Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
Novos ângulos da polêmica à luz da obra de Frantz Fanon
Gostaria de iniciar essas breves linhas ressaltando que o autor destas é um homem negro. E o faço não para conferir autoridade ou legitimidade, advinda por alguma espécie de pertencimento étnico ou racial, às questões que levanto, e sim para reafirmar a pluralidade e multiplicidade das perspectivas negras. Obviamente como negro me coloco veementemente nas trincheiras da luta antirracista em seus vários aspectos reprodutivos na sociedade brasileira.
Dito isso, passo à polêmica da vez, o texto publicado por Lilia Schwarcz no jornal Folha de S. Paulo sobre o filme Black is King de Beyoncé. Afirmo nesse sentido, que não tenho a pretensão desnecessária de fazer algo que a própria pesquisadora não o fez: a defesa de seu texto. A historiadora e antropóloga admitiu seu erro e se desculpou com a comunidade negra brasileira em geral. Ademais não possuo a competência e talento de meus colegas e minhas colegas negros e negras para tratar o assunto da perspectiva que o fizeram, pois, feliz ou infelizmente, a agenda de pesquisa a que dediquei minha formação como pesquisador na academia é outra.
Minha voz aqui é dissonante, por isso, iniciei estas linhas ressaltando a pluralidade e a multiplicidade das perspectivas negras.Desloco-me, de certo modo, de muitas crítica (qualificadas) tecidas por meus pares, pesquisadores e pesquisadoras negras. O ponto de partida da polêmica é o filme Black is King de Beyoncé e a crítica que Schwarcz fez a ele. Em si mesmo tanto o filme como a crítica, e a crítica da crítica são fundamentais e positivos para nossos debates públicos acerca de questões candentes. No caso o racismo nas sociedades estadunidense e brasileira.
Ao fazer uma crítica à ressignificação que Beyoncé faz da ancestralidade negra – agora, segundo o crivo da antropóloga, glamourizada via os padrões atuais da dita indústria cultural – Lilia Schwarcz recebeu desaprovações de intelectuais, pesquisadores, ativistas e figuras públicas negras. Argumentou-se que ela fala do espaço de mulher branca; que ela não problematiza sua branquitude (um conceito fora de lugar, mas esse é tema para outro debate); que ela de modo arrogante e prepotente desejou ensinar e dizer a Beyoncé como se faz luta antirracista; que ela, por ser branca privilegiada não compreende a importância da posição da maior artista pop viva, assim como da potência educativa e representativa de ela encenar o passado belo dos povos negros em África.
Assim, por localizar-se no território da branquitude, Lilia Schwarcz não está autorizada a expressar a crítica nestes termos, isto é criticar uma artista negra elaborando teatral e musicalmente o passado de seus ancestrais em África. Que seja. Mas alguns e algumas estão, como nos mostra o legado de Frantz Fanon. O problema de reivindicar o passado da negritude já foi tratado por ele na sua obra [Peles Negras Máscaras Brancas, Edufba, 2008] e atividade intelectual. (Não obviamente do mesmo lugar que faz sua enunciação Lilia Schwarcz.) Percorrendo a trilha da obra do psicanalista martiniquense vemos o alerta que fazia, quando atuante em congressos, encontros de escritores negros e trabalhando em hospitais psiquiátricos,sobre o ardil de considerar-se o passado produzido em algum lugar do tempo histórico (africano) como recurso para as lutas contra o racismo. Seguindo, também aqui, o pesquisador que melhor vem interpretando Fanon no Brasil, o sociólogo Deivison M. Faustino da Unifesp [ver Frantz Fanon: um revolucionário peculiarmente negro, Ciclo Contínuo Editorial, 2018] importa observar que este modo de travar a luta é um inconveniente duvidoso, dado que a consideração positiva de aspectos da cultura africana feita inteiramente é agir como o branco europeu. Estes abordam sua cultura enquanto fundamento existencial geral e completo para toda a “humanidade”. Fanon via aquilo como efeito insinuante e problemático do racismo. Nos termos de Faustino: era (e é) um fetichismo que “inverte os polos da hierarquia”. É como se ao incensar Black is King estivéssemos inocentemente transformando a luta antirracista em elogio à essencialidade da nossa “musicalidade”, “ritmo”, emoção – estes sendo “superiores e desejáveis ante” a cultura branca europeia. Ou seja, uma inversão pouco efetiva do ponto de vista político.
Seria equivocado, portanto, argumentava Fanon ir em busca de um lugar cultural e simbólico longínquo em “detrimento de uma realidade objetivamente desumanizada” (Deivison M. Faustino). Com efeito, é urgente dirá Fanon, estarmos a impulsionar nossas ações a partir das pessoas reais que sofrem o racismo e que de certa maneira produzem cultura de resistência.Por outras palavras, é “necessário ir além da afirmação das especificidades culturais, historicamente negadas”.
Isto significa dizer que a posição de Beyoncé (ainda que não se saiba efetivamente quais as suas intenções) pode ser colocada em questão. Senão por Lilia Schwarcz ao menos por aqueles que discordam deste evento da cultura iniciado por aquela e que também não se encantam irrestritamente pelas argúcias do mainstream.Black is King (e os que o defendem) pressupõe os negros como que vivendo no “mesmo saco” histórico e contemporâneo. É como se todos os negros e negras tivessem em um passado de glória e riqueza existido (e vivido) como o quer a cantora pop, e como se na contemporaneidade (e no futuro) todos os negros e negras pretendessem a reivindicação virtuosa de um lugar histórico-cultural completa e “incondicionalmente” (Fanon/Faustino) elogioso. Haveria que se perguntar, num exercício imaginativo, a Rafiki o sentido histórico-existencial mesmo de ele ter segurado Simba com a força de seus braços no alto da montanha; e devolvendo a pergunta a nós, negros e negras espalhados pelo “Atlântico Negro” se as exigências antirracistas de Beyoncé e dos que a defendem é a mesma da de George Floyd, João Pedro, Miguel, do entregadores de aplicativos e tantos outros e outras?
*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.