade de expressão, perigosa à estabilidade do seu projeto de poder autoritário.
O mês de julho de 2020 iniciou com a reportagem conjunta entre The Intercept Brasil e a Agência Pública denunciando agentes do FBI (Federal Bureau of Investigation) estadunidense atuando nas investigações da Lava Jato de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol. Estes agentes dividem-se em dois tipos. Uns são figuras públicas, aparecem frequentemente em eventos elogiando o trabalho do grupo de Curitiba e dando-lhes orientações de como seguir a lei estadunidense. Os outros agentes não aparecem, para evitar a exposição de agentes que realizam operações secretas ou controversas em território estrangeiro. Para o advogado Cristiano Zanin, patrono do presidente LULA, no processo do Triplex, a promiscuidade da atuação dos promotores da Lava Jato com autoridades policiais estadunidenses é ILEGAL E GRAVE em virtude de não estar registrada nos autos, em evidente grau de “informalidade”. Agrava-se ainda pelo fato de o juiz Sérgio Moro, em 2018, mesmo tendo assistido ao vídeo apresentado pelo Dr. Zanin, indeferiu todas as perguntas feitas em audiência sobre este tema. E é esse tipo de juiz que a Globo defende com unhas e dentes em sua linha editorial. Por quê? Seria muito bom serem investigadas essas razões.
*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)