A liberdade de expressão

Imagem_ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*

Uma das perversidades do discurso de Bolsonaro consiste em alimentar o jogo ideológico de apresentar-se aparentemente como defensor da liberdade para atacar sistematicamente a liberdade de imprensa

Em uma esplêndida passagem do filme O trem da vida (1998), do diretor romeno Radu Mihaileanu, o personagem Schlomo, o louco de uma comunidade israelita, habitantes de uma pequena aldeia judaica da Europa central, viajantes fugitivos do nazismo, rumo à Palestina, adverte os seus compatriotas em litígio por questões ideológicas: “Vocês já se perguntaram se nós humanos existimos? Deus criou o homem à sua imagem. Isso é lindo! Mas quem escreveu essa frase na Torá? Foi um homem, não foi Deus. O homem a escreveu sem modéstia, comparando-se a Deus. Talvez Deus tenha criado o homem, mas o homem criou Deus. O homem criou Deus só para poder se inventar, por isso escreveu um livro – a Bíblia – por medo de ser esquecido. A questão central não é saber se Deus existe, mas saber se nós existimos”. Eu complementaria: e de que forma existimos.

Os livros nascem como alimento do espírito. Se por um lado o corpo humano necessita alimentar-se constantemente de uma cesta composta com frutas, legumes, cereais, proteínas, vitaminas, sais minerais, carboidratos e água, por outro lado a alma tem fome e sede de uma variedade de nutrientes que lhe forneçam energia, direção e sentido em sua existência espiritual-material, como a arte, a filosofia, a ciência e o amor. É por meio dessas trocas saudáveis com o meio ambiente e com outros humanos que viabilizamos nosso florescimento e crescimento civilizatório.

Dom Hélder Câmara (1909-1999), ex-arcebispo de Olinda e Recife, numa sensível passagem sobre livros e a liberdade de expressão, contempla: “Louvado sejas, meu Senhor, pela Imprensa. Ela é o alimento da inteligência e luz para o espírito. Louvado sejas, meu Senhor, por todas as vezes que os livros, revistas e jornais aproximam as pessoas, diminuem as barreiras do espaço e do tempo. Louvado sejas, meu Senhor, por todas as vezes que as notícias e conhecimentos circulam por toda a terra dando novas oportunidades para a luta contra ignorância, para a libertação da pessoa humana. Senhor, nós te pedimos por todos os escritores e jornalistas do mundo: que eles sejam humildes servidores da verdade, da justiça e do amor” (in Um olhar sobre a cidade, p. 102, Paulus, 2016). Que falta faz, nos tempos atuais, uma liderança nacional da envergadura e com a luminosidade de Dom Hélder, capaz de fazer as denúncias com autoridade, de reunir pessoas de boa vontade em torno da verdade e de apontar caminhos para a formulação de respostas ao tempo. Hoje, infelizmente, boa parte das lideranças cristãs – leigas e religiosas – estão ausentes do espaço público, presas em suas inseguranças ou em seus proselitismos, voltadas para si mesmas, para seus projetos organizacionais, quando não estão reforçando o status quo autoritário instaurado no Brasil com o Golpe de 2016.

Levantamento realizado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mostra que apenas nos primeiros quatro meses de 2020 – sem contabilizar os registros das agressões do ano passado – Bolsonaro investiu 179 (cento e setenta e nove) vezes contra a Imprensa com as mais variadas agressões verbais, sinalizando com esta postura uma autorização para o seu rebanho reproduzir as mesmas agressões em seus ambientes cotidianos e em suas manifestações de rua. Uma das perversidades do discurso de Bolsonaro consiste em alimentar o jogo ideológico de apresentar-se aparentemente como defensor da liberdade para atacar sistematicamente a liberdade de imprensa, que é um dos direitos fundamentais de toda e qualquer democracia, incentivando, com esta atitude, seus asseclas a fazerem o mesmo em suas redes sociais e nos espaços públicos, de formas as mais intensas e muitas vezes por meio de “fake news”.

No dia 04 de julho de 2015, cinco anos atrás, o site CONJUR divulgava a denúncia feita pelo WikiLeaks, do jornalista Julian Assange, na qual autoridades do governo brasileiro, entre as quais a presidente Dilma Rousseff, e seus assessores foram fartamente espionados pela Agência de Espionagem estadunidense, NSA. A divulgação desse material mostrou como os EUA tratam criminosamente os governos e nações mundo afora. Essa espionagem estadunidense veio a público quando Edward Snowden, ex-agente da NSA, denunciou o controle telemático mundial desenvolvido pelos EUA. Ocorre que este país está pedindo a extradição do fundador do WikiLeaks para enquadrá-lo na sua Lei de Espionagem, podendo o jornalista enfrentar até 175 anos de prisão se for condenado. Ou seja, os EUA podem espionar quem bem quiser, mas não admitem ser espionados. O relator especial da ONU, Nils Melzer, afirmou recentemente que o caso Assange deveria interessar a todos que se importam com a democracia: “Julian Assagen foi torturado psicologicamente pelos EUA e Inglaterra. Isso é um enorme escândalo. Se ele for condenado, será uma sentença de morte para a liberdade de imprensa”.

Estudos comprovam enormemente que os governantes de extrema-direita miram em dois alvos preferenciais para o exercício do seu projeto: 1) o aparelhamento do sistema judiciário, de olho especialmente no controle da Suprema Corte, permitindo mudanças na Constituição sob uma aparente tutela de legalidade; 2) o silenciamento das vozes da oposição, maculando publicamente biografias, como pelo uso dos sistemas de justiça e inteligência para intimidar e minar financeiramente tanto a imprensa não alinhada ao governo quanto às instituições de ensino, espaços de liberdade de expressão, perigosa à estabilidade do seu projeto de poder autoritário.

O mês de julho de 2020 iniciou com a reportagem conjunta entre The Intercept Brasil e a Agência Pública denunciando agentes do FBI (Federal Bureau of Investigation) estadunidense atuando nas investigações da Lava Jato de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol. Estes agentes dividem-se em dois tipos. Uns são figuras públicas, aparecem frequentemente em eventos elogiando o trabalho do grupo de Curitiba e dando-lhes orientações de como seguir a lei estadunidense. Os outros agentes não aparecem, para evitar a exposição de agentes que realizam operações secretas ou controversas em território estrangeiro. Para o advogado Cristiano Zanin, patrono do presidente LULA, no processo do Triplex, a promiscuidade da atuação dos promotores da Lava Jato com autoridades policiais estadunidenses é ILEGAL E GRAVE em virtude de não estar registrada nos autos, em evidente grau de “informalidade”. Agrava-se ainda pelo fato de o juiz Sérgio Moro, em 2018, mesmo tendo assistido ao vídeo apresentado pelo Dr. Zanin, indeferiu todas as perguntas feitas em audiência sobre este tema. E é esse tipo de juiz que a Globo defende com unhas e dentes em sua linha editorial. Por quê? Seria muito bom serem investigadas essas razões.

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)

 

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michel Goulart da Silva Francisco Pereira de Farias Marjorie C. Marona Thomas Piketty Atilio A. Boron Everaldo de Oliveira Andrade Eleonora Albano Heraldo Campos Francisco de Oliveira Barros Júnior Flávio Aguiar Alysson Leandro Mascaro Henri Acselrad Remy José Fontana Celso Frederico Mário Maestri João Lanari Bo Ronald Rocha Matheus Silveira de Souza Carlos Tautz Salem Nasser Antonino Infranca Tales Ab'Sáber Liszt Vieira Ricardo Antunes Annateresa Fabris Fernando Nogueira da Costa Antonio Martins José Machado Moita Neto Paulo Martins José Dirceu João Sette Whitaker Ferreira Celso Favaretto Yuri Martins-Fontes José Geraldo Couto Alexandre de Lima Castro Tranjan Juarez Guimarães Daniel Afonso da Silva Gabriel Cohn João Adolfo Hansen Igor Felippe Santos Leonardo Boff Eliziário Andrade Luís Fernando Vitagliano Marcos Aurélio da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira João Carlos Loebens Andrés del Río Carla Teixeira Claudio Katz Sergio Amadeu da Silveira Rubens Pinto Lyra Marilena Chauí Marilia Pacheco Fiorillo Andrew Korybko Airton Paschoa Priscila Figueiredo Francisco Fernandes Ladeira José Luís Fiori Fernão Pessoa Ramos Leda Maria Paulani Daniel Costa Bruno Fabricio Alcebino da Silva André Márcio Neves Soares Marcos Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bruno Machado Chico Whitaker Ronald León Núñez Luiz Werneck Vianna Renato Dagnino José Micaelson Lacerda Morais Lincoln Secco Flávio R. Kothe Daniel Brazil João Carlos Salles Elias Jabbour Berenice Bento Jorge Luiz Souto Maior Marcelo Módolo Afrânio Catani Luis Felipe Miguel Armando Boito Leonardo Sacramento Anselm Jappe Alexandre de Freitas Barbosa Vanderlei Tenório Kátia Gerab Baggio João Paulo Ayub Fonseca Valerio Arcary Osvaldo Coggiola Bernardo Ricupero Dênis de Moraes Luiz Renato Martins Marcelo Guimarães Lima Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Bernardo Pericás Michael Löwy Gerson Almeida Ricardo Abramovay Eugênio Bucci Eleutério F. S. Prado Vladimir Safatle Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Paulo Capel Narvai Slavoj Žižek Benicio Viero Schmidt Luciano Nascimento Chico Alencar Samuel Kilsztajn Denilson Cordeiro Manchetômetro Mariarosaria Fabris Luiz Eduardo Soares Otaviano Helene Boaventura de Sousa Santos Luiz Marques Jean Pierre Chauvin Lorenzo Vitral Valerio Arcary Paulo Nogueira Batista Jr Marcus Ianoni Gilberto Lopes Henry Burnett José Costa Júnior Rafael R. Ioris Dennis Oliveira Manuel Domingos Neto Jean Marc Von Der Weid Eduardo Borges Tadeu Valadares Jorge Branco Alexandre Aragão de Albuquerque Ladislau Dowbor Érico Andrade José Raimundo Trindade João Feres Júnior Gilberto Maringoni Michael Roberts Leonardo Avritzer Caio Bugiato Fábio Konder Comparato Rodrigo de Faria Ari Marcelo Solon Milton Pinheiro Ricardo Fabbrini Walnice Nogueira Galvão Paulo Sérgio Pinheiro Antônio Sales Rios Neto André Singer Sandra Bitencourt Vinício Carrilho Martinez Luiz Roberto Alves Eugênio Trivinho Maria Rita Kehl Paulo Fernandes Silveira Bento Prado Jr. Ricardo Musse Ronaldo Tadeu de Souza Tarso Genro Julian Rodrigues

NOVAS PUBLICAÇÕES